o3| LUZES OFUSCANTES

"A cidade do pecado está fria e vazia, não há ninguém por perto para me julgar. Não consigo ver claramente quando você se foi. Eu disse, ooh, estou cego pelas luzes. Não, não consigo dormir até sentir seu toque." — The Weeknd (Blinding Lights)


Starfish, 2025.

Billie prometeu livrar o jardim das ervas-daninhas que impediam o crescimento da horta de Amélia, então muito cedo resolveu levantar e lidar com as indesejadas inquilinas. Enquanto fazia seu café, algumas lembranças da noite passada invadiram seus pensamentos. Ela sorriu ao recordar da vitória, e de como o corredor misterioso a ajudou na conquista mesmo com a concorrência apelando para a sabotagem.

— Dandy Spring — murmurou. — Nome gostoso de se pronunciar, que nem o dono.

Imediatamente ela pegou seu celular e abriu o Instagram. Procurou pelo nome do rapaz e encontrou alguns Dandys, mas nenhum era Dandy Spring. Billie ficou chateada, pois preferia iniciar uma paquera pelas redes sociais, e pelo visto, seu alvo não era muito chegado ao mundo virtual. Ela tentou mais algumas vezes, digitando palavras-chave que ele talvez pudesse utilizar ao invés do nome, mas nada. O consolo de Billie era saber que se encontrariam naquele dia. 

Ela estava animada para saber o que Dandy tinha para ensinar, mas ainda assim gostaria de ficar conversando com ele durante o dia, antes do encontro. Sem muitas opções, a corredora partiu para o jardim após o café. As ervas-daninhas já haviam tomado boa parte da horta, e os tomates estavam todos repletos de vermes suculentos. Ela fez uma careta de nojo quando uma lagarta roliça despencou de um dos tomates e alcançou a terra descendo por um fio de seda.

— Hoje vai ser um ótimo dia, não é mesmo? — perguntou para a lagarta.

Amélia observava a neta falando sozinha enquanto arrancava as ervas-daninhas com uma pá de jardineiro. Às vezes ela achava que Billie falava com algum espírito, mas nunca conseguia sentir que alguma presença do além-mundo a rodeava. Concluiu que a neta apenas apreciava um bom monólogo. Amélia conseguia sentir a energia vibrante da corredora de longe, e soube que algo muito bom havia acontecido naquela noite. Ela se serviu de um pouco de café, e foi de encontro com a matadora de lagartas.

— Você é uma péssima jardineira! — exclamou ao ver a destruição. — Não contrataria nunca.

— De nada — resmungou Billie.

— Como foi a corrida ontem? — Amélia perguntou, bebericando o café.

— Tentaram me sabotar, mas eu venci — Billie limpou o suor da testa e jogou a ferramenta de jardinagem para o lado. — Vovó, um cara gostoso me ajudou a vencer. Ele também tem uma jaqueta da Pluma.

— Um corredor gostoso? — Amélia riu. — Talvez seja só uma jaqueta comum que você se confundiu, as jaquetas da Pluma eram únicas.

— Bem, ele tinha um — Billie deu de ombros.

Amélia olhou pensativa para sua xícara de café e pensou em uma possibilidade única. Billie nunca se queixou de ter visto algo, mas sangue médium corria em suas veias, então era provável que não soubesse diferenciar os vivos dos mortos. A corrida aconteceu na mesma pista do seu acidente, por isso não descartou aquela chance.

— E como o corredor gostoso se chama?

Antes que a neta respondesse, alguém as chamou.

— Billie, Amélia! — Alice surgiu atravessando o outro lado da rua, acompanhada de seu yorkshire vesgo. — Bom dia!

— Bom dia, Alice. Que gracin... — Amélia se interrompeu ao reparar que o cachorro era muito fedorento e feio. — Que gracinha, né?

— Não precisa fingir, vovó. Esse cachorro é feio que dói. — Amélia não segurou a risada, fazendo Alice revirar os olhos. — Apenas aceite, Alice.

