12| VOCÊ É INGÊNUA DEMAIS, AMÉLIA

"Tire minha foto da parede se ela não for cantar para você. Porque tudo que sobrou se foi, e não há mais nada para você provar. Oh, olha o que você fez, fez a todos de bobo. Parece tão divertido, até você perder o que ganhou." — Look what you've done (Jet)


No Tempo (Ano indefinido).

Falke estava chegando perto, ele podia sentir. O caderno estava preenchido com cálculos e observações sobre a teoria das cordas. Ymir o havia dado uma oportunidade para consertar as coisas, e sozinho ele teve que descobrir as brechas. Ele era o Falke de 1980, podendo-se chamar de "o original", já que ele havia desencadeado as alterações na linha temporal e na segunda corda paralela a sua dimensão original, a chocando com a primeira. 

O viajante sabia que o choque das realidades se deu quando Billie Jean, reencarnação de Amélia, foi retirada de sua dimensão para a mesma em que já havia vivido. Até mesmo a deusa ficou impressionada com o rumo que as coisas tomaram, ela não imaginava que uma simples oferenda mal-sucedida acarretaria em problemas na linha temporal daquelas almas. Apesar de ter desconfianças sobre quem Falke realmente era, a gigante o encarregou de colocar cada uma daquelas pontas soltas em seus devidos lugares.

Quando deu seu primeiro salto temporal, seu corpo quase se desintegrou. Ele caiu em 1989, no festival de solstício de verão. Naquele dia, as dimensões já haviam se chocado. Ao se misturar entre a multidão, ele avistou seu outro eu próximo a um grupo. Falke revirou os olhos e balançou a cabeça quando o outro Falke abraçou a loira por trás, depois lhe aplicou um beijo na bochecha e nos lábios. Era Alice Wallace, melhor amiga louca de Billie Jean. 

A garota resolveu ir com a amiga quando a fenda se abriu em 2o25 — mais um motivo para a bagunça temporal. Quando Alice pulou na fenda aberta para Billie voltar para a sua dimensão, não se podia fazer mais nada. A tensão nas cordas aumentou consideravelmente, até se tornarem uma só. As duas dimensões foram fundidas, o que explicaria o choque de realidades. O viajante tentou impedir que Alice quebrasse a ordem, mas a menina não abandonou a amiga na nova jornada. Ele ainda tinha muita raiva da loira, por isso olhava indignado para seu outro eu mais velho, a beijando como se nunca houvesse se envolvido com uma mulher.

Ele acompanhou o movimento do grupo. Todos estavam se divertindo, dançando, bebendo e conversando. A prova do choque das realidades e dimensões veio quando Love Wallace apareceu no festival e conheceu a filha em sua versão mais velha, sem a do tempo presente ter nascido ainda. Alice pulou junto com Billie na fenda de 1980 que se abriu em 2025 no equinócio de setembro. Ele observou os olhares confusos de Love, que achava estar muito bêbado para acreditar que Dandy Spring estava ali, vivo e mais velho. 

Eles curtiram mais um pouco, depois tiraram uma foto. Alice cantou durante o festival da sua banda, a Love, Future & Nostalgia. A colisão já estava feita e ele não tinha como contornar, porém, sabia que tinha algo a cumprir. Nem mesmo a deusa teve controle da desordem, mas sabia que se não fizesse nada, inúmeras ramificações poderiam surgir a partir da fenda aberta por Emília em 1980. Ymir o encarregou de limpar a bagunça da sua avó. A deusa via aquela designação como um castigo, mas ele encarou como uma redenção.

— As coisas já aconteceram, você só precisa colocá-las no lugar.

Ele escutou a voz melodiosa da deusa e se virou. A real forma da gigante permanecia escondida por uma nebulosa película esbranquiçada. O viajante não sabia onde estava, mas era para onde ia quando precisava pensar. Era uma espécie de estação fora da curva do tempo, "em lugar nenhum", onde o dia sempre predominava.

— Não faça mais nenhuma interferência grave.

