o6| AQUELE QUE FOI EMBORA

"Em uma outra vida, eu seria sua garota, nós manteríamos todas as nossas promessas, seríamos nós contra o mundo. Em uma outra vida, eu faria você ficar, para eu não ter que dizer que você foi aquele que foi embora."  The one that got away — (Katty Perry)


Starfish, 1980.

— Falke não apareceu, foi melhor assim.

Billie falava sozinha, olhando fixamente para o teto, onde gostava de se confessar para as estrelinhas verdes neon pregadas nele. O quarto estava escuro, mas começava a ser preenchido pela fraca luminosidade do amanhecer. O único som que ecoava no local era do pequeno ventilador que rodava e o da leve respiração de Dandy. Ela apoiou a cabeça na mão e passou a observá-lo dormir. 

As madeixas negras espalhadas pela testa, os cílios grandes e espessos, o queixo quadrado e as sobrancelhas grossas, cada detalhe foi captado. Enquanto se beijavam, Billie teve certeza de que o amava muito. Ela retirou todas as suas dúvidas a respeito de quem realmente estava apaixonada, e no fundo, já sabia a resposta. Dandy fazia seu corpo queimar como os incêndios naturais da Flórida, onde suas labaredas agiam como combustível inflamável em seu corpo.

— Eu amo você — sussurrou, alinhando as madeixas dele espalhadas pela testa. — Muito.

— Eu também te amo.

— Estava acordado esse tempo todo, é?

— Você estava me secando, não tinha como não acordar.

Billie se aconchegou no peito dele, o fazendo passar seus braços másculos ao seu redor. Dandy se chateou ao lembrar que prometeu ao tio que iria ajudá-lo na oficina naquele dia, mas como ainda era muito cedo, decidiu curtir sua garota naquele começo de manhã agradável. O corredor voltou a dormir muito rápido, mas Billie simplesmente não conseguia. Seus pensamentos a levaram direto para Falke. 

Ela não conseguia lembrar em que momento a amizade deles ganhou tons mais coloridos, e de repente, tão acinzentados quando uma nuvem carregada. A corredora gostava dos beijos que eles davam em cima da prancha enquanto tentavam pegar onda, gostava de quando faziam amor nos casebres abandonados de Palm Beach, e de quando procuravam fitas preciosas nas sessões musicais das lojas de conveniência.

Seu coração apertou com a inundação de lembranças, que agora pareciam distantes e anuviadas. Billie sabia que Falke estava prestes a pedi-la em namoro, suas ações demonstravam todos os sinais, além de Zuri ter contado. Se Dandy não a tivesse puxado pela mão naquele dia, ela com certeza teria dito sim. 

Em partes, ela agradecia por ter sido interrompida, pois tinha certeza de que estar namorando não a faria imune aos seus sentimentos devastadores por Dandy. A corredora não queria se sentir culpada, afinal, poderia ficar com quem ela bem entendesse, mas... não conseguia evitar o sentimento de culpa que a inundava. Para ela, Falke se tornou aquele que foi embora. Ela e Dandy não fizeram amor naquela noite, permaneceram apenas nas carícias e abraços. Estavam indo devagar, pois sabiam que os sentimentos de Falke ainda estavam em jogo.

***

— Não sabia que ressaca de amor era pior do que a de álcool.

Falke murmurou para si mesmo, fitando o teto branco. Ele passou horas em claro antes de conseguir pegar no sono, e se o teto forrado não fosse completamente branco, teria decorado cada detalhe dele. As horas de insônia o fizeram refletir bastante. Após preparar uma infusão de camomila com erva-doce e escutar os roncos estridentes de Emília ecoando pela casa, ele decidiu se refugiar no parapeito da janela. 

Uma brisa agitava seus cabelos platinados e tornava frias algumas lágrimas mornas que ainda escapavam. Falke as enxugou e bebericou o chá, fazendo uma careta por causa do sabor terrível da camomila. Não demorou muito para que ele voltasse a si e risse da besteira que falou para a avó. Não se culpou, ainda estava absorvendo a realidade que tanto temia. O norueguês amava Billie o suficiente para deixá-la ir, e entendia que o seu coração pertencia a outro.

