Egoist
Abri os olhos.
Doce cheiro flutua por mim.
Cercada de penas brancas apenas a urgência apertada no meu estômago dizia "corra".
Não havia nada ao redor além de uma estrutura abandonada e o teto que subia, subia, subia para o auge de um brilho dourado-vermelho.
Mas eu sabia que ali uma fera dormia ao mesmo tempo que me observava. No entanto, ao redor era apenas escuridão, as escadas seguiam paralelas as paredes ao brilho quente.
Alguém me olhava de cima, o rosto obscurecido pela luz acima, escondeu-se para longe.
Tentei gritar por ela, mas a fera ali dormia. Os dois olhos no sono e um interno em mim.
Meu medo me fez levantar, as pernas bambas, e a presença bestial negra crescendo e crescendo como se fosse me sufocar e consumir.
As escadas me aguardavam.
Não havia nada lá, até a temperatura era indiferente, mas ao longe algo pingava martelando as batidas do meu coração.
Cada vez mais as escadas subiam, um passo após o outro, as solas dos meus sapatos raspando contra o concreto, um sopro ao meu ouvido.
Sussurram meu nome. Não sei quem sou. Sussurram um segredo que não entendo.
O hálito úmido e o ar elétrico friccionam minha orelha.
A confusão é audível, a resposta muda.
A fera levanta ainda adormecida, olho para baixo, onde tanto subi, não existem penas brancas.
Elas são rubras.
Há lágrimas caindo aos meus pés das minhas bochechas, as pego de palmas abertas, minhas mãos estão sujas sem nada nelas.
O odor agridoce são de pétalas murchas, elas vêm de mim?
O que pinga abaixo na sala que abandonei é sangue, e vem das presas da fera. Ainda adormecida.
Corro pelas escadas, o perfume de morte é deixado para trás, há um corredor escuro, não posso voltar atrás, a fera está a espreita, por mais que esteja adormecida. Suas garras e presas continuam afiadas no peso descomunal.
Mas depois do corredor posso ver que há a luz que tanto procuro, ela me aguarda pronta para me abraçar, mas impaciente.
Há uma sala adjacente onde a luz é somente vermelha, não devo entrar nela, sei que não devo, não quero, não vou. Lá a fera me encurralará e me devorará.
A criatura senta no topo das escadas, a bocarra mostrando os caninos e mentiras, uma promessa afiada, e as orelhas que só servem para maldar abaixadas sobre o crânio triangular, a cauda pontuda estendida como toda a pelagem negra e espessa, há sangue caindo da língua áspera para as grandes patas dianteiras.
O sangue do cervo escorre junto da saliva e encharca a pelagem que é um buraco negro na escuridão. Mas os olhos continuam fechados.
O cisne o odeia.
E ele ama o pescoço maleável da ave que ficou tanto tempo presa na forma de pato feio.
Mas o cisne voa livre no céu, naquele céu dourado e vermelho e o cervo se foi. Não há como mudar o que foi feito, a besta ri.
Não consigo me mexer perante a atrocidade que é tão familiar.
Uiva e eu corro para a luz que ofusca o meu rosto, sinto seu calor me acolhendo, posso até sorrir.
Basta atravessar a porta.
A luz vermelha e dourada se extingue, porém posso ver através da escuridão, sempre pude?
Na sala há três prateleiras, nenhuma porta ou janela, não posso voltar. Lágrimas voltam a escorrer pelo meu rosto, elas têm gosto de ferrugem. Na primeira prateleira há uma videotape, na segunda um uniforme amarelo xadrez, é o meu ou o do cisne? E na última um pato de pelúcia.
Descubra o segredo que você já sabe.
Eles entram em ebulição, o perfume agridoce vem deles, tento apagar com as minhas mãos, porém estão encharcadas.
O ar se precipita, algo nada ao meu redor pelas correntes elétricas inexistentes, ela me sussurra novamente com seu hálito de cereja:
"Queime".
O fogo vermelho consome os objetos, meu rosto secou, mas a dor continua existindo, minhas costas doem tanto quanto minha alma. Na minha mão há um isqueiro.
"É o destino."