O aviso bastou para ele saber que ela se referia a sua interferência no ano de 1980, quando se deitou com Amélia. Por algum milagre, o universo foi se ajustando até aceitar a existência de Phil Jean. Falke lutava com todas as forças para se controlar. Ele já sabia o que iria acontecer no ano de 1988, quando finalmente se reencontraram e esclareceram algumas coisas. Aos poucos, foram se aproximando novamente, ela o permitiu voltar a entrar na sua vida, participar da criação do filho. Falke nunca havia se sentido tão feliz desde Karen Sue. 

Porém, a sombra de Zuri Ayana pairou mais uma vez sobre suas cabeças. Quando pararam para conversar melhor, entenderam que tudo não passava de um mal entendido. Mais velhos, ambos perdoaram Zuri, atribuindo o seu comportamento na época aos caprichos de sua idade. Tudo estava indo bem, mas o destino de Falke e Amélia juntos parecia fadado ao fracasso.

Starfish, 1988.

Duas semanas se passaram após a festa de inauguração da casa sustentável de Love. Falke não aguentava mais esperar, ele sentia que se hesitasse mais um pouco, a perderia para sempre. Às duas e meia da manhã, a secretária eletrônica apitou. Um pouco insone, ele estendeu o braço até o móvel na lateral da cama e apertou o botão

"O Falke que eu conheço provavelmente está acordado. Estou na Las Vegas Dance. Me encontre lá se quiser dançar". O homem se levantou com um salto, correu para o banheiro apenas para escovar os dentes, se vestiu em uma roupa social qualquer e seguiu com seu carro até a danceteria. Ainda dobrando a esquina, escutou alguma música do Duran Duran ser trazida pelo vento. Ele entregou as chaves para o manobrista e rumou para dentro. A danceteria estava apinhada de pessoas naquela noite. 

Era véspera de feriado e todo mundo estava aproveitando a madrugada, não precisariam acordar muito cedo no dia seguinte. Amélia agitava os braços para cima e parecia não se importar com a sua dança tosca. Ela parou de repente ao avistá-lo parado à sua frente. Amélia gargalhou das roupas dele, pois o homem estava idêntico ao seu filho quando vestia as roupas de Carl para brincar de adulto.

Falke deu de ombros diante da risada dela e olhou para as próprias roupas. Vestia uma calça social caqui e um suéter verde natalino. Ele ansiava em perguntar sobre o filho, mas sabia que estaria aos cuidados de Carl, e se Amélia o chamou para uma danceteria, a intenção era se divertir. Sem esperar que ele se ajustasse, ela o puxou pelas duas mãos e começou a embalá-lo ao som de Billy Idol, cantando Dancing With Myself. Eles seguiram o mesmo ritmo de dança que tinham na juventude, e após dançarem oito músicas seguidas, foram se sentar exaustos no bar.

— Não imaginei que viesse — Amélia disse, bebericando o seu drink verde.

— Eu jamais perderia uma dança com você.

— Hum.

Ambos ficaram em silêncio, imersos em palavras que gostariam de dizer e de gestos que desejavam demonstrar, mas reprimidos pelo passado e a culpa, permaneceram calados, apenas saboreando drink após drink. Amélia queria lhe confessar muitas coisas, dentre elas, que foi ver Dandy uma última vez e que ele ainda permanecia lá. Ela sabia como ninguém os motivos de um espírito permanecer preso no plano material, e na maioria deles, não eram bons. A médium começou a mediar almas enquanto fazia seu mestrado. 

Não foi uma tarefa fácil, mas conseguiu conciliar. Por dias, meses e anos a fio, quando retornou para Starfish, o desejo de ir ver o seu velho amigo e amante inflamou em seu peito. Ela queria mediar a sua alma, mas fracassou, e depois daquele dia, nunca mais se aproximou daquela pista. Amélia sabia que poderia não aguentar a carga emocional de lidar com a alma de Dandy Spring, e com muita relutância, reconheceu que a vida que um dia almejou com ele, não poderia existir. Ela então seguiu seu caminho, pois sua vida continuou, a dele, infelizmente não existia mais. Falke parecia saber o que a mulher ansiava em dizer. 

