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Qual é o som do desespero?

Meus olhos não conseguem acreditar no que está diante de mim. Tae aperta minha mão e sinto meu estômago revirar. Ali, diante de nós, não há apenas uma pilha de roupas, mas sim uma enorme montanha delas, estendendo-se quase até o teto. Acima, um lustre paira como se tentasse amenizar o horror do lugar.

As roupas estão chamuscadas, rasgadas ou sujas de sangue. Reluto em acreditar, mas é evidente que muitas pessoas morreram aqui. Um pensamento sombrio me atravessa; talvez o bunker nunca tenha existido. Talvez todas essas pessoas tenham sido atraídas para cá, iludidas pela falsa esperança de salvar suas vidas, apenas para encontrar a morte. Uma lágrima escorre enquanto meus lábios se comprimem.

Os seres humanos não são os melhores em muitas coisas. Somos falhos, e é essa imperfeição que compõe a vida. Será que merecemos tanto a morte?

Tae puxa minha mão e olho para cima, percebendo através de fresta no teto, que o cubo está nos caçando. Corremos para trás de um balcão e ele me abraça, enquanto permanecemos imóveis.

Parece que a ameaça passou, mas a angústia continua em nossos corações. Tae olha para mim e gesticula "Sinto muito...", o brilho em seu olho castanho está desaparecendo, enquanto o olho cego está cada vez mais apático. Eu não consigo suportar isso.

"Talvez o bunker esteja por aqui, em algum lugar...", tento soar esperançosa, embora sinta que não existe bunker.

Tae segura meu rosto delicadamente, nossas testas se encontram. Ficamos assim, transmitindo nossos sentimentos, expressando nossas emoções através de nossos corpos, dizendo o quanto sentimos muito. Nossas vidas mudaram de forma drástica há um ano, e ambos estamos sentindo a resiliência se esgotar. Mas, mesmo que morra tentando, continuaremos a procurar um lugar seguro. Deve haver algum lugar.

Tae afasta nossos rostos e gesticula: "Não podemos sair agora, os cubos devem estar nos esperando".

Assinto e respondo: "Vamos procurar um local melhor para nos esconder".

De mãos dadas, percorremos o estranho prédio. Parece que era alguma espécie de mercado, o que não faz muito sentido, já que a construção não se assemelha a um shopping center. Mesmo assim, encontramos várias lojas dos mais diversos segmentos. Decidimos entrar em uma de departamento, para ver se conseguimos encontrar algo para nos defender.

Não há muito ali, a maioria das coisas está quebrada ou foi saqueada, fora as paredes todas pichadas, mas nada faz sentido. As coisas parecem ser de outra época, como por exemplo as televisões que se espalham pelo corredor. Em nossa casa, tínhamos uma TV de tela plana, dessas que permitem conexão com a internet. Mas estas são aquelas de tubo, ultrapassadas. Talvez o "shopping" tenha fechado as portas muito antes de tudo acontecer, mas ainda não faz muito sentido; as pessoas teriam levado os itens.

Tae me toca, e eu olho para ele. "Amor, veja o que encontrei", diz ele.

É uma filmadora cinza, pequena e fácil de transportar. Foi muito popular nos anos 2000 e caiu em desuso com o avanço dos celulares. Mas o mais impressionante não foi o achado, mas sim descobrir que estava carregada e funcionando. A luz vermelha está acessa, e Tae filma o chão para testar.

"Funciona, incrivel" Ele realmente parece surpreso por ter encontrado uma tecnologia ainda funcional nesse mundo que não seja controlada pela IA.

"O que vai fazer com isso?", pergunto a ele e este leva a filmadora no seu olho, a virando para mim.

Sorrio, não esperava que ele fosse querer me filmar. Mexo a cabeça, sem fazer ideia do que fazer para o vídeo, quando seus lábios demonstram surpresa. Não entendo sua expressão e até olho para trás, imaginando que tinha algo, mas não há nada ali.

"Você precisa ver isso" Tae empurra a filmadora em minha direção e eu olho sem compreender. Ele insiste que eu pegue o objeto e assim o faço, levando até meu olho.

Uma sensação de estar diante de uma realidade alternativa toma conta de mim. As paredes exibem-se intactas, livres de rachaduras ou pichações, os eletrodomésticos parecem estar próprios para uso e as cores transbordam das televisões ligadas. Contudo, o aspecto mais impressionante não é o cenário, mas sim o homem diante de mim.

