18| A JORNADA TERMINA NO ENCONTRO DOS AMANTES

"Temos que arranjar uma maneira. É, não posso esperar por mais um dia. Nada vai mudar se ficarmos por aqui. É preciso fazer o necessário, está em nossas mãos. Todos cometemos erros, sim, mas nunca é tarde demais para recomeçar. Vamos apenas voar para longe daqui. Nossas esperanças e sonhos estão por aí em algum lugar." — Fly away from here (Aerosmith)


Starfish, 2025

Billie não imaginava que aquela noite pudesse terminar de forma tão dramática, mas lá estavam eles, fazendo parte de uma peça teatral sem graça alguma. Seus braços envolveram Dandy até que ele adormecesse. Ela se sentiu aliviada ao ver aquele rosto atormentado ficar inerte, até afastar as marcas de sofrimento que o afligiam. 

A corredora o aconchegou entre os travesseiros e o cobriu com uma manta, apesar da brisa tropical que invadia o quarto. Depois que se refugiou com ele no quarto, ela não viu mais ninguém até que a casa se tornou silenciosa e a madrugada avançou.

Quando sua barriga roncou, seus pés a guiaram para a cozinha, onde se serviu de uma porção de lasanha que ainda repousava em uma travessa no forno. Uma melodia a atraiu para o jardim, e seus olhos caíram no hippie sentado em uma das cadeiras retráteis, com as pernas cruzadas e seu violão em punho. 

Ele sorriu ao vê-la se aproximar, e apontou para a cadeira ao lado, onde o Precioso descansava. Billie colocou o cachorro no colo e acariciou sua cabeça, que a fitou através de suas órbitas grandes e pidonas. Ela achou estranho o cachorro não estar mais vesgo, mas não comentou nada.

— Sem sono? — ele indagou.

— Hoje está difícil, mas talvez a lasanha ajude — ela fisgou a tranquilidade nas feições dele enquanto tocava uma melodia suave no violão. — Como você consegue ser tão pleno?

— Maconha.

— Ah, é? — ela riu.

— Não totalmente, mas ajuda. No chimarrão fica uma delícia — ele ofereceu a cuia. — Quer provar? Adoro bebida brasileira.

— Ouvi dizer que eles são bons nos drinks — Billie adorou sentir o recipiente morno entre as mãos, levou a bomba aos lábios e sugou. — Hum, é gostosinho, mas eu não tomaria sempre.

— Isso não é bem um drink, é uma infusão de ervas — Love acomodou o chimarrão na cadeira e a encarou. — Tudo bem?

— Não — Billie suspirou. — São tantas informações, tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo. Ainda não consegui processar nada disso.

— Você está certa, são muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo.

— Se não fosse pelo Dandy, eu diria que preferia não ter saído do Texas.

— Bem, acho que você iria encontrá-lo de qualquer jeito, sabendo dessa confusão toda ou não. Billie, às vezes a melhor saída é a aceitação. Nas esferas do universo, quem somos nós para tentarmos impedir algo que já está programado para acontecer?

— É sobre a foto?

— Sim, vamos nos conhecer lá no passado, mas você estará mais velha, e eu, mais novo.

— Que palhaçada — ambos riram. — E tudo bem para você e Carrie?

— Alice sempre fez o próprio destino, nós só queremos que ela seja feliz.

— Quer dizer que ela e o Falke vão ficar juntos mesmo?

— Parece que sim, mas não o seu avô.

— Isso é bem óbvio, o meu avô é doido pela vovó. Love, de onde veio esse outro Falke?

— Eu não sei, e sinceramente? Prefiro não saber. A ignorância é uma bênção.

— Ele é estranho, me parece irritado o tempo todo, como se a culpa de tudo não fosse dele.

— Acho que eu também ficaria carrancudo depois de tanta trapaça do universo. E como está o Dandy?

— Não sei se está bem, mas dormiu. É o nosso último dia aqui, queria aproveitar, mas estão todos dormindo — resmungou. — Vamos, Love, agora quero ouvir você tocar.

— À suas ordens.

— O Precioso fez cirurgia de correção?

— Como assim?

— Ele não está mais vesgo.

— É? Que coisa — Love riu.