— Às vezes eu me pergunto como ainda sou sua amiga! — bufou. — Não fala assim do Precioso!

— Meninas, eu tenho trabalho para fazer — Amélia disse. — Alice, fique à vontade com seu cachorro. Na minha casa até bicho feio pode entrar, esse daí assusta até assombração.

Alice abriu a boca para protestar, mas a médium já havia entrado. A loira se juntou a Billie na gargalhada, e juntas entraram para comer algo e falar do novo assunto favorito: Dandy Spring. Apesar de não ter conseguido avistar o corredor por causa da grande quantidade de luzes ofuscantes no local, Alice escutou tudo atentamente. Ela também o procurou em todas as redes sociais, até que apelou para o MySpace, mas nada. 

Elas se conformaram em criar algumas teorias sobre quem ele poderia ser. Quando se cansaram de fantasiar, já era para lá do meio-dia. Antes de descerem para o almoço, Alice sugeriu que ela convidasse Dandy para assistir ao ensaio da sua banda, que seria no sábado. A ideia era boa, assim ele se juntaria ao grupo e Billie ainda mataria a sede que estava sentindo dele.

— Meninas, o almoço vai esfriar! — Amélia gritou da escada.

— Vem, fedorentinho. Vamos almoçar — Billie chamou o cachorro, que veio abanando o rabo sem pestanejar. — Tão feio, igual a dona.

***

Amélia conviveu a vida toda com os mortos. Para ela, esse fato soava um tanto irônico. Desde que descobriu sua mediunidade, a abraçou como um dom e passou a aperfeiçoá-la ao longo dos anos, principalmente enquanto cursava Teologia na universidade. Para a médium, a morte não era tão terrível. Às vezes concordava que ela chegava cedo demais e de formas inesperadas para algumas pessoas, mas assim eram as leis do universo, ninguém era imune. 

Porém, um dos fardos que Amélia carregaria até o fim de sua vida na terra, seria escutar e mediar aqueles que ainda não conseguiram encontrar paz. Ela olhava para o cadáver de uma mulher jovem, estendido na mesa metálica a sua frente. Andréia Yates, 25 anos, caucasiana.

As lacerações nos pulsos deixaram marcas hediondas na pele delicada, agora um pouco rígida. Amélia não gostava de receber cadáveres de pessoas que caiam no abismo do suicídio, pois acabava absorvendo toda a energia catastrófica do corpo. Ela hesitou durante algum tempo. Procurou conhecer um pouco melhor aquela moça, mas em seus arquivos mostrava apenas quem ela era nos seus derradeiros dias de insanidade, não revelava a Andréia antes dos seus dias de tormenta... quem ela realmente era, o que gostava de fazer, o que a fazia rir, quais músicas gostava de escutar, qual sua comida favorita... nada.

Ela olhou para as mãos delicadas de Andréia e finalmente as tocou. Vibrações intensas percorreram seus braços e seu corpo logo começou a ter pequenos espasmos. Amélia não largou a mão de Andréia, e sentiu de forma impactante, os dias de agonia e desespero que antecederam a sua morte. Medo. Desespero. 

Solidão. Raiva... e então o nada, o vazio. Amélia se afastou com um solavanco, e teve que apoiar as mãos na mesa de metal frio para não cair. Suas pernas estavam bambas e a respiração ofegante. Seu queixo começou a tremer e as lágrimas vieram. Ela se sentiu terrivelmente triste por Andréia, pelo fim que teve.

— Você vai me ajudar? — uma voz soou atrás dela.

Amélia não precisava adivinhar quem estava ali. Ela já esperava que o espírito aparecesse. Sempre quando os tocava, aqueles que ainda vagavam a procuravam. O corpo funcionava como uma ponte de comunicação entre ela e os espíritos. Quando Amélia os tocava, eles vinham. A idosa se virou, agora com a respiração mais calma, e fitou a mulher. O semblante de Andréia estava abatido, mas o seu olhar transparecia certa paz, alívio, talvez.

— É claro que sim, querida — Amélia disse. — Vamos nos conhecer um pouco melhor?