As vestes de Tae não estão rasgadas ou sujas, sua calça clara parece recém-adquirida, assim como sua camisa. Seus cabelos negros ostentam um brilho hidratado, está sem qualquer sinal de desgaste físico ou machucado, abandonando por completo a aparência de doente. Um sorriso de tranquilidade repousa em seus lábios, o mesmo sorriso que ele costumava ter antes do mundo desabar.

Aproximo-me lentamente e percebo algo que me deixa atônita: seu único olho branco, indicando sua cegueira, desapareceu. No lugar do branco, um castanho escuro, igual ao seu outro olho, cintila de forma tão intensa quanto o outro. Fico rente ao seu corpo, e afasto uma mecha de sua franja que antes encobria o olho cego, constatando que agora é realmente castanho.

— Amor, o que foi?

Me assusto e quase deixo a filmadora cair. Tae me olha preocupado, e eu fico atônita. É como se uma voz tivesse falado comigo e eu a tivesse ouvido sem problemas. Não sei ao certo como são as vozes, pois nunca fui capaz de ouvir algo e nunca me adaptei a nenhum aparelho auditivo.

"Você viu o que eu vi?" Ele gesticula, sua testa franzida e seu olhar demonstram a surpresa que ambos tivemos ao ver através da filmadora.

"Como isso é possível?" Pergunto, ainda atordoada pela voz que possivelmente escutei. Seria essa a voz do meu amor?

Meu noivo pega a filmadora de minha mão e começa a olhar em todas as direções com ela em seu rosto. Seu sorriso se expande; a câmera está dando vida ao local abandonado através de sua lente.

Decidimos explorar o local e descobrir o que mais o aparelho pode nos revelar. Subimos um andar e nos deparamos com outro salão. A arquitetura desse lugar é peculiar, não faz muito sentido, assim como esse pequeno objeto que altera a nossa realidade.

Tae testa a filmadora, observando em todas as direções com um sorriso encantador nos lábios. Depois me entrega, seu rosto animado deixa claro que viu algo interessante. "É maravilhoso", ele gesticula e me entrega o aparelho.

Coloco a filmadora diante do meu olho sem hesitar, e é como se estivéssemos diante de uma exposição de arte. Vários quadros adornam as paredes, exibindo pinturas coloridas, algumas geométricas, outras mais clássicas, criando uma mistura de estilos. Pela sala, diversas esculturas curiosas despertam o meu interesse em saber mais sobre elas.

Tae perambula pela sala, seus movimentos capturados pela câmera. Parece estar apreciando as esculturas e seu sorriso de felicidade em meio às obras de arte me emociona. Faço um sinal com as mãos, encorajando-o a continuar, e ele continua o teatro de turista. Mesmo que seja apenas uma ilusão, é reconfortante ter um vislumbre de paz.

Caminhamos pelos corredores misteriosos, ansiosos pelas descobertas que nos aguardavam à medida que avançávamos para o próximo nível. Ao chegarmos, deparamo-nos com o que parecia ter sido um restaurante de classe alta. As cadeiras, revestidas em um acolchoado azul e adornadas com entalhes dourados, exibem um estilo barroco. As mesas estão meticulosamente preparadas, com toalhas brancas bordadas e adornadas com castiçais, pratos, talheres, taças e garrafas vazias, testemunhas silenciosas de um banquete passado. O odor de poeira paira no ar, as teias de aranha enfeitam todo o ambiente, enquanto as janelas são obstruídas por tábuas de madeira envelhecida.

"Amor, sente-se ali, vamos fazer algo", Tae gesticula para mim, indicando a mesa mais próxima.

Percebo que, da mesma forma como apreciei vê-lo em seu teatro na galeria de arte, ele anseia por seu próprio momento neste ambiente mais sofisticado. Atendo ao seu pedido e acomodo-me na cadeira confortável. Tae ocupa a posição em frente a mim e trocamos sorrisos. Removo as teias de aranha que está na mesa, pegando um garfo enferrujado. Tae ajusta a câmera e sorri.

Começo a simular o prazer de uma refeição requintada, talvez uma massa ao molho sugo, polvilhada com queijo ralado. Sem querer, deixo escorrer um pouco de molho em minha roupa, o que me leva a rir de meu descuido. Pegando o guardanapo, finjo limpar a mancha da roupa e os lábios, em seguida, erguendo a taça para saborear um vinho tinto, talvez um pinot noir ou carmenere.

