02
Antes mesmo de conseguir abrir os olhos, Karyn deixou um gemido doloroso escapar por seus lábios. A parte de trás de sua cabeça estava latejando, assim como suas costas que dava pontadas todas as vezes que ela puxava o ar para seus pulmões.
O que diabos tinha acontecido?
Com dificuldade ela conseguiu abrir um dos olhos, porque o outro parecia impossibilitado. Sentia uma pressão absurda sobre o mesmo e a sensação de que havia uma bola no interior de sua face no lado esquerdo.
Tudo doía. Qualquer mínimo movimento a fazia gemer como se estivesse morrendo.
O que de todo mal não seria tão ruim assim. Quem é que estava feliz em viver naquela altura do campeonato? Um mundo repleto de podridão, maldições, manipulação e destruição. A morte chegava a soar como piada, se comparado a tudo o que pessoas como ela eram obrigadas a viver.
Virou a cabeça pro lado com certa dificuldade. Havia uma pessoa ali com ela, distante demais para que sua visão desfocada pudesse reconhecer. Mas a silhueta era familiar, alto, cabelos arrepiados.
Soltou um grunhido ao perceber quem era.
— Que pesadelo. — Balbuciou, desviando os olhos pro outro lado. Reconheceu as cortinas negras que balançavam com a brisa que adentrava o quarto. Já era dia, mas por conta do tecido escuro, as frestas de luz ali eram mínimas.
Aquele era seu quarto no colégio.
— Não imagina o quanto eu também estou feliz de te ver viva. — Apesar do tom zombeteiro, ela quase reconheceu um vestígio de alívio ali.
Karyn voltou seu rosto na direção de seu sensei, ele estava próximo o bastante dela para que pudesse ver aquele sorrisinho maldito em sua face. Metade do rosto coberto por aquela venda escura, que escondia seus olhos azuis.
Sua mente ainda estava confusa, mas ela se lembrava do som de alguma coisa se quebrando, antes de algo atingi-la e ela acordar ali.
— Foi você que me salvou?
— Não. — Ele balançou a cabeça, cruzando os braços sobre o peitoral. — Pedi que o Yuta fosse atrás de você no momento que eu descobri que os anciãos te mandaram pra Shibuya. Aqueles velhos malditos não tem mais o que fazer e aparentemente estão tentando se livrar dos meus alunos.
— Seria um trabalho a menos pra você. — Karyn forçou um sorriso, percebendo que até aquele movimento com a boca lhe causava dor.
Estava começando a ficar mais irritada do que o normal.
— Sim, seria. Assim como a morte também seria seu maior sonho sendo realizado. — Satoru puxou uma cadeira logo ao lado, e se sentou ficando de frente para a cama dela, numa posição em que a garota pudesse ver seu rosto sem precisar se mover. — Mas como eu não posso deixar de ser professor, você também não vai partir dessa pra melhor enquanto eu viver.
— Eu te odeio, sabia?
— Eu também te amo, pequena Karyn. — O albino sorriu de forma amigável pra ela. Inclinando a cabeça pro lado, como se estivesse analisando até sua alma, mas a venda não permitia que isso fosse revelado. — A partir de hoje, você e seus colegas só poderão sair em missões que passem pela minha jurisdição.
— Sabe que não podemos ir contra o conselho.
— Não se preocupe, eles não vão existir por muito mais tempo.
— Está pensando em matar os anciãos? — Apesar do olhar de surpresa, Karyn não estava nem um pouco chocada com a possibilidade. Não seria a primeira vez que Satoru destacava seus desejos sombrios em relação ao alto escalão. — Isso vai causar uma guerra no mundo Jujutsu.
— Eu sei, por isso eu vou ser cordial em dar algumas opções pra eles. Se não concordarem, então utilizarei meus métodos.
A Matsumoto sentiu vontade de rir, mas se manteve impassível, evitando sentir mais dores do que o necessário.
Apesar de não ser a maior fã de seu sensei, por não suportar a personalidade alegre e extravagante dele. Não podia negar para si mesma que eles eram muito parecidos, com os mesmos ideais e os mesmos pensamentos distorcidos em relação ao mundo humano e ao mundo Jujutsu. Ambos com um ideal de manter os seres humanos vivos, mesmo que isso custasse algumas perdas durante o caminho.
