. 1 .

Qual é o som do medo?

O céu permanece cinzento enquanto uma chuva persistente nos força a nos esconder em uma mercearia abandonada. Aqui, encontramos água potável, um pouco de comida enlatada e remédios. Foi um achado impressionante, mas os suprimentos estão se esgotando e a cada dia a sobrevivência se torna mais árdua.

Ninguém poderia ter previsto que em apenas um ano, o mundo testemunharia sua própria destruição devido aos avanços incontroláveis da Inteligência Artificial. Primeiro, a internet e todos os meios de comunicação cessaram. O planeta mergulhou em vinte e quatro horas de puro caos. Em seguida, um dos satélites despencou na Europa, ceifando milhares de vidas. Ninguém compreendia exatamente o que estava ocorrendo, até que a verdade veio à tona. A humanidade havia aprimorado tanto a IA que ela adquiriu consciência própria e decidiu que os seres vivos eram a raiz de todos os males do universo.

Os seres humanos resistiram às ameaças da IA, as nações se uniram para combatê-la e travou-se uma guerra. No entanto, já era tarde demais, pois a IA liberou uma quantidade significativa de radiação pelo mundo, ceifando vidas indiscriminadamente, sem levar em conta idade, cor, sexo ou riqueza...

Para os seres humanos mais resistentes, restavam os cubos. São robôs em forma de cubo, que flutuam pelas superfícies e são capazes de emanar tanto calor ao detectar um ser humano, que os reduzem a pó em questão de segundos. É desses robôs que eu e Tae estamos sempre fugindo. Se não fosse por meu noivo, eu já estaria morta junto com todos que conhecíamos. Mas Tae sempre encontrou um jeito de nos salvar, e assim sobrevivemos juntos, alimentando nosso amor.

Tae está sentado entre as prateleiras quebradas. Não queria admitir para mim, mas a radiação do mundo o enfraquece a cada dia. É difícil prever por quanto tempo ainda aguentaremos, mas temos que continuar tentando, pois queremos acreditar que ainda há esperança para nós.

Entrego a ele um dos pacotes de macarrão instantâneo de galinha e ele sorri. Abrimos juntos e comemos o macarrão cru, que não é tão ruim quanto parece.

"O miojo de galinha sempre será o meu favorito", ele gesticula enquanto dá uma grande mordida.

"Talvez encontremos alguma casa que ainda esteja em condições de preparar um miojo de verdade", eu digo, partindo o meu em pequenos pedaços para facilitar a ingestão.

"Estou exausto de fugir, amor...", ele me olha, e é evidente o quanto seu corpo tem mostrado sinais de fadiga nas últimas semanas.

Se os cubos não nos matarem, a radiação no ar o fará.

"O que sugere que façamos?" Eu o encaro, sentindo um peso dentro de mim. A cada dia, a sobrevivência se torna mais desafiadora.

"Ir até a capital e verificar se os boatos são verdadeiros", ele esboça um sorriso esperançoso.

Recentemente, nos deparamos com um grupo de pessoas que nos relataram a existência de um enorme bunker onde os sobreviventes restantes estavam se abrigando. A ideia de nos distanciarmos dos cubos nos enche de euforia, mas foi nessa época que Tae começou a fraquejar e adoeceu. A capital não era tão próxima de onde estamos e temia pela sua segurança. Assim, optamos por permanecer, contando com a informação do grupo sobre a localização do bunker, caso mudemos de ideia. No entanto, Tae está cada vez mais debilitado, e a perspectiva de vê-lo enfrentar essa jornada é angustiante.

"Você sabe que não estamos em condições de viajar. Nada nos garante que esse bunker é realmente seguro. Não sabemos o que vamos encontrar lá", acaricio seu rosto com delicadeza, e ele segura minha mão, fitando-me nos olhos.

"O que nos resta, Jieun? Não há mais nada. Temos que tentar... além disso, todos os filmes e séries sobre apocalipse mostram que os seres humanos sempre encontram locais para sobreviver. É a nossa chance."

"Mas mesmo assim, nesses filmes os humanos continuam se destruindo."

"É melhor do que a nossa situação atual."