Se naquela noite ela lhe confidenciasse suas dúvidas sobre os motivos de Dandy ainda permanecer preso naquele plano, talvez ele lhe confessasse, mesmo sabendo que não poderia fazer mais interferências.

— Ana e Simon já me falaram uma vez que Zuri era mentirosa — murmurou, olhando para o companheiro e parecendo enxergá-lo pela primeira vez naquela noite. — Eu nunca quis acreditar.

— Ei, podemos falar sobre isso outra hora, tudo bem? Zuri nem está aqui para se defender. Vamos apenas nos divertir um pouco, como nos velhos tempos.

Amélia o lançou um sorriso sincero e apaziguador.

— Eu sempre amei isso em você — ela disse.

— Isso o quê?

— A sua sinceridade, maturidade. E acima de tudo, o respeito.

— Eu não sou isso tudo.

— É isso, e um pouco mais — Amélia colocou sua mão sobre a dele. — É o pai do meu filho.

— Você sabe que eu não consigo me controlar, vai mesmo me fazer chorar aqui?

— Não, vou fazer você chorar na sua cama.

Falke entreabriu um sorriso, que mais parecia uma careta. Ele não estava esperando pelo flerte, mas não se impediu de pegá-la pelo braço e sair da danceteria o mais rápido possível. A casa estava imersa em um silêncio profundo, exceto pelo ronco estrondoso da governanta. Greta já tinha se recolhido e dormia como se não fosse acordar no dia seguinte. Eles subiram apressados, e mesmo com o pouco vislumbre da casa, Amélia estava impressionada. Ela vagou pelo quarto, passou os olhos pela escrivaninha repleta de livros e folheou algumas anotações que estavam espalhadas ali.

— Nerd, não é a toa que você é podre de rico.

— Eu gosto de construir coisas, por isso migrei para a arquitetura.

— Abandonou o surfe?

— Pego uma onda uma vez ou outra, mas não consegui levar adiante depois daquilo.

— Entendo — ela decidiu não voltar a mexer no passado. — A casa do Love ficou incrível.

— Foi? — Falke se aproximou devagar, a fazendo dar alguns passos para trás até esbarrar na parede de livros. — Acho que você ficou sem saída.

— Sim, eu tentei fugir de você, mas o destino me trouxe de volta.

— E você gostou?

— Eu amei.

Amélia sentiu o corpo tremer ao se beijarem. Seus corpos ansiavam um pelo outro, como um coração que precisa de sangue para pulsar. Amélia jogou seus braços ao redor do pescoço de Falke, enquanto os dele passeavam por suas costas e a traziam para mais perto. Ele a segurou pelas nádegas quando ela pulou e se enrroscou em sua cintura. Amélia gemeu e suspirou ao caírem esbaforidos na cama. Suas roupas foram retiradas com urgência e logo seus corpos estavam em perfeita sintonia, entre arquejos e beijos famintos. Amélia agarrava os lençóis com força enquanto sentia os lábios de Falke explorarem cada centímetro do seu corpo.

Eles conheciam cada parte um do outro, e sabiam traçar, tocar e provocar sensações que os levavam ao êxtase. Suspiraram aliviados quando terminaram, e permaneceram abraçados, ainda extasiados pelas sensações que voltaram explosivas após anos adormecidas. Amélia estranhou as cicatrizes nas costas de Falke, que deu como justificativa, um acidente em uma das obras. Ela acreditou, pois nada sabia sobre as viagens no tempo. 

O arquiteto a fitava como se fosse a criatura mais preciosa da face da Terra. Ele acariciou aquele rosto com traços delicados, tão jovial quanto se recordava. Ele se perguntou se ela notara algumas marcas que as viagens no tempo deixaram em seu corpo, mas fora as cicatrizes nas costas, Amélia só havia reparado no quanto aqueles olhos negros pareciam mais velhos, como se absorvesse todas as intempéries do tempo.

— Ah, droga! — ela resmungou. — O Carl vai me matar.

— Me desculpe.

Falke se sentiu mal pelo marido dela, ele sabia como ninguém o sentimento sufocante e destrutivo que era de se sentir traído.

— Não é isso, eu esqueci de pagar a hipoteca.