Ele não conseguia evitar ficar magoado, mas era maduro o suficiente para entender que não existia espaço para ele naquela relação, apenas como bons e velhos amigos. Falke cansou de devanear e caiu no colchão, completamente sonolento. Seus pensamentos ainda estavam agitados, mas foram se aquietando aos poucos. Logo o sono veio, e ele dormiu. Seu coração estava magoado, mas todo o seu ser se encontrava mais leve, pois Billie finalmente se decidiu.

Logo cedo pela manhã, ele costumeiramente acordava com os sons de panelas e arrastão de chinelos que sua avó fazia ao acordar. Emília não conseguia ser menos ruidosa do que aquilo, e isso resultava no neto acordado em plena seis horas da matina. Falke a abraçou por trás e beijou sua cabeça. Ela ficou feliz ao vê-lo com o semblante sereno, mas as bolsas levemente inchadas abaixo dos olhos evidenciaram que sua noite não foi tão tranquila. Os dois se deleitavam do desjejum em silêncio.

A idosa preferia que o neto se abrisse de forma espontânea, por isso apenas aguardava que ele se sentisse confortável para falar sobre suas aflições. Porém, Emília não estava esperando aquelas palavras de Falke, não agora que ele finalmente estava tão perto.

— Vovó, não leve em consideração o que eu falei ontem — ele disse, já notando o olhar sombrio dela. — Eu estava apavorado.

— Como assim?

— Sobre a oferenda, continuarei com as orações.

— Não! — Emília se levantou de repente, fazendo sua cadeira tombar para trás. — Não se pode prometer uma coisa e depois voltar atrás!

— Eu não fiz nenhuma oferenda, certo? Falei aquilo porque estava muito magoado, não vou oferecer a alma do meu melhor amigo.

— Falke! A deusa precisa de algo novo!

— Existem milhões de oferendas para ela, por que a minha deve ser diferente?

— Ela verá que você se importa!

— Mas eu me importo, sempre me importei!

— Não! Desde que saiu de nosso continente, você ignorou as suas tradições!

Em partes, Emília estava correta. Os condados eram predominantemente católicos e protestantes, não tinha espaço para o paganismo. Falke se afastou dos rituais e das celebrações, mas nunca deixou de fazer as oferendas nos dois equinócios de cada ano.

— Você é especial, Falke. Eu sinto isso...

— Vovó, por favor — ele implorou. — Minha decisão está tomada.

Emília suspirou e assentiu. Ela sabia como o neto poderia ser irredutível, por isso resolveu não discutir. Ela esperou que ele saísse de casa e chorou um pouco. A idosa estava desesperada, pois sentia que o neto estava cada vez mais se afastando de suas tradições. Ela tinha certeza de que o neto tinha o sangue antigo dos deuses correndo nas veias, e achava que uma oferenda humana ajudaria a despertar a ancestralidade. Os Truelsen faziam belos cultos aos ancestrais, e as oferendas faziam parte. Sendo a matriarca da família, Emília não poderia permitir que um membro tão importante fosse embebido nos preceitos das religiões da civilização europeia.

Falke nunca gostou de sacrifício animal e humano durante os rituais, e agradecia a mãe por não levar adiante aquele costume. Aquilo era um segredo que o platinado preferia guardar, pois sabia que os amigos poderiam se afastar dele. Emília secou as lágrimas, organizou a cozinha e começou a preparar a bebida que as oferendas tomavam antes de serem sacrificadas. Ela não iria permitir que ele continuasse burlando as coisas.

Ele havia dado um nome, e ela o faria oferecê-lo a deusa.

Emília Truelsen era uma excelente preparadora de chás, sucos refrescantes e energéticos. Quando escutou o neto falar o nome do melhor amigo como uma possível oferenda, ela estranhou. Dandy Spring costumava frequentar a sua casa com o restante da Pluma, e Emília preparava ótimos energéticos para os corredores se saírem bem nas apostas. 

Todos gostavam muito dela, a viam como uma protetora. Porém, Emília não poderia protegê-los agora, o nome de Dandy foi dado e seria ofertado. Os corredores da Pluma geralmente passavam na casa dela para tomar o energético antes de correr, e uma grande corrida tinha como a atração principal: Dandy Spring.

