01
O som dos saltos batendo contra o asfalto, era o único barulho que ecoava pelas ruas vazias de Shibuya. Algo que aos olhos mundanos poderia soar extremamente estranho, já que aquele era o ponto de encontro de diversas cidades do Japão, sendo literalmente o centro que nunca adormecia, onde as luzes dos outdoors piscavam em diversas cores, que deixavam a noite mais clara do que ela realmente deveria ser.
Mas aquela não era uma noite comum. Talvez nunca mais fosse, depois da última chacina que ocorrera naquele local alguns meses atrás.
As coisas realmente estavam um caos.
A fumaça escapou dos lábios cobertos pelo batom roxo da garota. Poderia ser decorrente do frio insistente que fazia naquela época do ano, que chegava a fazer seus ossos doerem com a brisa gelada que atingia sua face. Ela retirou o cigarro da boca e parou de frente para a antiga estação metrô, local esse que não havia movimento algum. As linhas deixaram de circular depois daquela fatídica noite. Em frente a escadaria, assim como ao redor das enormes paredes e muros que constituíam aquele famoso distrito, havia apenas cartazes com fotos dos falecidos, flores e lembrancinhas espalhados por todo o chão, provavelmente bagunçados pela chuva e o vento do inverno que havia acabado de se iniciar.
Levou o cigarro até a boca mais uma vez, dando uma última tragada, antes de jogar a bituca no chão e pisar com a ponta de seu salto, afastando as cinzas e evitando de começar um incêndio no local. A última coisa que ela queria era ter de chamar atenção. Ainda mais ali, com um local cercado por diversas maldições. Era tanta energia negativa, deixada não só pelas pessoas que morreram, mas seus entes queridos que visitavam o local constantemente pela manhã, que os monstros circulavam ao redor dela, como se aquilo fosse um shopping center.
Chegava a lhe causar arrepios, ainda mais que muitas delas eram de grau um, mas se misturavam em meio as de nível quatro, impedindo que a feiticeira de classe especial as identificasse com facilidade.
Ela realmente não estava afim de perder tempo com maldições de baixo nível. Não eram tão ameaçadoras assim. E também não estavam sendo responsáveis pelas últimas mortes registradas naquele metrô abandonado.
Enquanto descia as escadas de acesso ao subsolo, Karyn pegou o jornal dobrado em um dos bolsos de seu sobretudo escuro. A manchete em destaque, era o mistério sobre corpos recentes sendo encontrados no metrô que estava desativado desde a noite em que milhares de pessoas morreram misteriosamente. As autoridades japonesas que ainda estavam tentando descobrir o que havia acontecido no dia 31 de outubro, agora estavam desesperadas com a possibilidade do incidente se repetir, mesmo que Shibuya tivesse sido isolada e a passagem de pedestres proibida durante a noite. Sendo possível visitação apenas pelas manhãs, já que uma escolta policial costumava rondar todo o perímetro para evitar aglomerações.
Ah se eles soubessem. — Ela pensou consigo mesma enquanto enfiava o jornal novamente no bolso.
Passou pela catraca de acesso às plataformas e andou mais alguns passos, antes de parar na beirada de apoio, se inclinando para frente apenas para observar os trilhos do metrô. Virou a cabeça pro lado e há poucos metros havia um dos maquinários desativados.
Ela conseguia sentir a enorme quantidade de energia negativa que parecia vir do veículo. E não estava nem um pouco surpresa. Depois de saber que os últimos corpos encontrados ali dentro eram de jovens, geralmente constituídos por uma garota e um garoto, não era difícil imaginar que eles estavam usando o lugar para encontros românticos e eram assassinados pela maldição de nível um que havia se desenvolvido ali.
A rosada também começou a se questionar. Qual era o fetiche por locais abandonados? Será que aqueles jovens não tinham respeito pelas vítimas que morreram meses atrás? Parecia uma grande falta de respeito você escolher o local de uma chacina para fazer sexo. E muito nojento também.
Ela caminhou até o enorme maquinário, as portas estavam abertas e a feiticeira adentrou sem ao menos pensar duas vezes. Ouvindo as mesmas se fecharem atrás dela no mesmo instante e as luzes acenderam antes que a jovem pudesse pegar seu celular e ligar a lanterna dele.