— Mas...

— O Carl é gay — ela o fitou com divertimento nos olhos. — Surpreso?

— Totalmente.

— Meu casamento, em partes, é de mentirinha.

— Em partes? Como assim?

— O senhor narigudo não vai colocar a cabeça para funcionar? — Amélia agarrou o nariz de Falke entre os dedos e o puxou para mais perto. — O nosso casamento é de fachada. Ele se casou para se esconder da sociedade, e eu, para me esconder de você.

— Se esconder de mim por causa das mentiras de Zuri, não é?

— É claro — Amélia se aninhou no peito dele e suspirou. — Sabe, desde o acidente... eu me sinto incompleta. Não sei explicar, é só que... falta algo, entende?

— Eu entendo — Falke queria confessar a sua jornada, mas não poderia interferir mais do que já tinha feito. — Também me sinto assim desde o fim da Pluma.

— Sim, talvez seja isso, o fim da Pluma.

"Não, você se sente incompleta porque a sua alma foi fragmentada" Falke pensou. Ele precisou se controlar bastante para não lhe dizer nada. Já parecia bastante impossível que a mulher que amava o aceitasse de volta, então ele se limitou a abraçá-la com força. Eles voltaram a se beijar e se perderam nas carícias um do outro. Na parede lisa, a única foto onde continha os seis jovens, agora só havia cinco. A imagem de Dandy Spring foi se apagando, aos poucos, como se nunca houvesse existido naquela dimensão.

Starfish, 1989.

Harold Spring jamais conseguiu superar a perda do sobrinho. O viúvo se casou um ano depois da partida de Dandy, mas os cacos do luto eram irreparáveis. Quando se casou com Nora Goose, a ex-viúva que alimentava os pombos, ele pediu que ela e o filho se mudassem para a sua casa. Clint Goose era um jovem de vinte e dois anos, gostava muito do padrasto e todos se davam muito bem. A casa era espaçosa, mas Harold mandou construir mais dois quartos, ele não queria que entrassem no quarto do sobrinho. 

Nove anos após o acidente, o cômodo permanecia o mesmo. Ele não deixava que ninguém entrasse, a não ser ele. Todos os dias, o mecânico entrava no cômodo para limpar, como se Dandy fosse voltar a qualquer momento. Ele sofreu bastante na época, mas foi se ajustando ao luto, porém, nunca se sentiu recuperado. Quando a saudade apertava, o homem ia para o quarto do sobrinho e se recordava dos seus últimos momentos. A proximidade das festividades de fim de ano os deixavam ansiosos, a esposa e o enteado estavam animados, mas para Harold era sempre muito doloroso. Eles respeitavam ao máximo a sua dor, e não protestavam quando ele se trancava no quarto de Dandy na data de seu aniversário.

O coração apertava ao abrir a gaveta e retirava uma pasta, que além de fotografias, continha a carta de aceite na universidade. Ele jamais iria esquecer de quando o sobrinho chegou esbaforido em casa e praticamente pulou em seus braços, sem se importar com o tio todo sujo de graxa e óleo. Ele gritava animado, fora aprovado na universidade para cursar matemática. Era uma das coisas que ele mais almejava, e quando finalmente conseguiu, sua vida foi soprada para longe. 

Harold retirou o casaco vermelho do ex-corredor do armário e o colocou sobre o seu colo. Ele riu ao lembrar quando Dandy lhe contou que havia dado o seu casaco para uma menina bonita. Harold fingiu estar zangado, pois ambos ainda não tinham muito dinheiro para sair se desfazendo de suas coisas, mas o sentimento de felicidade e orgulho prevaleceram. Dandy estava progredindo, e tudo isso graças a Amélia Jean.

As lembranças do sobrinho também o ajudaram a superar as fases do julgamento movido por Zuri Ayana. Harold sempre achou aquele julgamento uma tolice, as alegações da garota eram claramente inventadas. Ele não achou que fosse ver um processo que envolvia deuses e oferendas. Aquilo ainda o deixava zangado, pois ele encarou como um desrespeito à memória do sobrinho. Ele não conseguia entender as motivações daquela menina, apenas que ela estava causando sofrimento em muitas pessoas, principalmente no rapaz que ela dizia ser seu amigo. O mecânico ficou feliz quando o julgamento acabou e os Truelsen foram inocentados, depois disso, não teve mais notícias de nenhum deles, exceto o rapaz platinado, que abandonou o surfe e se tornou um arquiteto bem sucedido.