Emília fez a bebida e separou em uma garrafa. Tudo parecia estar se encaminhando, e ela tomou aquilo como um sinal, que o rapaz estava destinado a ser uma oferenda. Billie, Dandy e Falke nasceram no mesmo dia, no segundo equinócio do ano de 1955. Ambos fariam vinte e cinco anos. O universo estava em sintonia para que a oferenda acontecesse — Dandy estaria fechando um ciclo de vida em conjunto com Falke no mesmo dia do equinócio, a corrida aconteceria no mesmo dia e ele passaria nos Truelsen para tomar o energético, que ela trocou pela bebida. Falke não poderia saber, caso contrário, acabaria com os planos da avó no mesmo instante. Emília arquitetou tudo, sem deixar transparecer que tramava algo. 

O aniversário de Falke estava chegando, e com ele, o equinócio.

***

Dandy estava animado para a grande corrida. As apostas estavam muito altas e Billie aceitou correr com ele. O clima andava tenso entre os membros da Pluma nos últimos dias que antecederam a corrida, pois todos sabiam o que estava acontecendo entre os três aniversariantes do grupo. Falke decidiu não tirar satisfações com Billie, pois sentiu que ela não lhe devia nada. A corredora estranhou aquela atitude, ele agia como se eles nunca tivessem se envolvido. 

Falke a tratava como antes de se envolver romanticamente, e para Billie, era como se ele soubesse de algo. Ele resolveu deixar tudo aquilo para trás, não desejava perder a amizade dos amigos, por isso agiu como se nada tivesse acontecido. Ela e Dandy ainda não tinham assumido o relacionamento, não havia muita coisa para se dizer.

Todos sabiam que eles estavam envolvidos, só estavam dando um tempo para assumir. Algumas vezes ela tentava ficar a sós com o norueguês, mas ele sempre arranjava um jeito de correr para longe dela. Billie não queria deixar as coisas mal resolvidas entre eles, mas tratando-se de assuntos relacionados ao coração, sabia que tudo se tornava mais complicado.

— Ei — Billie chamou antes que ele saísse apressado. — A gente pode conversar?

Zuri os olhou desconfiada e fez uma careta de nojo antes de sair da sala, os deixando a sós para se resolverem.

— É melhor a gente ir logo, acho que vai chover...

— Falke, por favor. Eu não aguento mais esse clima — implorou.

Ele baixou o olhar e colocou as mãos nos bolsos, dando de ombros para o pedido dela.

— Certo, me desculpa.

— Pelo o quê?

— Por estar sendo um babaca.

— Não é isso, é que... — Billie engoliu em seco e se aproximou. — A gente marcou de se encontrar naquele dia, você não apareceu. Ficou tudo estranho depois disso.

— Você tinha visita, eu não quis atrapalhar.

O coração de Billie apertou e sua boca secou. Ela simplesmente não havia pensado na possibilidade de Falke ter entrado em sua casa. Dandy não girou a chave quando entrou, por isso a campainha não soou, ele entrou e viu tudo. Eles não fizeram amor, mas os beijos eram o suficiente. Ela se odiou por voltar a encarar aqueles olhos negros e encontrar o reflexo de um coração partido. Ela abriu a boca para falar, mas nada saiu além de um soluço patético.

— Eu só queria que você me dissesse a verdade — Falke não conseguiu segurar as lágrimas. — Poxa, somos adultos. Não custava nada ser sincera comigo.

— Eu, eu...

— Acho que nada mais depois daquela noite importa, okay? Não há mais espaço para mim na sua vida, não da forma que eu gostaria.

— Falke! — Billie soluçou e tentou se aproximar, mas ele se afastou. — Você sempre vai ter espaço na minha vida!

— Billie, eu te amo demais. Não vou ser hipócrita e dizer que está tudo bem vê-la com o meu melhor amigo, porque não está.

— Não diz isso...

— Mas é verdade, não espere mentiras vindas de mim.

Embora magoado, Falke não conseguia odiá-la.

