o2| BILLIE JEAN NÃO É MINHA AMANTE
"Ela me disse que seu nome era Billie Jean, enquanto fazia uma cena! Então todos viraram com os olhos que sonhavam em serem aqueles que irão dançar ao redor da pista. Billie Jean não é minha amante, ela só é uma garota que afirma que eu sou o tal." — Billie Jean (Michael Jackson)
Starfish, 2025
Billie se sentiu estranhamente nostálgica quando entrou no Opala amarelo da avó e começou a dirigir. As luzes ofuscantes de Starfish a deixavam maravilhada, e tornavam-se um borrão dourado enquanto ela avançava na noite fria. As ruas estavam apinhadas de manifestantes, eram os defensores da vida marinha.
As estrelas-do-mar estavam morrendo por causa de uma doença devastadora que atingiu toda a costa do país e se disseminava por lá. Billie adorava as estrelas-do-mar, em especial, quando visitava as praias com Alice, por isso abaixou o vidro para assinar a petição. Quando conseguiu passar pela multidão, seu pé já coçava para enterrar o pé no acelerador. Ela constatou que a polícia estava concentrada na onda de protestos, e não demorou muito para alcançar a rodovia.
Billie precisou ligar o GPS para se localizar melhor, e quando faltavam apenas cinco minutos para sua chegada, ela acelerou. A noite escura cercava a rodovia abandonada, somente com o luar a iluminar o breu das falésias. O ar salgado batia em seu rosto e a deixava com sede, mas ela só se saciaria com uma vitória. Enquanto se aproximava, o som crescente que emanava dos paredões pareceu uma baladinha distante, que alternava entre o city pop e o new wave.
Billie sentia calafrios no estômago enquanto avançava na noite sem fim. Acima de sua cabeça, as estrelas contrastavam o céu e tornaram-se um borrão prateado quando a corredora acelerou. Os focos de luz do ponto de encontro entraram em foco enquanto a corredora se aproximava. Ela riu consigo mesma ao avistar sua melhor amiga escorada na carcaça de um trator, de braços cruzados e com cara de poucos amigos.
Os olhos castanhos de Alice Wallace se semicerraram ao se fixarem em Billie. A loira levantou as mãos para o céu de forma dramática e soltou um suspiro longo e lento para demonstrar que estava cansada de esperar. As duas andavam programando aquele momento desde quando a corredora anunciou que moraria com a avô. Ao saber da corrida, Alice logo tratou de inscrever a amiga, pois gostava de se sentir uma espécie de assessora. Ela saltou para dentro do Opala e insistiu em fazer uma maquiagem, mas Billie recusou.
— Estou nervosa — admitiu.
— Vai ficar tudo bem, você sempre vence.
— Mas dessa vez é diferente, sinto algo estranho.
Alice afagou o ombro de Billie e lhe lançou um sorriso reconfortante, pois sabia que a amiga era muito sensitiva.
— O que você sente?
Billie engoliu em seco e comprimiu os lábios.
— Um déjà vu.
A corredora estacionou próximo aos latões e ambas saíram em meio à multidão. O lugar estava cheio, e uma banda muito ruim tocava. Vários latões com fogo dentro e algumas latinhas de cerveja espalhadas pelo chão completavam o cenário caótico em conjunto com os jovens bêbados ou eletrizados demais. A rodovia estava abandonada há bastante tempo, e as construções jamais voltaram, servindo de prato cheio para os apostadores de corridas. Billie confirmou presença com o narrador da partida e se dirigiu para o carro que iria usar. Ela resmungou ao ver a lata velha que lhe arrumaram, e se não temesse uma coça de Amélia, correria no Opala. Os competidores sabiam que Billie era boa demais para todos eles.
O modelo do carro estava irreconhecível. Era evidente que já havia passado por diversas alterações. A cor enferrujada e sem brilho o dava um aspecto terrível, os dois faróis grandes e redondos o deixava ainda menos atraente. Tinha a traseira um pouco empinada, mas pelo menos os pneus pareciam firmes, isso ela conseguiu constatar. Enquanto aguardavam o outro competidor, Alice tentou convencê-la a tirar algumas fotos em frente a lata velha para registrar sua primeira vitória em Starfish, mas Billie tirou apenas uma e resolveu entrar na lata velha e aguardar. Não estava gostando da energia daquela pista, as vibrações eram estranhas.