Os anos foram passando, e as dores, se apaziguando. Enquanto Falke interferia nas realidades das dimensões, estas, iam se ajustando erroneamente, mas estavam se ajustando. Se a alma de Dandy Spring do ano de 1980 da primeira dimensão fosse para a segunda, ele deixaria de existir, aos poucos, na realidade onde o acidente aconteceu. Era 22 de setembro de 1989 quando Harold Spring subia para o quarto onde costumava passar o restante do dia naquela data. O mecânico se sentia estranho, era como se tivesse esquecido algo muito importante. Ao chegar no topo da escada, ele parou, piscou os olhos diversas vezes e franziu o cenho.

Confuso, ele foi até o quarto, mas não se lembrava do que deveria fazer ali. Alguns porta-retratos na parede, outros na escrivaninha, estavam vazios. Ele olhou para as fotos, algumas, ele estava sozinho, outras, só havia um cenário. Ele segurou uma que continha cinco jovens na frente de um Mercury Monterey vermelho, e um espaço ao lado da jovem de cabelos amarronzados fez o seu coração apertar. 

Por mais que tentasse se recordar, Harold não conseguiria, pois no ano de 2025, a fenda já havia se aberto e o levado para outra realidade. Dandy Spring não existia mais ali, por mais que tentassem se recordar, seria impossível lembrar de algo que jamais existiu. Ele vasculhou as gavetas, retirou vários papéis da pasta, onde outrora se encontravam a carta de aprovação da universidade, carteira de motorista, certidão de nascimento e inúmeros outros documentos... estavam todos em branco.

— Ei, meu velho — disse Clint, entrando no quarto. — Tudo bem?

Ele notou o padrasto muito quieto e pensativo durante o dia e ficou preocupado.

— Ah, oi filho — Harold o encarou. — Eu não consigo lembrar o que vim fazer aqui, olha só esses documentos, estão em branco, não tem o nome de quem pertenciam.

— A mamãe disse que você ia vender esses móveis, isso aí deve ser do antigo inquilino. Você colocou o quarto para alugar, lembra?

— Sim! Como pude me esquecer?

—É a idade, velhote — Clint riu e passou o braço pelo ombro do padrasto, o encaminhando para fora. — Vamos jogar um pouco de baseball.

"Velhote", o coração de Harold apertou ao ouvir o rapaz o chamar daquela forma. Alguém o chamava assim, mas quem? O mecânico se virou e deu uma última olhada no quarto, uma última tentativa de lembrar, mas nada. Ele suspirou e sorriu para Clint.

— Há tempos que não me sinto tão nostálgico. Só lembrando que você prometeu me ajudar na oficina hoje.

— É claro, mas só se você me prometer retocar a tinta do meu Mercury Monterey vermelho.

Starfish, 1989

Zuri Ayana não ficou nada contente quando soube, através de um telegrama, que Falke e Amália iriam se casar. Ela recebeu o convite, mas não estava feliz. Transtornada, a ginasta estava se deixando levar pelos seus delírios. Após duas semanas sem frequentar a terapia, ela retornou na terceira. A terapeuta se preocupou com o estado da paciente, que demonstrava traços de estresse e muita agitação.

— Eles vão se casar — Zuri murmurou, com os lábios trêmulos. — Não podem!

— Você se refere a Falke e Amélia?

— Sim, quem mais seria?