— Não se preocupe, seremos amigos. Só não absorvi tudo, ainda.

— Você me perdoa?

— Nunca vou guardar mágoas de você, só preciso de tempo.

— Eu também não.

Falke limpou as lágrimas e conseguiu respirar aliviado. Em partes, a situação fez a amiga sair de cima do muro, pois a sua indecisão o magoava mais do que a escolha.

— Escuta, eu mudei de número — ela vasculhou o bolso da jaqueta e retirou o papel com o número. — Pega, pode me ligar quando quiser.

— Pode apostar que eu vou ligar.

***

Emília estava apreensiva. Ela gostava muito dos amigos do neto, mas acima deles, a sua família vinha sempre em primeiro lugar. A idosa cuidou de cada detalhe para que Falke não percebesse nada, e quando o dia chegou, ela aguardou pacientemente. Ele passou o dia fora com o restante dos amigos, já que ambos estavam aniversariando. Ela não gostava muito da ideia dele comemorar o aniversário aos moldes da comunidade cristã, mas procurava relevar. 

Emília retirou os energéticos da geladeira e separou o de Dandy, que continha a bebida. A campainha tocou, e logo em seguida Falke entrou com os amigos. Estavam todos radiantes e bem vestidos nos uniformes da Pluma. Emília recebeu todos com um sorriso amistoso, e distribuiu as garrafas.

— Preciso ir ao banheiro, volto já — disse Falke.

Emília aproveitou a ausência dele para dar o primeiro passo da oferenda.

— Aqui, Dandy — ela entregou a bebida nas mãos do rapaz antes que ele pudesse pegar outra garrafa. — Falke me disse que é você quem vai correr hoje, então caprichei no seu. Pode ser um pouco mais forte, mas vai ajudá-lo.

— Obrigado, tia Emília.

Dandy abriu a garrafa e bebeu quase tudo em quatro grandes goladas. A bebida tinha o cheiro muito forte e característico de alcachofra. Ele limpou a boca com dorso da mão, e logo de início sentiu uma sensação estranha, que se assemelhava a tontura.

— Nossa, esse foi dos bons! — exclamou.

— Quero provar!

— Espe... — Emília tentou impedir.

Billie arrancou a garrafa da mão de Dandy e bebericou o restante, fazendo uma careta de nojo. Emília não falou mais nada, mas a sua expressão de medo não passou despercebida. Escorada no balcão, Zuri observava desconfiada o comportamento dela. A idosa parecia ansiosa demais, esfregava as mãos e sorria apenas quando Dandy fazia contato visual com ela. O sabor amargo demais o fez querer provocar, mas não o fez. Logo seu organismo se acostumou com a sensação, que se resumiu a um formigamento nos pés. 

Todos agradeceram, Emília desejou felicitações para os aniversariantes e respirou aliviada quando saíram. Cada um dirigia seu carro, por isso foram na frente e aguardaram Falke na tenda da Pluma montada nos alojamentos da pista. O norueguês desceu a escada e logo no meio dela sentiu o cheiro forte e típico da bebida. Ele desceu desesperado, já temendo o pior. Seu olhar incrédulo encontrou o amedrontado da avó, que só conseguia pensar na pobre menina que também havia tomado.

— Esse cheiro... — Falke olhava assustado para ela. — Vovó, o que você fez?

— O que você deveria ter feito.

Falke não parou para processar a informação. Logo ele já estava na estrada acelerando o máximo que podia para chegar a tempo de evitar uma tragédia. Seu coração batia acelerado, e o medo de perder um dos amigos o invadiu com tanta força que ele ignorou todos os sinais e quase atropelou um cachorro. A adrenalina do desespero o fez chegar em menos de cinco minutos. O rapaz saiu apressado do carro e correu até a tenda da Pluma, encontrando Dandy vestindo suas luvas. Ele se assustou quando Falke entrou como se o mundo estivesse acabando lá fora.

— Dandy! Olha, eu sei que o que eu vou dizer agora vai soar estranho, mas por favor, você precisa acreditar em mim!

— Calma, senta aí.

— Não há tempo! Minha avó deu algo péssimo para você tomar.

— Era só energético.