Na minha outra mão há uma maçã. Ela nada ao meu lado pairando, a cauda azul flutuando de acordo com o mergulho assim como a barbatana transpareente balançando de acordo com a corrente que controla. Seus longos cabelos loiros mexem-se suavemente enquanto mergulhados tomando a frente da minha visão. Os braços me envolvem os ombros, seu toque é molhado e frio como chuva durante a noite. De forma alguma acho ruim.
A lua azul está sobre nós.
A maçã é tão tentadora quanto a outra, houve outra?
"Morda". Ela sugere.
Meus dentes roçam na fruta e a cravam.
Eu sabia que era errado para o cisne e o cervo, mas para mim, para nós ali, não era errado, não era...
Um erro cheio de exatidão.
Tão bom, tão errado, tão certo.
O gosto suave preenche o meu ser, e o suco está nos meus lábios, vermelho. Não era uma maçã.
"O sol da tarde nos aguarda, anjo caído." Seu hálito arrepia minha nuca.
Solto apavorada a falsa maçã, a lua azul se eclipsa e estou sozinha novamente com o fogo a metros na minha frente, o isqueiro ainda descansa na minha outra mão. Corro da sala para o corredor.
O ser grotesco está lá e se levanta com as presas a mostra, não num rosnado, não há para onde fugir. A sala atrás de mim queima e a do lado...
Minha única chance ou o meu caminho para a morte. Corro para a luz rubra, a criatura não pode passar pela porta, é muito grande, ouso pensar.
Meus pés aceleram mais e mais, no entanto é ridículo, ele passou e está atrás de mim.
Despenco num abismo, o sangue ainda está nos meus lábios, meus dentes o roçam e é tão doce. Tão doce!
A queda é interminável, lembro que ela me deixou cair, sua mão soltou a minha, o cisne me encarava impassível enquanto me via cair e cair para proteger o cervo que tanto amava.
Não adiantou.
O impacto levantou e espalhou as penas vermelhas, as minhas penas. Lembro do cisne me fitando e das lágrimas que corriam pelas minhas bochechas, o que ele viu? Por que me soltou?
Não consegui gritar, não pude gritar.
Mas o cheiro doce da morte vinha da minha boca.
Levantei no mesmo lugar que comecei, a fera na escuridão vinha calmamente até mim, seus olhos abriram.
Era tudo que eu conseguia enxergar dele.
Então eu soube. Lembrei.
O cisne segurava minha mão me puxando, querendo que eu ascendesse como ele e os outros que escolheu, me tirando das sombras e me mostrando o mundo repleto de possibilidades, seu rosto era radiante e o próprio sorriso uma promessa de felicidade. Contudo, seus olhos obscureceram tomando a ciência de algo analisado de perto, me fitou e seus lábios se mexeram.
Os lábios que eu tanto queria beijar.
"Lobo em pele de cordeiro".
Me soltou.
Os olhos dourados como ouro da ganância dos homens me observavam. O lobo emergiu das sombras. Meus olhos me observavam.
Eu andava para mim.
Não havia mais temor, aquele lobo era eu, os olhos dourados eram meus e estavam abertos.
Agachou para mim e nos abraçamos, o lobo se amava, mas ainda havia dois corações.
A lua negra estava sobre nós.
Nos olhamos.
Três beijos sob o luar, a sombra única de mãos dadas na escuridão, agora eu sou você e você é eu.
Um coração, uma alma, sem vestes de cordeiro, apenas garras e presas.
E o sangue do cervo na minha boca. Lavo minhas mãos, não há do que se arrepender. O cisne me soltou sobre o cervo, era a minha presa.
Levanto e a porta está lá levando para a escuridão que nunca me assusta. Meus olhos estão despertos e alma afiadas.
O peixe azul me espera, não demorarei.
Atravesso a porta, há o último lance de escadas levando ao topo.
As subo sem pressa, o ar frio bate em meu rosto, mas não me incomodo, a pelagem me protege.
Há duas taças de vinho tinto.
O som da vida da cidade me absorve, a noite é linda como o dia jamais será e os sons no horizonte de prédios inebriam meus sentidos repletos de presas que caminham e vivem.
As sinto pulsar.
Eu sou você e você é eu.
Ouço passos atrás de mim, me viro, o alvo coelho caminha para mim sem temor. Ele sabe que não é presa apesar de o ser.
Nos encaramos.
Ele sorri, finalmente me encontrou.
E o ciclo se fecha.
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