Doris Phineas tinha Zuri como paciente há cerca de três anos. Ela a conhecia bem, e aquele estado de agitação não era um bom sinal. Ela notou a mulher roer as unhas, os pés impacientes e o olhar deslocado. A ex-corredora foi diagnosticada com transtorno de personalidade, do tipo paranóide, e seus surtos só pioraram quando o desastre de 1980 aconteceu. Ela parou de tomar os remédios e passou a ficar muito obcecada por Amélia. Por muito tempo, acreditou estar apaixonada por Falke, mas através das sessões, Doris a fez revelar o seu amor pela amiga. Zuri tentava suprir o desespero de amar alguém impossível, colocando na própria cabeça que amava o norueguês, mas tudo não passava de desespero para esconder sua orientação sexual.

— E como você se sente em relação a isso?

— Eu me sinto traída... — Zuri enterrou o rosto nas mãos e começou a chorar. — Eu só queria que ele sumisse, sabe? Tudo seria tão mais fácil.

— Eles perdoaram você, Zuri. Por que está tão chateada?

— Porque eu sou apaixonada por Falke! — gritou, começando a perder o controle. — Isso é uma maldição!

— O amor não é uma maldição.

— É sim, eu odeio o amor!

Zuri se levantou de repente, ignorando os pedidos da terapeuta para que ficasse. Ela saiu do consultório alterada e rumou até uma agência de viagens, comprou uma passagem somente de ida para Starfish, na Flórida. A ginasta recusou todas as ligações de Doris. Antes de entrar no voo, ela tomou alguns remédios para se manter mais calma. Ao embarcar em Starfish, não precisou de muitas informações para descobrir onde Falke morava. Ela se instalou em um hotel de veraneio no mesmo quarteirão, e passou a observar a movimentação da família. Os dias foram passando, e o casamento se aproximava. Zuri não tomou mais os remédios, se sentia melhor sem eles.

Starfish, 1989 (o dia do casamento de Falke e Amélia).

O dia do casamento chegou e os noivos estavam nervosos. Agora divorciados, Carl ajudou a amiga em todos os processos de preparação para a festa. Amélia e Falke conseguiram restaurar a antiga relação, ficaram inseparáveis e superaram suas tristezas e mágoas juntos. Carl estava exultante ao vê-la tão feliz. Os três estavam no processo de tentar contar para Phil quem era o seu verdadeiro pai. O pequeno já tinha idade o suficiente para entender algumas coisas, e não precisou de muitas explicações para ele saber quem era o pai biológico. 

Ambos criaram uma conexão especial, e nada mais no mundo deixava Amélia tão feliz ao presenciar momentos de descontração entre o noivo e o filho. Ela amava quando Falke ensinava Phil sobre astronomia, amava vê-lo colocar o filho para dormir e amava vê-los tão felizes um com o outro.

Love deu a ideia da cerimônia ser na praia, e eles aceitaram. Os convidados seriam poucos, apenas para não deixar passar em branco. Zuri observava a movimentação na casa, e resolveu agir quando viu Amélia saindo com o filho e o ex-marido. Ela caminhou até a casa, tocou a campainha e abriu um sorriso amistoso quando a governanta a recebeu.

— Olá, bom dia! Eu me chamo Carla, sou responsável pela cerimônia do salão.

— O casamento será na praia — disse Greta, desconfiada.

— Oh, houve um mal-entendido então, não fui comunicada.

— Tudo bem, entre. Vou chamar o sr. Truelsen.

Zuri não sabia muito bem o que estava fazendo ali, só sabia que desejava arruinar tudo entre eles. Greta desceu minutos depois e pediu que ela aguardasse na sala que ele já estava descendo. A governanta se ausentou, e foi o momento perfeito para Zuri subir sorrateiramente as escadas. Ela chegou até a cobertura e quase gritou de felicidade quando escutou o chuveiro ligado na suíte, Falke estava tomando banho. Sorrateira, ela bisbilhotou cada centímetro do quarto, e parou para ler algumas anotações que estavam espalhadas pela escrivaninha. Ela viu datas, acontecimentos e anos detalhadamente preenchidos nas folhas, como se Falke soubesse de tudo.

Seus olhos passaram pelas anotações sobre o equinócio, sobre a fragmentação de almas, anomalias e dimensões do universo. Desesperada para ter algo contra ele, ela começou a recolher aqueles papéis, até que seus olhos caíram em um objeto estranho. Era uma roda, o material parecia ser de marfim, encravado com algumas runas. Vários anos preenchiam aquela espécie de auréola, e em especial, os de 1980 e 2025, que estavam vermelhos.