Tudo era estranhamente vermelho. O fogo nos latões, o cheiro de ferrugem e a sua jaqueta, era como mergulhar no turbilhão daquela cor quente. Billie procurava entender a sensação estranha que a dominava desde o momento em que pisou naquela pista, mas nada parecia fazer sentido, nem mesmo a escuridão da noite que cercava a luminosidade feroz daquela pista. O cheiro de mofo e gasolina inundava o interior do carro, e era aquele cheiro que a fazia se sentir que tudo era possível. O para-brisa lhe dava uma visão ampla a sua frente, e entre as pessoas que transitavam, seus olhos pararam em um homem de costas.
Ela franziu o cenho para observar melhor e se sentiu uma tarada, pois seu olhar desceu para a bunda dele, que ficava devidamente apertadinha naquela calça vermelha. "Boa para dar uns tapas" pensou. As costas largas deixavam seus ombros firmes na jaqueta vermelha quase parecida com a dela, e algo naquele uniforme monocromático a deixou estranhamente nostálgica. Billie sentiu a ponta dos dedos formigarem, quase como se ansiassem tocá-lo.
— Hum, boyzinho estilo anos oitenta, gostei — murmurou.
Ela se permitiu secá-lo um pouco mais, e observou que aquelas mãos em volta em luvas pretas, deixando apenas os dedos à mostra, com certeza tinham uma pegada muito firme, seja para puxar cabelos ou segurar seus quadris enquanto estocava para dentro.
— Minha nossa, nem guindaste — murmurou para si, um tanto amargurada ao não conseguir recordar da última vez em que tinha sequer beijado alguém. — Bem, pelo menos posso ficar olhando.
Ela estava tão concentrada em observá-lo, que não teve tempo de desviar o olhar quando ele se virou de repente e seus olhares se encontraram.
Déjà vu.
Billie levou a mão ao peito ao sentir o coração apertar, estava espantada por algo que não sabia explicar. Inicialmente, ele pareceu não ter notado, mas ao olhar para os lados e se certificar de que a menina realmente o encarava, ele acenou, um pouco desconfiado da encarada nada discreta. Billie não queria soar mal-educada, e lhe lançou um leve aceno com a cabeça. O rapaz parecia tão desnorteado quanto ela, como se tentasse processar uma informação. Billie se assustou quando o outro competidor chegou fazendo muito estardalhaço com uma buzina irritante. Ele estacionou ao lado dela, com seu carro visivelmente maior. Enquanto o narrador começava a pedir que os presentes fizessem as suas apostas, ela se dispersou dos devaneios ao ver o estranho andar até o seu carro e bater na porta.
Curiosa, ela abaixou o vidro e aguardou.
— Posso entrar? — ele perguntou.
— Assim do nada?
— Prometo que não vai se arrepender — aquele semblante a deixou ainda mais curiosa. — Vai me deixar entrar ou não?
— Não.
Ele entrou mesmo assim, pois a porta não estava travada. Céus! Como ela queria apertar aquela bunda perfeitinha. Seus dedos vasculharam o teto do carro à procura da luz, e quando a ligou, os dois se surpreenderam com o que viram. Ambos usavam a jaqueta da Pluma. Billie não acreditava em coincidências, mas após aquela noite talvez começasse a acreditar. O rapaz a olhava como se ela fosse um extraterrestre, quase não acreditando que aquilo fosse real. Eles se encararam em silêncio durante alguns segundos, até que ele resolveu quebrá-lo.
— Onde conseguiu essa jaqueta da Pluma?
— Me diz você.
— Eu perguntei primeiro.
— Você entrou no meu carro sem ser convidado.
— Certo — ele permaneceu com o semblante desconfiado e pareceu escolher as palavras. — É herança.
— A minha também.
— E seu nome é?
— Billie Jean, e o seu?
— Dandy Spring.
A corredora se encolheu diante do olhar persistente do rapaz sobre ela.
— O que foi?
— Não sei, tive uma sensação estranha — Dandy disse. — Tipo um déjà vu.
A voz estrondosa do narrador ecoou através do megafone, anunciando os competidores. Raramente acontecia, mas Billie sentiu a barriga doer em nervosismo.
— Estou nervosa — resmungou.
— Billie Jean, é? — Dandy a olhou de esguelha. — Tipo a do Michael Jackson?
— Saia, vou pilotar agora — ela se esticou para o lado dele e abriu a porta para que ele saísse. — É sério, sempre piloto sozinha e pode ser perigoso.
— Me deixa pilotar com você — pediu.
— Não.