Seus olhos azuis percorreram todo o interior do veículo. Haviam manchas de sangue seco e ainda recentes, espalhadas pelos bancos e janelas, o chão eram poças do mesmo líquido escarlate, misturado as manchas de pegadas das vítimas que provavelmente tentaram fugir da maldição. Haviam algumas faixas amarelas ao redor, amarradas entre os bancos e as hastes de ferro de apoio. As que estavam na porta já tinham sido rasgadas, provavelmente pelos jovens que vieram depois das primeiras vítimas.
Tinha de concordar com a maldição que estava ali, aqueles jovens eram realmente muito burros e estavam se oferecendo de bandeja. Se ela também fosse uma maldição, aproveitaria as oportunidades.
Esse pensamento sombrio, fez a garota rir sozinha para o nada. Se seus superiores sequer sonhassem com as coisas que ela pensava, provavelmente seria a próxima que eles iriam mandar para a execução.
Se bem que não precisava de muito para os anciãos decidirem que você não deveria mais existir. A mesma acreditava firmemente que os mesmos já deveriam estar pensando em se livrar dela, ainda mais com aquela ideia de a enviarem sozinha até Shibuya, com a desculpa de que ela era capacitada o bastante para lidar com aquela missão. Eles mesmo sabiam que o distrito inteira estava infestado de maldições, talvez houvesse mais daquelas pragas, do que os feiticeiros já pudessem ter visto antes.
Aquela era sem dúvidas uma missão suicida.
Mas ela não seria Karyn Matsumoto se não aceitasse um desafio como aquele.
O som do motor do metrô sendo ligado e em poucos segundos passando a se locomover pelos trilhos, a pegou desprevenida. Não esperava que maldições pudessem ser capazes de sair do seu local de nascimento. Mas como ela imaginava, aquele deveria ser de um nível bem especial.
Não importava, ela também era.
— Não sabia que vocês tinham habilitação.
Aos poucos o veículo começou a pegar velocidade, uma que ia muito além do permitido e que fazia toda a caixa metálica balançar sobre os trilhos, como se a qualquer instante pudesse sair deles. Isso a fez cambalear para trás, tropeçando sobre seus saltos, até conseguir se segurar em uma das hastes de metal que ficavam no centro.
Das poças de sangue no chão, ela viu o líquido vermelho começar a tomar forma e dois rostos, com um par de olhos totalmente escuros emergirem do chão. Duas maldições totalmentes cobertas pelo sangue, de tamanho médio, com braços longos e finos que se arrastavam pelo chão. Pareciam feitos de gosma, já que um líquido azul se misturava ao vermelho, mudando para roxo e parecia escorrer constantemente de seus corpos metamorfos.
Extremamente nojento.
Eles abriram largos sorrisos repleto de dentes pontiagudos. E aquilo sem sombra de dúvidas pareceu horripilante. Ela se lembrou do Manhwa que tinha lido recentemente, pareciam muito com uma versão pequena daquela estátua sorridente e macabra de Solo Leveling. A imagem daquilo havia ficado impregnada em seu subconsciente e ela tivera pesadelo por semanas, apesar de mesmo assim, não deixar de ler a história.
— Parece que quanto mais o tempo passa, mais feio vocês ficam. — O comentário zombeteiro da feiticeira, fez com que as duas maldições fizessem sons assustadores, como um grunhido de animais sendo mortos.
Ela sentiu um pouco de arrepio, mesmo que eles fossem apenas maldições de nível quatro.
Pegou a pequena haste de metal no bolso interno de seu sobretudo. Balançou o objeto prateado no ar, que se expandiu em uma enorme barra de ferro do tamanho dela. A arma parecia inofensiva aos olhos alheios, tendo as duas pontas circulares, sem nada afiado para perfurar uma maldição. Mas era totalmente energizado com uma boa parte da energia amaldiçoada dela.