Um desejo que não era muito bem visto pelos outros feiticeiros, muito menos pelo alto escalão, o que era uma grande hipocrisia, considerando que os mesmos não se importavam em executar seus próprios feiticeiros, em prol de seus desejos. Todos aqueles que eram vistos como uma ameaça às ordens do conselho, deveriam ser executados.
E para a sorte de Karyn, ela era uma dessas ameaças. Assim como seu professor Satoru Gojo.
— Sabe que ainda tá me devendo, né?
— Por quanto tempo vai jogar isso na minha cara?
— Tempo suficiente. — A rosada balbuciou com um pouco de dificuldade, sua garganta estava começando a ficar seca. — Eu salvei seu rabo lá em Shibuya.
— E eu já te agradeci por isso. Além de que não foi nada demais aquilo.
— Não? — Ela ergueu uma sobrancelha, a do lado bom de seu rosto. — Satoru Gojo, o feiticeiro mais forte estava quase sendo selado, por um selo bem questionável.Tá ficando fraco, sensei? — Ela o provocou, vendo o mesmo comprimir os lábios em uma careta.
O albino abriu a boca para retrucar, mas o som de duas batidas na porta o fez ficar quieto, inclinando a cabeça para trás, enquanto a porta era aberta.
Karyn não conseguiu ver quem era de primeira, mas ouviu o som de passos tímidos andarem por seu quarto. Até uma silhueta tomar forma próximo a sua cama.
Assim que seu olho bom reconheceu o rapaz parado ali diante dela, sentiu um gosto amargo na boca. Ela também só se tocou naquele instante que Satoru havia dito que ele havia lhe salvado naquele metrô. E Karyn desejou ainda mais ter morrido na noite passada, do que ser salva por Yuta Okkotsu.
— Eu trouxe isso pra você, é em sinal de melhoras. — Ela só reparou no pequeno buque de flores que ele tinha em mãos, quando o mesmo estendeu na direção dela.
Não era uma grande fã de flores e muito menos sabia muito sobre elas, mas reconheceu as pequenas bolotas que pareciam ser feitas de algodão, como dente-de-leão.
Karyn nem se quer se esforçou para pegar o presente, ela abaixou o olhar e encarou sua mão pousada sobre a cama. Pelo menos poderia usar a desculpa das dores no corpo para não precisar se mover naquele instante, mesmo que seus braços fossem uma parte de si que não doíam.
Ela reparou na expressão tímida do rapaz, ele coçou a nuca com a mão livre e forçou um sorriso amarelo.
A garota começou a se questionar se ele era sonso demais para perceber que ela não suportava a existência dele. Ou se apenas fazia de propósito para irritá-la.
— Bom, já que você chegou, Yuta. Será que pode fazer companhia pra essa rabugenta? Eu preciso resolver algumas coisas agora. — Satoru se levantou e deu um tapinha de leve no ombro de seu aluno, enquanto olhava na direção de Karyn com um mínimo sorriso nos lábios.
Ele estava fazendo de propósito. E a garota só sentiu vontade de se levantar daquela cama e voar no pescoço de seu professor.
Assim que o mesmo passou pela porta e a fechou, o quarto foi tomado pelo mais perturbador silêncio. A pouca claridade que entrava ali, só tornava a situação ainda mais incômoda para ambos.
Yuta pousou o buque com as flores na mesa de cabeceira dela e se sentou na mesma cadeira onde Satoru estava antes. Ele estava perto demais dela e aqueles olhos de corsa a observando com tanta ternura, a deixavam mais irritada do que as dores em seu corpo.
— Como está se sentindo? — Ele a perguntou depois de longos minutos de puro embaraço com aquele silêncio mórbido.
— Dolorida. — Foi a única coisa que a feiticeira se esforçou a dizer.
Ela não queria conversar, não com ele. E esperava que respostas monossilábicas fossem ser o suficiente para expulsá-lo de seu quarto.
— Desculpe não ter chegado mais cedo.
— Tudo bem.
— Foi eu quem parei o metrô, mas não sabia que tinha uma...