O hippie aqueceu a garganta e começou a embalar a madrugada com uma de suas primeiras composições. Enquanto isso, Alice e Falke conversavam na parte alta do jardim. Os dois resolveram se embriagar até esquecer quem eram, e estavam tendo sucesso, graças a uma garrafa de whisky puro que já estava pela metade. 

O viajante achou melhor parar por ali para evitar um coma alcoólico em ambos, e apesar dos protestos dela, ele afastou a garrafa. Eles permaneceram no gramado, fitando as estrelas, que pareciam turvas e maiores. Alice sentia cada célula do seu corpo esquentar e pulsar, principalmente nos países baixos. 

Ela retirou a blusa e se exibiu orgulhosamente com seu tomara-que-caia preto, mas Falke sequer olhou. "Meu Deus, eu preciso transar, mas esse idiota não colabora", resmungou. A cabeça de Falke estava tão pesada que ele achou que iria afundar na terra. Apesar de estar na mesma, a loira foi capaz de sentir-se gaiata, e rolou no gramado até esbarrar no viajante. Ela apoiou a cabeça na mão e o analisou por cima. 

As bochechas rubras e os olhos semiabertos denunciavam um nível razoável de embriaguez. O bafo quente de Alice o fez erguer o olhar e encontrá-la o encarando com um olhar repleto de terceiras intenções e um meio sorriso gaiato.

— E que tal a gente se beijar? — ela indagou.

Falke soltou uma risada abafada, fazendo seu hálito empestado de álcool virar uma nuvem de vapor naquela madrugada atípica. Ele desviou o olhar para o céu para não secar os seios dela, convenientemente próximos demais ao seu rosto e orgulhosamente empinados no bojo.

— Não.

— Ah, por favorzinho — implorou, com a voz enrolada. — Por favorzinho, Falkinho...

— O quê? — ele riu. — Não, estamos bêbados.

— Eu não estou bêbada.

— Estamos.

— Então a gente esquece mais tarde.

Falke ponderou e a encarou. O sorriso ladino de Alice se alargou ao ver os olhos deles se desviarem para seus lábios e depois os seios.

— Vai, por favor... eu preciso extravasar. Você está me querendo, pode fazer o que quiser comigo hoje.

— Podemos só testar? Aí tiramos a prova de que não vamos ter futuro juntos.

— Hurum, só testar mes...

Ela foi interrompida quando Falke enterrou a mão em seus cabelos e seus lábios se encontraram. A respiração ofegante de ambos e seus gestos urgentes refletiam a ansiedade dos corpos de se terem. 

Alice amou sentir a urgência nos lábios do viajante, que sugava os seus enquanto invadia sua boca com a língua. Eles se afastaram alguns instantes, apenas para recuperar o fôlego, e a vontade de continuar apenas cresceu nas faíscas luxuriosas em seus olhares.

— Tira logo essa blusa, eu quero ver você pelado desde o dia da jacuzzi.

Alice arfou ao sentir as costas lisas dele sob suas mãos e quase gemeu quando ele desabotoou seu short jeans e o retirou com agilidade. Falke se sentou e passou Alice para seu colo, acariciou seu traseiro e subiu seus dedos até as costas femininas, onde brincou com a fivela do tomara-que-caia. Como estavam bêbados, não conseguiram manter o equilíbrio e tombaram para o lado, aos risos. A loira trancou o viajante entre as pernas enquanto sentia seu peso a comprimir contra o chão.

— Calma aí — Falke arfou, no intervalo entre os beijos.

— Calma, nada!

Eles voltaram a se engalfinhar entre beijos, tão perdidos em carícias que acabaram rolando pelo gramado. Só perceberam que estavam caindo quando a vertigem os atingiu. Love e Billie olharam para trás a tempo de ver duas pessoas entrando em queda livre pela pequena colina.

Falke caiu por cima de Alice, sentiu-se tão enjoado que não conseguiu se conter, e então uma enxurrada de vômito atingiu a cara da loira. Billie não conseguia acreditar na cena inusitada, e não precisou perguntar nada para saber o que estava rolando entre o casal vômito. A corredora e Love saíram de fininho cobertos de vergonha alheia, ninguém estava a fim de lidar com o excremento dos outros.

***

— Mamãe, por favor! — Phil gritava, batendo na porta.