— Eu sempre soube que você escondia algo — murmurou.

— Zuri?

Ela se virou de repente, assustada. Ver Falke vestido com o terno inflamou seus olhos cheios de fúria e obsessão. Ela lhe lançou uma risada debochada ao vê-lo se desesperar ao notá-la segurando o artefato. O noivo engoliu em seco e sentiu um imenso frio na barriga, sabia que ela não estava em boas condições mentais, e qualquer movimento com a roda, ela poderia ser lançada para qualquer ano daquela dimensão, e isso estragaria tudo.

— Tá com medinho, é? — ela riu. — Eu sabia que você praticava bruxaria.

— Podemos conversar como adultos?

— Eu sinto o cheiro do medo na sua voz. É incrível que mesmo depois do que aconteceu, vocês ainda insistem em ficar juntos.

— Zuri, por favor. Deixamos o que aconteceu lá atrás — ele deu um passo cauteloso em sua direção, mas ela recuou. — Pode ficar com os papéis, mas me devolva a roda.

— Isso? — ela sacudiu na frente dele. — Não é um brinquedo do seu filhinho?

— Apenas me devolva, certo? Prometo não dar queixa à polícia.

— Eu não invadi a droga da sua casa, a sua governanta idiota me deixou entrar — seus olhos perturbados caíram na foto da Pluma reunida, onde Dandy sumiu. — Você está tentando apagar o Dandy da foto? Mas nada vai apagar o que você fez...

Falke aproveitou sua distração e correu até ela para tentar tomar o artefato. A ginasta tentou desviar, jogando todos os papéis no chão. O noivo grunhiu quando ela mordeu seu pulso, e foi empurrado para trás ao conseguir arrancar o artefato das mãos dela. Falke caiu de costas e respirou fundo. O frio intenso na barriga voltou ao ver que Zuri havia girado a catraca da roda para o ano de 2024. Ele não teve muito tempo para agir quando o vórtice se abriu e o levou dali. Zuri olhava apavorada para a espiral que engoliu Falke. Ela acreditava que estava alucinando, mas ele não estava mais ali, e se foi, junto com o objeto estranho.

Amélia e Greta subiram assustadas ao escutarem gritos. Encontraram Zuri de joelhos, rodeada pelas anotações de Falke. A noiva correu até a amiga e a abraçou, vendo que a outra se encontrava em uma espécie de crise de pânico. Zuri chorava, assustada com o que viu.

— Calma, o que houve? — Amélia perguntou.

— Amiga, ele te abandonou... — ela recolheu os papéis e os mostrou a Amélia. — Eu descobri tudo, viu? Sempre tive razão.

A médium passou os olhos pelos papéis. Com todas aquelas datas, anos e acontecimentos, ficava difícil não acreditar em parte do que Zuri sempre alegou. Mas onde estava Falke?

— Onde ele está? — Amélia perguntou, com os lábios trêmulos. — Só ele pode me explicar!

— Ele te abandonou, de novo....

— Não, meu menino jamais faria algo assim! — Greta interveio, vendo a noiva chorar. — Essa moça mente!

— Eu não preciso mentir, está tudo nos papéis! Ele fugiu quando viu que descobri.

Amélia agarrou aqueles papéis com força até amassá-los. Suas lágrimas desciam desenfreadas, borrando a maquiagem. Ela não queria acreditar em Zuri, não queria acreditar que ele a abandonou. Inconsolável, a noiva se lançou aos braços da amiga e a abraçou com força, com medo de ser abandonada por ela também. Zuri sentiu o coração bater mais rápido, finalmente conseguiu separá-los. Ela beijou o topo de sua cabeça e afagou seus ombros.

— Ah, meu Deus! Falke, por quê? — Amélia perguntava entre os soluços desenfreados.

— Porque você é ingênua demais, amiga — Zuri segurou o rosto choroso da noiva e a fez fitá-la. — A sua maior qualidade também é o seu maior defeito, você é boa demais, Amélia.  

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top