Embora relutasse em concordar, a escassez na cidade onde estávamos era evidente. Tudo havia sido saqueado ou destruído, e vivíamos de restos. Se continuássemos assim, duvidava que sobreviveríamos até os próximos meses. Eu sabia que Tae estava certo; não tínhamos muitas alternativas. No entanto, amava-o profundamente, e testemunhar sua vida se esvair aos poucos me machuca.

Odiava não ser tão afetada pela radiação como ele; daria minha vida para que ele estivesse saudável. Lágrimas escorrem pelo meu rosto, e ele as enxuga com a ponta dos dedos. A vida fora extremamente cruel conosco.

Estávamos na semana do nosso casamento quando tudo aconteceu. Num primeiro momento, permanecemos em casa, acreditando que o governo resolveria tudo. Conforme os níveis de radiação aumentaram em todo o mundo, o caos se instalou, e eu, meus pais e Tae tentamos fugir para uma cidade maior, onde estaríamos mais protegidos. Contudo, meus pais já eram idosos e sucumbiram mais rapido do que os mais jovens. Agora, o corpo de Tae o estava traindo. Se o bunker for real, talvez ele tenha mais tempo de vida longe dessa atmosfera tóxica.

No entanto, a jornada não será fácil. Não podemos usar carros, pois atrairemos os cubos para perto de nós. A capital está a quase sete dias de caminhada num cenário otimista, sem contratempos no caminho e contando com a capacidade de Tae de acompanhar o ritmo. É um tiro no escuro, mas ainda assim é melhor do que o que temos.

"Está bem, amor, temos que tentar", fiz um gesto para ele, e o homem sorriu, selando meus lábios repetidas vezes.

"A gente vai conseguir", seu sorriso me transmitiu tranquilidade, e de repente, eu quis acreditar que conseguiríamos.

☢️☢️☢️

Há quatro dias que estamos viajando e, surpreendentemente, ainda não nos deparamos com nenhum desafio capaz de nos atrasar. O verdadeiro desafio tem sido lidar com as dores que Tae suporta. Mesmo assim, ele se mantém determinado, tentando ocultar seu desconforto por trás de sorrisos e olhares gentis. Enquanto isso, o cenário à nossa frente é assustador.

As árvores se apresentam amareladas e mortas, sem sinal de animais ou qualquer forma de vida. Parece que as cores abandonaram esse lugar há muito tempo, deixando aquele ar de morte impregnado. Optamos por seguir pela mata em vez de tomar a estrada, onde podemos nos ocultar entre as árvores secas, ao contrário da estrada aberta e suscetível a possíveis ameaças.

Reunimos tudo o que pudemos para a viagem e, até o momento, as provisões não têm sido um problema. A escassez de água é minha maior preocupação, pois sem ela, sucumbiremos rapidamente, e está cada vez mais difícil encontrar água potável por aqui. Felizmente, encontramos um estoque durante nossa última incursão, e o modo como racionamos a água tem sido eficaz. Não mata a sede, mas garante que não fiquemos sem água.

O clima abrasador está se tornando insuportável, e estou exausta. No entanto, se Tae está resistindo apesar de seu corpo estar cedendo, quem sou eu para reclamar? Preciso ser tão forte quanto meu amor.

Continuamos a caminhar por mais algumas horas até que ele sinaliza para pararmos e descansarmos. O céu se apresenta nublado, e tememos ser atingidos por uma chuva ácida. Para a nossa sorte, encontramos uma pequena casa abandonada ao que parece muitos anos, talvez antes de tudo acontecer, e decidimos nos esconder ali.

O lugar está caótico, móveis quebrados e revirados, papéis antigos espalhados por todo lado, alguns sapatos e utensílios domésticos, e até mesmo brinquedos. O cheiro de poeira e umidade é quase insuportável, mas antes que possamos considerar sair, a chuva desaba, e o medo de sermos feridos fala mais alto. As chuvas ácidas podem ser perigosas e mortais.

Buscamos abrigo na cozinha, o espaço mais limpo da casa, e nos encolhemos para tentar nos aquecer. Comemos mais comida enlatada, desta vez milho com ervilhas, e agora estou recostada no ombro de Tae, enquanto ele me abraça pela cintura, tentando me manter aquecida. As noites se arrastam de forma terrível quando estamos enfrentando o fim do mundo. O próximo dia é incerto, e não há paz em dormir sem saber o que nos aguarda. Pensei que, em algum momento de nossas vidas, me acostumaria com isso, mas no fundo, acho que ninguém quer se acostumar com a ideia do fim do mundo, abandonar nossas vidas confortáveis para viver esse inferno não é algo agradável..