Tae parece absorver cada detalhe da cena que criei para ele. Seu olhar denota a emoção de uma representação que poderia ser o nosso jantar, em um restaurante elegante, celebrando algo importante ou simplesmente desfrutando de momentos de qualidade juntos.

"Agora é a minha vez", digo a ele, e, embora inicialmente relutante, ele me entrega a câmera. Tenho a certeza de que ele queria registrar todos os momentos possíveis com o aparelho.

Ao olhar através da lente, fico surpresa com a transformação do ambiente outrora empoeirado e cheio de aracnídeos. A mesa se revela deslumbrante, as flores exibem suas cores vibrantes, e sobre o prato de Tae, há uma sobremesa. Ele sorri, pega um pedaço com o garfo, o levando à boca. Em seguida, faz um gesto de aprovação com o polegar. Eu rio dele e meu amado alcança a garrafa de vinho, servindo a sua taça. Porém, ao provar a bebida, uma expressão de desagrado toma seu rosto, já que vinho nunca foi o seu ponto forte, nem de mentirinha.

Ele segura minha mão e seu sorriso se alarga de tal maneira, que parece tornar tudo ao nosso redor real. Ele aperta a aliança em meu dedo, a promessa que fizemos um ao outro, jamais esquecida. Tae foi e sempre será a melhor escolha da minha vida.

— Estava tudo delicioso, amor. — Seus lábios formam as palavras enquanto ele gesticula, e eu não consigo evitar deixar a câmera cair sobre a mesa.

Num segundo, o local ganha vida, várias pessoas entram e se esbanjam com a comida disposta. Risadas ecoam pelo ambiente, ao mesmo tempo em que uma suave melodia é tocada ao piano. Tae olha ao redor, confuso, tocando o olho que antes era cego, e que agora exibe um tom castanho. Como se nunca tivesse perdido a visão.

— Amor eu... Eu estou enxergando! Meu Deus... como? O que está acontecendo? — Ele gesticula, mas sua voz sai junto, carregando um misto de aflição e felicidade. Tae sofreu muito quando perdeu a visão.

Percebo mais uma vez que estou ouvindo todos os sons ao meu redor. Desde o suave tilintar das taças até o ruído dos garfos batendo nos pratos, e as vozes calorosas das pessoas desfrutando de seus jantares, incluindo a voz do meu amado.

Nunca antes a havia escutado. Essa era a única frustração decorrente da minha deficiência: a impossibilidade de ouvir a voz de Tae. As pessoas sempre irradiavam sorrisos durante suas conversas com ele, e eu ansiava por compreender o motivo. Sua voz é doce, um tanto mais grave do que eu imaginava, porém isso não diminui em nada a sua beleza.

"Tae, consigo te ouvir", sinalizo para ele, e meu amor me encara com surpresa.

— Você está me ouvindo? — Ele pergunta.

Concordo com a cabeça inúmeras vezes, e ele sorri feliz. Em seguida, segura minhas mãos, seus olhos me fitam e estão transbordando de amor por mim:

— Se você está me ouvindo e eu estou enxergando... Será que você consegue falar?

Minha boca se abre sem emitir uma resposta. Teoricamente, não sou muda, mas nunca pude ouvir a fonética das palavras para assimilá-las e, consequentemente, aprender a falar. Libras sempre foi minha voz; aprendi muito jovem e, desde então, é a única forma de comunicação que utilizo. Consciente de que, algumas vezes, enquanto sinalizo algo, alguns sons escapam involuntariamente, mas não conheço minha própria voz e o que posso fazer com ela.

— Não precisa ficar assustada. Por que não tenta dizer isso: 'Eu te amo, amor'? Vamos, tente. — Ele sugere. E o olho ansiosa.

Umedeço os lábios, um tanto nervosa pela incerteza sobre minha capacidade. No entanto, desejo ao menos tentar, pois não fará diferença se não conseguir. Perceber que, de alguma forma inexplicável, Tae perdeu sua condição já me traz imensa felicidade. Inspiro profundamente e permito que o ar escape enquanto coloco minhas cordas vocais para trabalhar:

— Eu te amo, Taehyung.

Acho que encontramos o paraíso.

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