Amélia teve uma longa e profunda conversa com Andréia. Não foi uma alma tão fácil de mediar, ainda estava muito atormentada. Através das mãos da médium, o espírito redigiu uma carta de perdão, que deveria ser entregue para a sua mãe. Amélia terminou de maquiar o corpo e partiu para entregar a carta. Andréia apareceu no porão no final do dia, e chorou agradecida. Ela partiu, e deixou na idosa as marcas de sua tormenta. 

Amélia subiu, tomou um banho para se livrar da aura mórbida, abriu o closet e retirou a velha caixa de recordações. Carl não gostava de ver a esposa se remoendo em lembranças tão intensas, por isso ela aproveitou o tempo livre enquanto ele não aparecia. A caixa sempre fazia Amélia chorar.

Os melhores momentos da sua vida, depois de Phil, Billie e Carl, estavam todos dentro dela. As mãos enrugadas alcançaram a velha fotografia dos integrantes da Pluma reunidos, tirada duas semanas antes do acidente que os separou para sempre. Seu coração apertou e as lágrimas rolaram ao ver como o sorriso do seu melhor amigo estava radiante naquela foto. 

Quando o Mercury Monterey em que eles corriam capotou, a aposta de racha daquele dia se tornou um pesadelo para todos. Amélia sobreviveu por muito pouco, seu melhor amigo morreu ao volante e o restante se dispersou e romperam contato. A ex-corredora nunca mais pisou naquela pista, pois trazia memórias dolorosas demais. Amélia pegou o maço de recortes de jornais que anunciavam a tragédia na época. Ela não entendia o motivo de guardar aquilo, mas, para ela, mesmo em meio a dor, aqueles recortes traziam a memória viva do seu amigo.

Ela nunca entendeu porque aquele carro capotou. Seu amigo era simplesmente o melhor de todos, sempre mantinha a segurança nas corridas e nunca aceitava qualquer tipo de entorpecente. Alguns rumores de que o carro estava sabotado surgiram junto com os rumores de que ele foi envenenado. Os pais de Amélia resolveram sair da cidade quando as investigações começaram a esquentar, então, após um depoimento, eles foram liberados. 

Porém, após anos longe de Starfish, lá estava ela de volta. Quando retornou para a cidade natal, relutou em procurar alguma coisa sobre o caso, mas ao pesquisar nos arquivos da cidade, soube que fora arquivado por falta de evidências que pudessem comprovar algumas das hipóteses.

— Pardais selvagens — murmurou, como ela e o amigo eram conhecidos entre os outros corredores. — É uma pena que a sua luz tenha se apagado tão cedo, meu amigo.

***

— Nem acredito que ele não vem! — resmungou Billie, apertando o volante com força.

Vinte minutos se passaram desde o horário marcado, e sua paciência se esgotou após esperar mais cinco.

— Quer saber, que se dane! Não vou esperar nem mais um segundo!

Ela pisou no acelerador, mas foi impedida quando a porta do carro abriu com força e Dandy pulou para dentro.

— Ai, meu caralho, que susto! — ela berrou, dando um solavanco para frente e quase batendo a cabeça no volante. — Você sempre faz isso?

— Isso o quê? — perguntou, convencido.

— Assustar as pessoas — Billie se calou ao perceber que não adiantaria nada discutir. — Escuta, deixa pra lá. Hum, boa noite?

— Boa noite, Billie Jean. Olha, me desculpa, é que é meio difícil aparecer nesse horário.

— Então da próxima vez marcamos um horário melhor.

— Certo.

Billie sentiu o rosto corar ao perceber o olhar intenso de Dandy sobre ela. O rapaz a encarava com um vinco no meio da testa, e passeou os olhos até a jaqueta dela. Tudo na corredora era familiar, o rosto, os trejeitos e principalmente a jaqueta adaptada.

— Perdeu alguma coisa? — Billie rebateu, como ele fez no primeiro encontro.

— Não — Dandy observava cada centímetro do rosto de Bille. — É que você me lembra uma pessoa, vocês são muito parecidas.