— Não, era a bebida que fazemos para purificar um corpo para a oferenda, minha avó vai oferecê-lo a deusa. Você precisa vomitar, agora!

Dandy o olhava incrédulo, achando que o outro estava delirando.

— Falke, eu sempre respeitei as suas tradições, mas isso é loucura. Sei que não existe nada disso, okay? Não queria falar porque você é meu melhor amigo.

— Não vou ficar perdendo tempo em tentar convencê-lo, a sua vida está em risco.

Falke avançou contra Dandy, o pegando desprevenido ao lhe aplicar uma rasteira. O norueguês o virou de bruços e ficou por cima do amigo, segurando sua cabeça e enfiando os dedos em sua garganta. Ele quis gritar quando Dandy os mordeu, mas a dor seria pior se o perdesse para sempre. Dandy tossiu e vomitou um pouco, mas conseguiu fazer força o suficiente para que Falke caísse para o lado. O noruegês era mais alto e mais forte, e o corredor não estava afim de levar uma surra no dia da corrida. Ambos se levantaram, e quando Falke deu outra investida, Dandy conseguiu lhe aplicar um soco e empurrá-lo para fora da tenda.

O platinado se desequilibrou entre os panos da lona e caiu para fora, batendo a cabeça no rochedo em que estava cravado um dos pinos da tenda. Dandy respirava ofegante, ainda tentando entender o que aconteceu. Falke estava desacordado do outro lado, e Dandy pensou que ele talvez tivesse ido embora. O corredor escutou alguém anunciando a chegada dos competidores e se retirou da tenda, rumo a sua última corrida nas pistas.

***

— Que demora! — Billie exclamou quando ele entrou no carro. — Achei que fosse me abandonar.

— Aconteceu algo muito estranho agora.

— O quê?

— Falke entrou alterado na tenda, disse que Emília me deu a bebida para oferenda ao invés do energético.

— Mas isso não é o que o Falke toma no equinócio?

— Sim, ele disse que ela pretende me oferecer a deusa. Ele avançou em mim, me derrubou e enfiou os dedos na minha garganta, queria me fazer vomitar a bebida.

— Meu Deus — Billie estava incrédula. — Eu também bebi, será que não é melhor a gente vomitar? Falke não faria tanto estardalhaço para nada.

— Pelos céus, Billie. É óbvio que ele só estava fazendo cena, talvez ainda tenha raiva de mim pelo o que aconteceu entre nós.

— Não é isso...

— O que é então?

Billie não queria que o clima ficasse tenso, por isso decidiu não levar a discussão adiante. Ela também acreditava nas coisas que Falke falava, por isso iria colocar o que bebeu para fora.

— Olha, esquece isso. Eu vou ao banheiro...

— Preparados? Vou dar a largada em alguns instantes — indagou Jeane Spouse, olhando através da janela.

— Dá tempo de ir ao banheiro? — Billie indagou, se preparando para abrir a porta.

— Quando eu der largada você vai ficar no banheiro então — rebateu Jeane, saindo sem esperar resposta.

— Vadia — Billie murmurou.

— Você quer ir? Eu os faço esperar — disse Dandy.

— Não, vamos logo com isso.

Os outros dois competidores já estavam na linha de largada, então ela resolveu ficar. Dandy assentiu e segurou o volante. Ele se sentia letárgico, mas nada que pudesse atrapalhar. A largada foi dada, e o Mercury Monterey avançou em disparada na pista. Os outros competidores ficaram pateticamente para trás, enquanto a Pluma corria sem impedimentos, como se não houvessem freios. Não demorou muito para que Dandy começasse a se sentir distante. 

A pista parecia repleta de bifurcações oscilantes, que iam de cima para baixo e para os lados. O corredor apertou os olhos e balançou a cabeça para afastar a tontura, mas ela continuava ali. Ao longe, a platéia estranhou ao ver o carro da Pluma dar alguns zigue-zagues desorientados. A essa altura, um dos competidores os ultrapassou, mas a preocupação de Billie era outra. Ela percebeu que o amigo suava frio, e não era por causa da corrida. Dandy já estava quase fora de si quando seus pés e mãos ficaram tão dormentes que sequer os sentia, ele sabia que não conseguiria continuar.