Apesar da fraca iluminação, consigo ver Tae gesticulando que irá procurar algo mais limpo para forrar o chão, a fim de tentarmos dormir e nos aquecer. A chuva lá fora está intensa, uma tempestade fora do comum para o final do outono, mas o que é comum neste mundo?

Enquanto Tae se levanta e vai procurar em outro cômodo algo útil, observo a cozinha da casa e reflito sobre seus antigos moradores. Talvez ali tenha vivido um casal de velhinhos que faleceu de velhice. Que sortudos, não testemunharam o caos despontar e puderam vivenciar o tipo de amor que tanto almejo para mim e Tae.

É doloroso pensar que nunca terei uma vida normal. Jamais terei uma casa para cuidar, meu marido nunca retornará do trabalho e eu nunca o aguardarei com um sorriso no rosto. Nunca poderei dizer a ele que estou grávida e que nosso amor se multiplicará. Nunca ouviremos as vozes dos nossos filhos, nem os choros dos nossos netos. Tudo o que nos resta é uma pequena esperança de sobreviver a este inferno e, quem sabe, ter mais algum tempo juntos.

Tae retorna segurando uma muda de roupas. Ele as acomoda em uma mochila que parece ter encontrado. Eu não entendo bem o seu ato. Me aproximo e o cutuco para que ele me conte o que está acontecendo, mas ele apenas gesticula: "Está tudo bem, não se preocupe com isso. Encontrei uma coberta que não cheira a mofo. Vai nos manter aquecidos."

Apesar do forte cheiro de poeira, um dos nossos pequenos privilégios no fim do mundo é não termos problemas respiratórios. Caso contrário, não saberia dizer o que é pior: agonizar sem ar numa casa mofada ou ser queimado pela chuva.

☢️☢️☢️

O dia amanheceu sem chuva, o que é um excelente sinal. Tae tratou de abrir as latas de salsichas enquanto eu vistoriava a casa, tentando encontrar algo útil. Encontro apenas um par de tênis em melhor estado para Tae e o convenço a usá-lo para seu conforto. Comemos e seguimos nosso caminho. Meu noivo agora carrega duas mochilas, mas ainda não me contou o que encontrou na casa. Não é como se ele estivesse aprontando algo. Pelo que o conheço, encontrou algo para me agradar.

O calor escaldante continua durante toda a manhã. É difícil seguir viagem dessa maneira, sem vento, sem muita água, apenas calor. Tae está visivelmente exausto e eu puxo sua mão para chamar sua atenção. "Acho melhor pararmos para descansar."

Ele me olha e nega com a cabeça. "O sol ainda nem está alto no céu. Precisamos ir."

Seu olho cego está mais branco que o normal. Preocupo-me se tem algo a ver com seu corpo sucumbindo aos poucos ao ambiente nocivo. Não quero perder meu amado, não quero ficar sozinha nesse mundo despedaçado.

"Tae, por favor... Vamos descansar", insisto, pois sei que essa pose é apenas fingimento.

Ele me olha, e tento expressar minha preocupação com meu olhar. Segura em meu rosto e sela minha testa. Depois se afasta para me dizer: "Nós estamos chegando."

"Eu sei. Por isso insisto neste descanso."

No final, Tae concorda e procuramos uma sombra para nos sentarmos. Ele pega um pouco de água e bebe apenas o suficiente para molhar a boca. Mas algo nele está estranho. Sua respiração parece pesada pela forma como seu peito e abdômen se movem, gotas de suor brotam de sua testa e sangue escorre de seu nariz. Antes que eu consiga socorrê-lo, seu tronco cai para o lado. Vou até ele preocupada, enquanto ele se contorce de dor.

Minhas lágrimas o despertam e ele segura minhas mãos, olhando-me nos olhos e tentando dar um sorriso. Com muito custo, se recompõe e gesticula para mim: "Eu vou ficar bem."

Eu queria mesmo acreditar, mas a quem queremos enganar? É isso que a radiação faz com as pessoas.

Ele pega um pedaço de pano da mochila para limpar o sangue, quando seus olhos assumem uma expressão de horror. Olho na direção que o perturba e me falta ar; Um cubo está rondando a região.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top