Ainda era de madrugada, mas o homem estava determinado a acordar a vizinhança inteira com seus ataques de histeria. O platinado batia na porta como se fosse derrubá-la, enquanto choramingava de forma muito patética. Era por essas e outras que ele odiava dormir na casa da mãe, que era muito carregada. 

Os sussurros vinham de toda parte e o pobre Phil nunca conseguia bloqueá-los, como a mãe já havia ensinado, e sempre entrava em uma espécie de surto. Estela já sabia o que se passava, mas se levantou e escorou o corpo sonolento no balcão da cozinha para observar o marido surtando.

— Amor, você não vai fazer nada? — Phil a olhou, indignado.

— Ai, Phil — ela tapou a boca e segurou o riso debochado. — Quer que eu faça o quê?

— Me ajude! — esganiçou-se, tal qual um ganso desafinado.

— Oh, certo — Estela desgrudou do balcão e olhou ao redor de forma muito teatral. — Por favor, espíritos de luz e trevas, deixem o meu marido em paz!

Por alguns instantes, o platinado esqueceu o surto ao observar, muito indignado, o deboche transbordando em cada palavra dita pela esposa. Amélia acordou irritada com a gritaria e abriu a porta de uma vez, assustando o filho, que caiu de joelhos e abraçou sua cintura. 

Enquanto ele chorava de forma muita escandalosa com o rosto enterrado em sua barriga, a médium respirou fundo e acariciou os cabelos platinados. O relógio marcava cinco e meia da manhã, então Estela começou a preparar o café, já que todos não iriam voltar a dormir. 

Falke ajudava a nora nos preparativos, enquanto esta, se acostumava e adorava a dinâmica com o novo sogro. Phil ficou mais calmo após tomar uma dose forte de chá de camomila com alecrim. Ele ficou emburrado ao notar a mãe e a esposa caçoando dele, mas a raiva logo se dissipou quando todos se reuniram à mesa.

— Falke, não há outra maneira de contornar a situação? — Estela indagou.

Ela não queria trazer o assunto à tona e tornar o desjejum degradável, mas era o aniversário de Billie e da sogra, e em teoria, aquele seria seu último dia com a filha.

— Infelizmente não — o viajante disse, com pesar. — Me perdoem pelos desastres que causei na vida de vocês.

— Meu amor — Amélia colocou a mão sobre a dele. — Nós já conversamos sobre isso, ninguém aqui tem culpa de nada. Nem mesmo você teve como prever as trapaças do destino.

— Pai, graças a você, toda a família Jean ganhou um presente chamado Billie. Ela foi a melhor coisa que nos aconteceu.

— Sim — disse Estela, apoiando a cabeça no ombro do marido. — Mesmo que venhamos a nos esquecer dela, graças a você tivemos o nosso maior presente, e queremos que ela exista, em outra dimensão ou aqui, Billie sempre será a nossa filha.

Falke sentiu o queixo tremer e deixou as lágrimas escorrerem. Amélia o beijou na bochecha e enxugou as lágrimas com um guardanapo.

— Phil puxou toda a carga dramática de você — a médium disse.

— Não é? Eu sempre me perguntei de onde o meu marido havia puxado essa capacidade absurda para o drama — Estela riu ao vê-lo revirar os olhos. — Sempre digo e repito, a BBC está perdendo um baita ator.

— Amor — Phil a repreendeu. — Não é drama. Queria ver se você estivesse no meu lugar, sempre tive muito medo e nunca vou me acostumar.

— Deus me livre, prefiro debochar de longe.

— Billie é a junção perfeita dos dois, mas mais de Phil, pois é medrosa e cagona igual ao pai — Amélia começou a rir enquanto despejava melaço em sua panqueca. — Concordam?

— Não é bem assim, nossa filha nunca se queixou de ter visto algo, não é? — Phil perguntou à esposa. — Corpo fechado, eu acho.

— É aí que você se engana — disse a médium. — Billie sempre esteve cercada de espíritos, mas é tão lesada que sequer os notava como pessoas que já se foram.

— Ela passou a se encontrar com o fantasma de Dandy e sequer notou que ele estava morto — disse Falke. — A mediunidade de Billie vai além de enxergar, pode tocá-los também.