— Billie, eu não consigo! — ele gritou, sobressaindo sua voz em meio à cacofonia dos carros na pista. — Não estou bem.

— Vamos parar, encosta!

Porém, Dandy não estava mais acordado. Ele tombou para frente no volante, e Billie gritou desesperadamente quando o carro desorientou em alta velocidade. Enquanto o veículo seguia desgovernado, ela tentou agarrar o volante para tentar tirá-los da pista em segurança, mas já era tarde demais. O terceiro competidor ainda tentou desviar do Mercury Monterey desgovernado, mas também vinha em alta velocidade, conseguindo realizar apenas uma manobra de ultrapassagem arriscada, e ainda colidindo de lado com a Pluma. 

Iam Denver deu um cavalo-de-pau e freou bruscamente, fazendo a fumaça sair dos pneus. Antes do Mercury Monterey capotar, ele viu o vislumbre de Dandy moribundo e Billie desesperada ao volante. A colisão foi o último impulso, pois o carro desgovernado seguiu em alta velocidade para os rochedos que margeavam a pista.

Billie desejou que estivesse inconsciente enquanto o carro capotava. O cinto os impediu de serem arremessados para fora, e seus corpos se debatiam e retorciam dentro da lata de sardinha amassada. Estilhaços de vidro perfuravam seus corpos, enquanto seus ossos se quebravam com o impacto das pancadas. O carro da Pluma capotou quatro vezes, parando de cabeça para baixo. Billie ainda permanecia semi-consciente o suficiente para assistir aos últimos instantes de vida do amigo. 

Dandy estava com o rosto virado para ela, e nada tentou falar, pois sangue e espuma espessa escorriam de sua boca. Ela o encarou enquanto lágrimas abriam caminho em meio ao seu rosto ensanguentado. Billie piscou diversas vezes para afastá-las, e presenciou aquelas íris verdes faiscantes dilatando enquanto se mantinham fixas no olhar dela. Billie sentiu a dor da perda com mais impacto que o acidente, e quis gritar, mas estava quase inconsciente. Ela permaneceu alguns instantes de cabeça para baixo, observando Dandy já sem vida, até que desacordou.

***

Starfish, 2025.

Billie acordou com um sobressalto. O corpo dormente não a impediu de se levantar e pegar uma camiseta qualquer. Ela correu em disparada para fora do quarto, quase tombando ao descer a escada. Seus nervos estavam à flor da pele, e ela não se importou em sair nas ruas de Starfish dirigindo com insanidade. A corredora logo alcançou a pista da sua última corrida, e saiu do carro aos tropeções. Seu coração batia com tanta força que ela achou que ele fosse sair pela boca.

— Dandy! — berrou, com lágrimas nos olhos. — Dandy, Dandy!

Billie olhou desesperada ao redor, não sabendo que tipo de loucura ou delírio estava passando. Era pouco provável que Dandy não estivesse ali naquele horário. Somente a escuridão desértica a rodeava, além do céu estrelado acima de sua cabeça, sendo o único a testemunhar a sua agonia. Ela sentiu a presença dele, e ao se virar, o encontrou a observando. Dandy carregava um semblante confuso, sem entender porque ela estava ali, desorientada e triste. Billie correu até ele e o abraçou com toda a força que podia, tentando provar a si mesma de que ele realmente estava ali.

— Ah meu Deus, Dandy! —murmurou, com o rosto enterrado no pescoço dele. — Que bom que você está aqui.

— Billie Jean, o que houve?

Ele se afastou o suficiente para segurar o rosto dela entre as mãos. Seus olhos verdes notaram que ela parecia exausta, como se não dormisse há dias. Seu polegar aparou mais uma lágrima que descia desenfreada.

— Eu sonhei que você morreu.

Dandy a abraçou com a mesma intensidade e beijou o topo de sua cabeça, ele não queria que ela visse seu olhar triste e perplexo. O ex-corredor não queria perder a única pessoa que o enxergara durante todos aqueles anos sendo invisível.

— Já passou, foi só um pesadelo — ele disse. 

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