— Espera, o que? — Karyn o encarou com certo espanto. Então foi ele quem fez o metrô parar daquela forma brusca e a arremessou do outro lado do vagão? — Você quase me matou, sabia? Podia ao menos tentar ser mais sutil, se é pra parar um metrô com alguém dentro, faça isso mais devagar. — Ela só percebeu que estava alterando seu tom de voz, quando sua garganta seca começou a doer e ela passou a ficar mais rouca.
— Desculpe, não foi minha intenção.
A garota soltou um grunhido de frustração, pressionando seus punhos com força o bastante para suas unhas perfurarem a pele nas palmas de suas mãos.
Ela não sabia explicar muito bem a si mesma os motivos de não gostar de Yuta. Talvez fosse o fato dele ser o favorito de Satoru, um aluno que chegou no colégio muito depois dela e sem esforço algum, conseguiu sua classe especial em pouquíssimo tempo. Algo ao qual ela lutou anos para conquistar. E ele ainda tinha aquela voz mansa, o olhar gentil e nunca levava nenhum tipo de mágoa para o coração, nada parecia abalá-lo e isso a irritava constantemente. Odiava pessoas que eram felizes o tempo todo, ou que pareciam não se importar com nada.
Yuta Okkotsu era a personificação da bondade e perfeição que ela mais odiava como característica em alguém.
Não que Satoru também não fosse o símbolo da perfeição. Mas ela e seu professor conseguiam se entender a sua maneira.
— Me diz que ao menos eliminou a maldição de grau especial que tava conduzindo o metrô.
— Não tinha nenhuma maldição conduzindo o metrô.
— Como não? Eu senti a energia dele lá.
— Não havia maldições de alto nível naquele veículo, Karyn. — Okkotsu continuou rebatendo, numa expressão mais séria, onde ele comprimia seus lábios e pressionava suas mãos uma na outra como se estivesse nervoso com algo. — Tem sim maldições de níveis especiais em Shibuya, mas não tinha nenhuma ali. Foi uma emboscada, tinha uma bomba no metrô que ativou no instante em que eu o parei, eu não sabia disso. Desculpa por...
— Uma bomba? — O choque daquela informação, fez com que todo o corpo da garota se levantasse, ficando sentada sobre sua cama e ignorando as dores insistentes que percorriam seus músculos. — Quem colocou uma bomba lá?
— O sensei Gojo acredita que tem alguém querendo te eliminar, assim como tentaram fazer com ele. Mas ainda não sabemos quem é.
Ela encarou os olhos do outro feiticeiro, aquelas íris escuras que se pareciam muito com as de um gatinho abandonado na rua no meio da noite. Gentis demais, pequenas bolas castanhas em tons escuros e brilhantes, rodeados de manchas escuras logo abaixo, indicando que ele tinha tantos problemas para dormir quanto ela.
Só percebeu que o estava encarando por tempo demais, quando mesmo com a pouca claridade, ela reparou as maçãs do rosto dele um pouco coradas. O que foi o bastante para que a garota de cabelos rosas virasse a cabeça pro outro lado, sentindo seu rosto esquentar também.
Queria estar irritada o bastante com ele para conseguir expulsá-lo de seu quarto. Mas agora, ela só conseguia pensar que queria matar a pessoa que estava tentando eliminá-la.
E foi com essa motivação que arrastou seus pés pra fora da cama e se levantou. Ela só não esperava que seu corpo pudesse estar pior do que imaginava e que suas pernas não fossem suportar seu próprio peso. Porque assim que pisou no chão, seu corpo cedeu e ela se viu caindo novamente, assim como na noite anterior. E mais uma vez ela esperou pela pancada dolorosa, que não chegou, não quando ela apenas pode absorver um calor contra seu corpo, mesclado a um perfume suave e cítrico.
Ergueu a cabeça e encarou o rosto de Yuta mais uma vez, enquanto os braços dele rodeavam seu corpo e a mantinham de pé.
Karyn fechou os olhos e tombou a cabeça pra frente, escondendo seu rosto contra o peitoral coberto do rapaz, choramingando consigo mesma e todo seu ódio acumulado pelo Okkotsu e por quem quer que estivesse tentando acabar com sua vida.
Aquilo só poderia ser um pesadelo.
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