As maldições avançaram sobre a feiticeira, que ergueu sua barra de metal como se fosse um bastão de beisebol. Ela sorriu ao se lembrar dos jogos que tivera com os alunos no último verão, antes de acertar a cabeça de uma das maldições. A criatura gritou com o golpe, enquanto sua cabeça era arrancada e rolava pelo chão do metrô. A segunda maldição desviou dela ao notar a força que a mesma possuía, tentando pensar em uma estratégia diferente para atacá-la.
Mas Karyn sabia que eles não eram tão inteligentes assim, Por isso, ela não se surpreendeu quando a criatura arrancou um dos acentos e jogou na direção dela. Não tinha para onde correr, ela seria atingida se tentasse desviar para trás, por isso, jogou seu corpo pra baixo, se inclinando numa posição em que seus joelhos se dobraram e seu tronco foi pra trás, com os cabelos se arrastando no chão. O acento acertou a porta do outro lado, se estraçalhando com a força que a maldição usou para arremessar o objeto.
Com um pouco de dificuldade pela forma como a caixa metálica se locomovia pelos trilhos. Ela se reergueu, no instante em que a segunda maldição pulava em cima dela. Seu único movimento de reflexo foi erguer a barra metálica, a segurando com as duas mãos. A criatura mordeu o objeto e seu corpo inteiro passou a tremer, como se estivesse absorvendo uma enorme descarga elétrica. Levando poucos segundos para finalmente cair no chão, se dissolvendo em uma poça de gosma roxa em cima das botas da rosada.
Ela fez uma careta de nojo, sacudindo seus sapatos a fim de se livrar de uma boa parte daquilo. Odiava quando se sujava com os fluídos deles, ela se sentia nojenta e só queria ir embora pra casa e tomar um longo banho para se livrar daquilo.
Mas pensou também que teria de comprar botas novas. Só porque ela tinha gostado tanto daquele par, eram recém comprados, ela viu em uma vitrine em Shinjuku uma semana atrás.
Talvez isso pudesse ser motivo para ela pedir aumento aos seus superiores. Nada mais justo, depois deles a enviarem ali para morrer.
Começou a caminhar pelo longo corredor, tendo de segurar em alguns barras de apoio pelo caminho, já que o metrô parecia ter ganhado ainda mais velocidade. Ela chegava a ver faíscas através dos vidros, causados pelo atrito constante do maquinário nas paredes do subsolo e na força aplicada sobre os trilhos.
Precisava chegar até a cabine do maquinista, antes que aquela criatura a levasse para uma morte certa. Porque o que tudo indicava, ele não estava tão afim assim de se alimentar dela, ou talvez fizesse isso, depois que a esmagasse junto daquele veículo.
Como ela odiava maldições inteligentes.
Ele só queria facilitar o trabalho dele e evitar uma luta direta com uma feiticeira no nível dela. Tinha que lhe dar os parabéns, porque ela faria a mesma coisa.
Seus pés se arrastaram pelo piso de metal, usando sua barra de ferro para pressionar no chão e tê-la como uma muleta que a ajudava a se mover. A porta estava há pouquíssimos metros dela, estendeu a mão para agarrar a maçaneta, mas o maquinário parou de repente, arremessando o corpo dela pra trás. Ela foi jogada numa distância longa, onde suas costas acertaram a porta de metal, que se abriu com o impacto a jogando para o segundo vagão. Ela se agarrou a um dos suportes para que não acertasse a segunda porta, parando no meio do trajeto.
Caiu no chão de joelhos, sentindo as dores se alastrarem por todo seu corpo. Puxou o ar com dificuldade, sentindo uma pressão absurda em suas costas.
Aquilo só serviu para deixá-la ainda mais irritada.
Karyn se levantou e passou a caminhar em passos largos, aproveitando que o metrô estava parado. O ódio refletia em suas íris azuis, que pareciam brilhar de forma sombria, mediante a toda a aura negra que se instalava em torno de seu corpo.
Ela ia matar aquela maldita maldição, nem que aquilo fosse a última coisa que ela fizesse em sua vida.
Mas antes de alcançar a metade do primeiro vagão, ela escutou o som de um estrondo e o teto desmoronou em cima dela. Uma dor aguda atingiu sua cabeça, antes de sua visão escurecer totalmente.
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