— Eu sou veterano, está bem? Costumava pilotar.
— E por que não pilota mais?
Dandy não respondeu, e como resposta, apenas voltou a fechar a porta e prendeu o cinto. Billie o encarou em visível desaprovação, mas não negou que a situação a agradava.
— Você é muito atrevido.
— É, já me disseram isso.
Uma batida soou no vidro ao lado de Billie, era Freddie Quincey, o narrador.
— Vai pilotar sozinha?
Seus olhos caíram no banco do carona e Dandy fez uma cara de poucos amigos, fazendo Freddie soltar uma risadinha na qual a corredora não conseguia decifrar. Para ela, o garoto a estava julgando mal por ter mais alguém enfiado no carro. Billie não ligava, naquele momento, desejou que tudo acabasse o mais depressa possível, ela só queria competir e ir embora. A energia do lugar a consumia e sufocava, e a de Dandy Spring a fazia querer explodir.
— Já saquei qual é o seu tipo — Freddie anotou alguma coisa em sua prancheta e voltou a encarar a corredora. — As apostas em você foram baixas, fica esperta, aqui não é o Texas. Outra coisa, checou a gasolina e os pneus?
Billie apenas assentiu, já cansada de toda aquela ladainha. As pontas dos dedos dos pés já formigavam e suas mãos se fechavam com força ao redor do volante, era a adrenalina começando a fluir. Dandy fez um som impaciente com a boca, tão enfadado quanto ela. Antes de ir, Freddie vasculhou o bolso e retirou o que parecia ser uma barrinha de chocolate. Tinha cheiro de hortelã e parecia bastante convidativa.
— Pega, vai ajudar na adrenalina — disse, entregando para a menina.
— O que é?
— Maconha — ele lhe deu as costas e agarrou o megafone pendurado no pescoço, voltando a anunciar o início da partida.
Billie se assustou quando Dandy agarrou o entorpecente da sua mão. Ele também pareceu bastante surpreso com o que fez, mas não voltou a devolver. A corredora o encarou sem entender, principalmente porque o garoto assumiu um semblante amargurado. Dandy balançou a cabeça em negação e guardou a barrinha no bolso sem dar muitas explicações sobre sua atitude.
— Desculpa — ele disse, coçando a testa com o polegar. — Não saia aceitando as coisas que esses caras oferecem, pode ser perigoso.
— Eu sei me cuidar sozinha — Billie disse, colocando o capacete vermelho. — E eu não ia comer essa porcaria, talvez eles queiram me sabotar. Preparado?
Por alguns instantes, Dandy pareceu cogitar sair do carro, mas a lançou um sorriso confiante e assentiu.
— Nasci pronto.
— Convencido — ela balançou a cabeça e riu. — É agora.
Billie pisou fundo no acelerador.
Os dois deram um forte solavanco para trás e depois para frente por causa da partida brusca. O caminho escuro foi se revelando como um completo borrão diante dos faróis do carro. Poeira, insetos e pedrinhas voavam no para-brisa. Billie conseguiu se sair bem em todas as curvas sinuosas, passando por elas como se não fossem nada. Porém, o outro competidor estava muito à frente, pois o carro dele foi colocado para dar partida onde a terra não era úmida.
A maré estava alta e as falésias não se mostravam o suficiente para barrar os jatos de espuma salgada. Então a estratégia deles foi muito bem aplicada — o carro da corredora não acelerava em solo úmido e os respingos fortes de água com algas embasavam o para-brisa. Ela precisava alcançá-lo, mas, por mais que tentasse acelerar, o carro não conseguia ultrapassar.
— Filhos da mãe! — berrou, socando o volante enquanto tentava inutilmente fazer o carro correr mais rápido. — Não!
— Pare um instante, o motor está muito quente! — Dandy falou alto, fazendo sua voz se sobressair entre o som feroz do carro. — Cinco minutos serão o suficiente!
— Mesmo que eu faça isso, não vou sair do lugar, estamos atolados — choramingou.
— O carro não está parando por causa da areia, é o motor.
Dandy agiu rápido e se prostrou atrás do banco da corredora, onde conseguiu ter acesso ao volante. Billie o achou um intrometido, mas não questionou. Ela pisou no freio e com uma fúria quase lhe escorrendo pelos olhos, fez o carro parar. Eles viram quando uma nuvem densa de vapor começou a subir do capô, tal qual Dandy havia dito. Ele parecia entender bem de carros, então Billie o deixou fazer o queria, afinal, não tinha muitas opções. Os cinco minutos preciosos se passaram quase se arrastando, enquanto ela escutava o motor do outro carro se distanciando cada vez mais.