— E esse rapaz tocou na minha filha? — Phil encarou Amélia, enciumado.

A médium tentou disfarçar dando goles demorados no café enquanto pensava em algo para dizer. O viajante desviou o olhar para a panqueca e começou a ocupar sua boca para não falar nada.

— Mais que filho da mãe! Disfarçou direitinho, vou chamar o caça fantasmas para ele.

— Querido, por favor, não seja infantil — disse Estela.

— Olha quem fala — rebateu, mal-humorado. — Então eles estão namorando?

— Sim, e nem adianta tentar ir contra — o viajante encarou o filho. — Ela já é bem grandinha.

— Mesmo assim — Phil insistia na teimosia. — Não houve a nossa permissão.

—Em que século você vive? Estou começando a achar que o viajante do tempo é você, diretamente do século dezoito — disse Estela, fazendo os sogros rirem.

O telefone da cozinha tocou e Amélia se levantou para atendê-lo. Os três à mesa se entreolharam, já sabendo quem estava do outro lado da linha. Durante a madrugada, Falke esperou a médium dormir para se reunir com o filho e a nora. 

Ele queria pedir a mão de Amélia novamente para realizar a cerimônia de casamento que não tiveram a oportunidade de ter. Animados, eles concordaram e logo entraram em contato com os Wallace para planejar a cerimônia. Carrie deu a ideia de planejar um jantar simbólico para aqueles que partiriam para outra dimensão. Então ficou tudo combinado, Falke pediria a mão dela e eles se casariam no jardim dos Wallace.

Amélia, quanto tempo! Que saudade! — exclamou a ruiva, do outro lado da linha.

"Não faz nem duas semanas que nos encontramos no supermercado" , a médium pensou em dizer, mas deixou passar, os Wallace eram atípicos.

— Também estou com saudade. Tudo bem por aí? Como estão as crianças?

Estão todos bem. Já estamos a parte sobre tudo, Billie nos contou.

— Oh, e como você e Love reagiram?

Sempre há o baque inicial, mas a aceitação é a única coisa que está ao nosso alcance.

— Você está certa.

Bem, eu liguei para convidá-los para jantar. Vamos fazer algo especial, que simbolize partida e recomeço. Queremos fazer uma despedida digna.

— Parece que vamos mesmo nos despedir, não é?

Sim, mas podemos tornar essa situação mais agradável. Vamos preparar o nosso jantar com muito amor, como se nada fosse acontecer. E quando a hora chegar, estaremos livres de sentimentos amargos. A despedida será leve.

— Ah, Carrie, é uma ótima ideia. Os pais de Billie estão aqui, iremos nos preparar. Sabe o Falke? Ele voltou.

Eu soube, estou muito feliz por você — Carrie achou melhor omitir a presença do outro Falke. — Bem, nos vemos às dezoito? Sei que pode parecer um pouco cedo, mas devemos aproveitar ao máximo.

— Às dezoito então.

A fenda — Carrie engoliu em seco. — Se abrirá na hora do acidente?

— Sim... às vinte e uma e oito, horário do equinócio de setembro de mil novecentos e oitenta. Estou com tanto medo.

Não vamos deixar nada acontecer com Billie, fique tranquila.

— Obrigada, Carrie. Nos vemos mais tarde.

Até mais, Amélia.

Os três à mesa lançavam olhares questionadores para a médium quando ela colocou o telefone no gancho, como se não soubessem de nada. Amélia acalmou o coração e os lançou um sorriso radiante.

— Se preparem, vamos às compras.

***

Quando Alice despertou com uma baita enxaqueca, percebeu que estava no quarto de hóspedes do viajante, mas ele não estava lá. Ela cambaleou até o banheiro e pensou em se jogar debaixo do chuveiro, mas ao ligar a luz, se viu completamente limpa. Os cabelos ainda estavam úmidos, mas não era de vômito. 

O rosto queimou ao pensar na possibilidade de o viajante ter lhe dado banho, mas foi Carrie, ela só não lembrava, pois estava muito bêbada. A loira suspirou e desceu para tomar aspirinas. A casa estava silenciosa, e as primeiras nuances de claridade começavam a banhar o céu. Mesmo com a cabeça estourando, ela procurou por Falke pela casa e depois no jardim, mas ele já havia partido da residência dos Wallace. 