— E por acaso essa pessoa é a sua namorada? — resolveu ser direta, já sondando o terreno.

— Não — Dandy se escorou no banco e jogou o pescoço para trás, observando o céu estrelado pelo teto aberto do carro. — Uma amiga.

Billie se animou, e ficou em silêncio ao notar o rapaz com o olhar perdido, imerso nas luzes brilhantes das estrelas que banhavam o céu naquela noite. Ela desejou saber o que se passava diante daquele semblante nostálgico, no que ele estaria pensando, ou em quem.

— Dandy, me passa seu Instagram?

— O quê? — indagou, ainda olhando para as estrelas.

— Me passa seu Instagram.

— O que é isso?

— Tudo bem, já entendi — ela se deu por vencida ao perceber a ironia. — Você se ofereceu para me treinar, então devemos ter uma comunicação melhor, pode ser que um de nós não possa estar livre.

— Estou aqui toda noite, Billie Jean — ele virou o rosto para ela e sorriu. — Sempre.

— Toda noite? Isso tudo é vontade de me ver?

— E se for? — provocou.

— Então eu amei.

Ambos sorriram, então começaram os treinos. Dandy era realmente muito bom, ensinou truques jamais vistos para Billie. Eles se sentiam selvagens na imensidão daquela estrada vazia, onde somente o som dos pneus eram ouvidos em meio a vastidão fria e escura de uma típica noite nas rodovias mais afastadas de Starfish. Billie aprendeu a fazer um cavalo-de-pau duplo, um movimento que nunca pensou existir. Enquanto praticava a manobra inusitada e sentia o carro girar, o cheiro de pneu quente bateu no rosto de ambos, enquanto suas cabeças estavam jogadas para trás, fitando o céu estrelado se transformar em um grande borrão.

Ao terminarem, a corredora sentiu a cabeça latejar. Seus sentidos estavam à flor da pele, e no momento da adrenalina, desejava apenas que a boca de Dandy estivesse colada a sua. Ela sabia que poderia estar sendo precipitada, afinal, só se conheciam há duas noites. Porém, Billie sentia que com Dandy as coisas não estavam tocando conforme a música. Ela não sabia explicar, além da beleza inegável do rapaz, os motivos para uma conexão tão repentina. A corredora gostava de paquerar, mas com ele, as coisas estavam indo para um rumo bem diferente, era como se já o conhecesse. A presença dele causava arrepios gostosos em sua nuca, e os pelos de seu braço ficavam todos em pé.

Billie gostava da sensação daquele arrepio, era bem diferente dos calafrios que sentia ao se aproximar do porão de sua casa. Dandy a observava com o mesmo semblante nostálgico, como se a garota à sua frente fosse uma memória distante. Ambos se encararam em silêncio, e ele sabia o que Billie queria, mas tinha receio de que aquele ato pudesse afastá-la.

— Você vai me beijar ou não? — ela perguntou.

— Só me prometa que não vai correr para longe de mim.

— É mais fácil eu correr para cima de você.

Dandy se inclinou um pouco mais para frente, até que sua respiração se misturou com a dela e formou uma única nuvem de vapor. Billie notou traços de receio no rosto do rapaz, então retirou sua luva e levou a mão até a nuca dele. Ambos estremeceram com o toque. Dandy a olhava surpreso, enquanto Billie fechava os olhos e o aguardava. 

Ao sentir os lábios dele nos seus, ela achou que iria explodir. Arrepios intensos percorreram seu corpo enquanto o sentia invadir sua boca com a língua. Dandy agarrou o rosto de Billie com as duas mãos e a puxou para mais perto, ainda entre beijos, quase a fazendo sentar em seu colo. Ambos sentiam que o mundo poderia estar se acabando lá fora, que não notariam.

"Meu Deus, que sensação maravilhosa é essa?", ela se perguntou quando Dandy mordiscou seus lábios para finalizar o beijo.

— Você sentiu isso? — ele perguntou, ofegante.

— Sim, eu senti você. 

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