— Billie Jean, eu preciso que você segure firme no volante e pise fundo no acelerador, porque agora nós vamos voar. Pronta, pardal?
Billie não podia negar que estava amando estar cercada pela energia absurdamente boa dele. Quando ele colocou as mãos sobre as dela no volante, a corredora sentiu que era capaz até de voar. Dandy enterrou seus dedos nos espaços entre os dela e aguardou os segundos restantes. O relógio digital do carro atingiu os cinco minutos, foi quando Billie pisou no acelerador como nunca havia pisado antes. Os dois dirigiram juntos, como se fossem um só. A sintonia foi tamanha que ambos não precisaram proferir uma palavra sequer quando passavam os comandos do carro. A lata velha rugia como uma fera furiosa e estava mais veloz do nunca, assim como os corações que a conduziam. Já era possível avistar o competidor quase próximo da linha de largada, então um sorriso ladino surgiu nos lábios de Billie.
— Me desejem boas-vindas, seus babacas!
Eles atingiram uma velocidade descomunal. Quando se aproximaram o suficiente do outro competidor, Billie passou para a segunda marcha e Dandy puxou o freio de mão enquanto ela girava o volante na direção oposta. A máquina deu um cavalo-de-pau e girou no ângulo certo até atingir a traseira do competidor, fazendo-o sair da pista e se chocar contra o paredão de pneus velhos. A lata velha ultrapassou a linha de largada ainda rodopiando e fazendo muita fumaça e faísca com os pneus. Os espectadores ficaram animados com o resultado, pois era raro alguém finalizar uma corrida com uma manobra arriscada daquelas.
Billie estava com um sorriso radiante ao retirar o capacete, e sentia que seu coração poderia sair pela boca a qualquer instante.
— Billie Jean, not my lover — Dandy começou a cantar, estalando os dedos. — She's just a girl who claims that i am the one, but the kid is not my son...
— Para com isso — ela riu, o vendo passar para o banco da frente.
Billie só conseguia olhar dentro daqueles olhos verdes faiscantes e o sorriso discreto. Dandy Spring tinha algo diferente que ela não conseguia entender, talvez fosse o seu estilo, que combinava perfeitamente com aquele ambiente, como se ele tivesse nascido para fazer aquilo. O uniforme da Pluma caía bem nele, a calça e a jaqueta vermelha, a camiseta branca, as luvas e as botas pretas. O cabelo era um dos seus pontos fortes, os fios negros se espalhavam pela testa, um pouco salientes para frente, o suficiente para ver que se tratava de um pequeno topete desgrenhado. As laterais eram levemente raspadas, dando mais volume no topo da cabeça, onde os fios iam um pouco maiores até a nuca.
— Perdeu alguma coisa? — ele perguntou, notando o olhar insistente dela.
— Quase — Billie riu.
— O quê?
— A minha dignidade.
— Acho que já ouvi isso antes — ele murmurou.
— Você me ajudou a não perder hoje, muito obrigada, Dandy.
— Podíamos treinar juntos, Billie Jean. Estou aqui todas as noites, topa?
Antes de concordar, a corredora franziu o cenho ao ser invadida por mais um déjà vu. Ela tentou recordar de onde ele lhe era familiar, e o rapaz fazia o mesmo. Para quebrar o silêncio constrangedor, ela acabou aceitando a oportunidade de treinar com o veterano. Os dois se despediram com aquele sentimento estranho, mas com a sensação gostosa de uma noite divertida. Billie chegou em casa com os bolsos da jaqueta cheios de dinheiro, e ainda era escuro. Ela ligou a luz da cozinha e foi assaltar a geladeira, colocando um pedaço de pizza no micro-ondas. Enquanto aguardava, seus olhos caíram no corredor escuro parcialmente iluminado pela luz da cozinha.
A porta do porão onde a avó cuidava dos cadáveres estava entreaberta, e se abriu um pouco mais, fazendo um rangido estranho. Os pelos da nuca de Billie se arrepiaram, e ela quase gritou quando o apito do micro-ondas a trouxe de volta. Ela pegou a pizza no prato, desligou a luz e correu o mais rápido que podia para o seu quarto. A corredora não conseguiu dormir bem naquela noite. Sensações estranhas a deixaram inquieta boa parte do tempo, e o sono só veio nas primeiras horas do amanhecer.
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