Alice queria muito conversar sobre o que fizeram durante a madrugada, além de se desculpar pelo seu comportamento, pois costumava ficar com muito tesão quando bebia. Com uma compressa de gelo em mãos, ela afundou no sofá e ficou remoendo os momentos de amassos com o viajante.

"Foi tão bom que eu faria tudo de novo, mesmo sóbria", resmungou. A loira costumava esquecer quase tudo quando ficava de porre, mas lembrava de cada detalhe, cada toque e olhar entre eles. Após a enxurrada de vômito, sua visão escureceu.

As horas foram avançando junto com a manhã, e nem sinal do viajante. Ela escutou a mãe falando com Amélia ao telefone, mas não quis saber e seguiu de volta para o quarto do viajante. No móvel ao lado da cama, havia um papel debaixo da garrafa de whisky.

"Não se pergunte onde estou, pois as linhas do espaço-tempo são complicadas de entender. Ficarei ausente até a abertura da fenda, espero que possa aproveitar o jantar de despedida. Hoje vai acontecer uma corrida clandestina na mesma pista, vão convidar Billie. Não deixe que ela vá, pois o mesmo acidente vai acontecer. Informe a Denis Cash, o faça impedir a corrida com algum tipo de patrulha, assim a pista ficará livre para a abertura da fenda.

P. S.: Peço desculpas pelo meu comportamento na madrugada, eu estava fora de mim.

Atenciosamente, Falke T".

— Cafajeste, nem para se desculpar pelo vômito — resmungou. — Se desculpou pelos beijos como se eu não tivesse gostado, idiota. E ainda me vem todo formal, babaca.

Alice se deitou na cama e tentou relaxar. As aspirinas logo fizeram efeito, e ela desceu para encontrar a mãe fazendo ovos mexidos. Enquanto preparavam o desjejum, Carrie falou sobre o jantar e o casamento surpresa, deixando a filha animada, mas não totalmente, pois o bilhete de Falke dizia que ele estaria ausente. 

A loira queria a companhia dele, mas se empenhou a tentar se acostumar com a sua ausência enquanto preparava o jardim da casa. Dandy acordou triste, mas foi melhorando depois do café da manhã e de se distrair com os preparativos para o jantar e a cerimônia matrimonial. 

Eles colocaram a grande mesa de mogno no gramado, ajeitaram as cadeiras e espalharam diversos ornamentos nas árvores. O extenso fio de luzes douradas foi projetado por todo o local, para deixar tudo mais agradável. As horas foram avançando, e logo os Jean chegaram na residência dos Wallace. 

Todos estavam empenhados em tornar aquele momento inesquecível, mesmo que mais tarde não fossem se recordar de nada. Na trilha do jardim que levava ao pequeno labirinto verde de plantas, eles espalharam os fios de luzes douradas por toda a extensão, que levavam até o gazebo abobadado e florido, onde Love os aguardaria atrás do púlpito.

Quando os Jean chegaram, Billie se encarregou de ir pegar o vestido de noiva de Amélia sem que ela percebesse. A corredora o encontrou pendurado no closet, ainda dentro do plástico. Estava intacto, sem nenhuma dobra ou amassado. 

Ela o levou para uma lavagem a seco, ainda passou em uma loja de bijuteria para comprar brincos e um colar de prata para a avó. Billie se lembrou de Denis Cash, e foi até sua casa para fazer o convite, ela achava que o policial merecia estar presente. Ela logo estava de volta a casa dos Wallace, onde já se ouvia uma conversa animada entre os adultos na cozinha.

As mulheres mais velhas começaram a preparar o jantar, enquanto os homens cortavam legumes, já que não tinham habilidades culinárias.

— Falke, você se lembra de quando ficamos pelados? — Love indagou.

Amélia parou de temperar o peru e se virou furiosa para o hippie, apontando a faca para ele.

— Eu não acredito! — ela berrou, indignada. — Love, eu não vou perder outro homem para você!

O hippie começou a gargalhar até a barriga doer diante do olhar fulminante da médium.

— Pai, você...? — Phil indagou.

— Espera, não! — Falke se esganiçou. — Love, pelo amor de Deus, não conte a história pela metade!

— Aquela foi a sua última viagem no tempo? — o hippie indagou.

— Foi — Falke olhou para Amélia. — Quando Zuri apareceu no dia do nosso casamento, tivemos uma pequena discussão e acabei viajando sem querer para dois mil e vinte e quatro. Love estava lá, tomando um sol. Nós ficamos pelados enquanto relaxávamos, foi isso.

— Hum, melhor, achei que ia perder você também para esse daí, já basta o Carl.

— Ainda não me conformo que o papai teve um caso com você — Phil encarou Love. — O músico hippie que passou o rodo na Flórida inteira.

— O limite para mim é o crime — Love disse, enquanto descascava uma batata.

— Eu nem percebi — Amélia resmungou, voltando a temperar o peru. — Não chegue perto do meu marido, eu sou ciumenta.

— Acho melhor deixar ele escolher — o hippie riu, se deliciando ao irritar a médium.

— Certo, chega de babaquice — disse Estela. — Já terminaram de cortar os legumes?

— Quase, madame — disse Phil.

A mulher olhou feio para os pedaços desiguais que o marido estava cortando.

— Phil, eu disse que era para cortar primeiro em julienne e depois brunoise! Dessa forma que você cortou o cozimento vai ficar desigual!

— Falou a masterchef — resmungou.

— Pois deixa eu lhe dizer uma coisa, a sua esposa é uma chefe! — ela olhou os cortes perfeitos de Love e Falke. — Só você fez errado.

Os Cash chegaram cheios de disposição para ajudar. Denis estava eufórico e sabichão por finalmente provar a esposa que nunca esteve louco. Como todos esqueceriam mais tarde, o viajante não se importou em contar um pouco da história mirabolante para Laura.

— Viu só? Eu nunca estive louco! — o policial disse.

— Eu nunca disse que você era louco. Você vestiu a carapuça porque quis — Laura rebateu.

Alice observou o grupo envolvido em uma conversa gostosa, repleta de nostalgia, e percebeu que talvez fosse melhor que o seu Falke não estivesse ali. Ele parecia ser o espectador de toda aquela história problemática. "Ele disse que eu ficaria com o Falke velho somente para tirar uma onda comigo", ela resmungou, ao observar o viajante mais velho. "Vou matar ele". 

O crepúsculo do fim de tarde banhava o céu, e Dandy ligou as luzes. O jardim estava iluminado em tons de dourado, enquanto o luar dava um contraste nos lugares mais sombreados. O cheiro do jantar estava maravilhoso, e parecia ainda mais apetitoso quando foi posto à mesa.

Toalhinhas xadrez adornavam os talheres postos nos pratos de porcelana branca, acompanhados de taças para vinho e copos para o suco. Todos já estavam arrumados, famintos e saudosos. Eles deram as mãos e Estela fez uma prece. A aura tranquila predominava, assim como o aroma delicioso do peru, das tortas salgadas e doces, das cebolas caramelizadas e do guisado. 

Phil se gabava a todo instante para os Cash o fato de sua esposa ser chefe, pois tudo estava delicioso. Dandy comia como se não houvesse amanhã, enquanto Billie e Alice o olhavam horrorizadas. Todos já estavam satisfeitos quando Falke quicou um talher na taça para chamar atenção. Ele pediu que Amélia ficasse de pé, e ao vê-lo se ajoelhar à sua frente, seu coração retumbou como nunca.

— Amélia Jean — o viajante já segurava a mão delicada dela na sua. — Você aceita se casar comigo?

Pequenos brotos de lágrimas surgiram no canto dos olhos da médium quando ela mergulhou nos do viajante. Ela respirou lento e profundamente antes do sim, pois não queria borrar a maquiagem.

— Sim, meu amor. Eu sempre vou dizer sim para você.

***

Amélia encarava o labirinto verde e iluminado a sua frente ainda com os olhos marejados. Ela não conseguia acreditar que esconderam tudo dela com perfeição, e sentira-se eternamente grata por lhe proporcionarem aquele momento que almejou durante anos. 

Ela alisou o vestido de noiva que ainda cabia perfeitamente em seu corpo pequeno. O véu delicado descia sobre seu cabelo ondulado e grisalho, enquanto o singelo buquê de lírios repousava em suas mãos. 

Alice se posicionou no canto do gazebo e começou a tocar no seu violoncelo, a tradicional sinfonia do casamento. Phil entrelaçou seu braço com o da mãe, e juntos, adentraram no labirinto, seguindo o fio de luzes douradas, enquanto Falke seguia o fio vermelho.

Os noivos cruzaram as barreiras e caminhos confusos do labirinto até se encontrarem no gazebo, tal qual foi a jornada de ambos até se reencontrarem. Os olhos do viajante brilharam ao caírem na mulher que amava, pois mal podia acreditar que estava tendo a oportunidade de tê-la novamente, e dessa vez, para sempre, sem qualquer interferência do universo. 

Love disse algumas palavras e logo os noivos estavam proferindo os votos. Alice foi se sentar em uma das cadeiras em frente ao gazebo, consultou seu relógio de pulso e viu que a hora se aproximava. Faltava menos de cinquenta minutos. Ela observou a pureza daquele momento, onde todos os casais ali se amassem de forma plena e sincera.

— A jornada termina no encontro dos amantes — Alice recitou o escritor favorito, ao observar os casais no fim daquela confusão. — Só eu aqui, encalhada.

— E onde está o seu namorado? — Dandy indagou.

— Me avise se encontrar um para mim — resmungou, ela não queria admitir que estava sentindo a falta do viajante naquela ocasião, e encerrou o assunto.

Amélia sentiu arrepios ao trocarem alianças, e quando Love os declarou marido e mulher, ela se permitiu chorar entre o beijo. Todos aproveitaram o máximo que podiam, trocando abraços, recordações e sorrisos. 

Não queriam se despedir, mas já que a despedida seria inevitável, a fizeram da melhor forma. A hora se aproximava, então todos se colocaram a caminho. Os Wallace foram no jipe, enquanto os Jean se enfiaram no antigo e bem conservado Opala de Amélia.

Denis e a esposa foram mais cedo para dispersar alguns arruaceiros que já estavam se aglomerando para organizar a corrida clandestina. Os Cash saíram da viatura quando o restante do grupo chegou, todos com um semblante carregado. 

O clima passou de quente para frio ao chegarem na pista. Uma ventania assolava o mar, como o princípio de uma tempestade, enquanto as finas linhas vermelhas e douradas já se tornavam visíveis para todos. 

Enquanto isso, Falke já navegava nas arestas do espaço-tempo. Não demorou para ele enxergar a fenda, que iria abrir o suficiente para separar a colisão das dimensões. Billie se sentia tão apavorada com a ideia de deixar a família, que se desesperou no último instante, mas foi aninhada pelos Jean, que a abraçaram em conjunto.

— Billie, nós nunca vamos esquecer uma da outra, pois somos a mesma — disse Amélia.

21:04... 21:05... 21:06... 21:07... 21:08... era o equinócio de novembro de 2025.

A fenda se ergueu diante dos olhos do filho de Frey. Mesmo com a luva de corredor, o frio cortante das laterais da fenda queimou suas mãos quando ele fez força e a abriu. Ele enxergou a realidade do outro lado. Todos estavam lá, amedrontados e fascinados pela distorção de luz que rasgava a realidade de 2025. 

Ele subiu os óculos de aviador para a testa e encarou o outro Falke. Ambos se fitaram por alguns instantes e se cumprimentaram com um breve aceno de cabeça. O filho de Frey estendeu sua mão para fora e aguardou que eles viessem. 

Eles se despediram novamente e caminharam até os fios desenfreados de luz. Dandy foi o primeiro a entrar, Billie olhou uma última vez para todos que abandonaria, e pegou a mão de Falke. Carrie gritou quando o yorkshire se desprendeu de seus braços e correu em direção a Alice, que o pegou.

Chegando na vez dela, o viajante respirou fundo e tomou a decisão que achava ser certa. A loira pareceu pressentir o que planejava, mas não imaginou que ele realmente faria. Falke a puxou como se fosse colocá-la para dentro, mas a soltou e apoiou a mão em seu peito, empurrando-a para fora. O cachorro caiu para dentro da fenda e sua dona para fora...

Porém, Alice despencou no espaço-tempo.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top