Lógica da alma
As cores amarelo, alaranjado, vermelho, um pouco de marrom, bege, e um verde meio apagado da grama seca, o vento fresco, o cheiro amadeirado, a textura rústica, o canto dos passarinhos, o farfalhar das folhas dançando no ar enquanto caem, o tapete natural que cobre o chão...tudo ali naquele lugar reflete a beleza do outono.
O bosque dessa pequena cidadezinha é atrativo e muitos moradores locais costumam levar as crianças pequenas para brincarem ao ar livre, sendo uma das poucas diversões e oportunidades de lazer que a zona rural tão inóspita poderia proporcionar.
Talvez após essa descrição tão perfeita, você queira pegar o seu carro e vir passar as férias com sua família, até mesmo gastando uma boa quantidade de dinheiro para a hospedagem em um pitoresco chalé digno de aparecer em ilustrações de contos de fadas. Não estou mentindo ou enganando ninguém, mas desconfie sempre, olhe melhor e verá que entre todo esse colorido outonal existe o cinza escondido.
Uma garota está caída no chão, e pelo olhar distante de quem caminha pelo local poderia até parecer que está descansando, simplesmente deitada ali, sentindo a brisa em seu rosto após cansar-se de rolar no meio das folhagens. Se você aproximar um pouco mais, poderá ver diversos arranhões já cicatrizados nos braços dela, pois a manga longa de sua blusa encontra-se parcialmente levantada, a respiração da menina é pesada como se estivesse sobrecarregada de adrenalina, também tem sangue escorrendo de sua cabeça parecendo que ocorreu uma forte pancada e ela definitivamente precisa de um curativo com urgência.
A garota é aquele ponto cinza quase invisível entre as árvores e fora das vistas de outras pessoas, mas um menino percebe a existência dela. Você deve estar implorando para que ele a ajude, tenho certeza disso.
Ele corre o mais rápido que consegue, toca o ombro dela com uma certa força e diz:
_ Emanuelly! Manu! Acorde, por favor! Diga que está bem!
Sim, agora sabemos o nome da garota, belo nome né. Emanuelly abre os olhos devagar, olha para o garoto, e tenta se afastar dele, sua face mostra sentimentos de medo, seu corpo se encolhe em frente ao tronco de uma árvore. Ele fica preocupado, se afasta um pouco, mas ainda permanecendo perto e dizendo:
_ Manu, já falei pra você que aquelas pessoas são más, veja como você está machucada. Eu fico triste e não quero que se machuque porque te amo muito. Sei que tenta ir atrás de amigos, mas muitas vezes a sua família pode ser os melhores amigos que você terá.
A garota agora olha para ele, e tenta sorrir, mas seu sorriso é um tanto forçado, exagerado, estranho. Ainda assim, o garoto fica aliviado por saber que ela parece um pouco melhor:
_ Manu, vamos para casa, precisamos fazer um curativo em seus machucados. Vai ficar bem, não sentirá dor, promessa de irmão _ ele diz carinhosamente.
Emanuelly segue o garoto pelo caminho, e agora sabemos algo mais, eles são irmãos. A garota anda saltitando, embora já seja bem grandinha para esse tipo de comportamento, atraindo olhares de estranheza das outras pessoas do bosque.
Após um certo tempo de caminhada chegam numa aconchegante casa de campo, e o garoto pede à irmã:
_ Manu, sente na poltrona da sala, farei um curativo em você, precisamos cuidar desses machucados para que melhorem.
Manu fica agitada esperando pelo seu irmão, começa a balançar exageradamente as pernas, e a mão direita aperta várias vezes o braço esquerdo. Quando está prestes a se arranhar, seu irmão retorna, dizendo:
_ Manu, tenha calma. Fique quietinha, vou limpar o machucado na sua cabeça, depois vou passar um remédio que arderá um pouco, e vou enrolar um pano. Tudo bem?
A garota não responde nada. O garoto cuida dela com muito carinho e amor, até que finalmente ela diz uma frase:
_ Jack, Jack, Jack! Obrigada, obrigada, obrigada!
Agora sabemos o nome do tal garoto, que quase chora de emoção ao ouvir sua irmãzinha falar, já que ela costuma ficar dias sem dizer uma palavra. Emanuelly é diferente das outras garotas da sua idade, mas ninguém costuma acreditar muito, as crianças e até alguns adultos do vilarejo dizem que ela finge para ter atenção. Jack é o único amigo real de Manu, e também é seu fiel protetor, sempre disposto a defendê-la.
Chegando próximo ao horário do pôr-do-sol, Jack leva Manu até uma pequena colina, onde a vista é muito bonita e dá pra ver as belas árvores quase se fundindo ao céu com as cores tão parecidas. Manu quase não fala, mas Jack ainda assim conversa sempre com ela, mesmo que não seja respondido.
_ Emanuelly, amanhã vamos juntos à capital. Talvez seja assustador lá, muito cheio de pessoas, cores, luzes, movimentos, mas não precisa fugir, estarei com você. Preciso te levar em um médico especialista que não existe aqui onde moramos, é pro seu bem.
Manu diz a segunda frase do dia, até que ela está bem falante hoje:
_ Médico não! Médico não! Médico não!
O pôr-do-sol costuma acalmar a garota, mas essa conversa a assustou, e ela quer voltar para casa logo, dá pra perceber isso quando puxa o braço de seu irmão pedindo para ir embora. Jack acaricia os braços de sua irmãzinha, dizendo:
_ Manu, o médico que vou te levar não vai dar injeção, é um médico legal. Ei, quer que eu cante pra você?
A garota assente com a cabeça, e os dois se sentam lado a lado naquela colina, enquanto uma doce canção acalma os corações deles com a melodia dos passarinhos de fundo. Ficaram juntos até o anoitecer, e à luz de um lampião retornaram para casa, logo indo para as camas com seus sonhos tranquilos dizendo que ficaria tudo bem.
No dia seguinte o garoto se levanta mais cedo que o de costume, e chama sua irmã para pegarem o trem para o centro, em direção ao consultório do tal médico. É uma distância um pouca longa, mas Jack se sente preparado e independente para realizar a viagem, do alto dos seus 16 anos de idade acumulou mais responsabilidades do que qualquer colega de classe da mesma idade, atingindo uma maturidade precoce por cuidar de sua querida irmãzinha de 13 anos.
Passaram por trilhos barulhentos, andaram ruas por engano por causa dos nomes parecidos, se meteram por vielas sem saída, quase foram assaltados e fugiram correndo, atravessaram fora de faixas de pedestres sob gritos e buzinas de motoristas raivosos, mas chegaram em segurança.
O consultório é numa casa dessas de estilo vitoriano, mas não tão grandes e esplendorosas como a maioria das casas antigas que vemos em filmes. Era como se fosse uma réplica menor e com menos glamour, e sua porta tem uma haste de metal com placa pendurada escrita "consultório do dr. Oliver, psicólogo". Ao abrir a porta, uma sineta é tocada e surge uma assistente dizendo:
_ Consultório do dr. Oliver. Marcaram consulta por carta, telégrafo, ou telefonema?
A assistente diz a frase de forma mecânica, afinal é um trabalho repetitivo, sempre a mesma rotina. Mas ela olha para aquelas duas pessoas, percebendo que talvez não sejam adultos, fica incrédula, e entra numa porta sem nem esperar a resposta do garoto.
Dr. Oliver percebe que sua assistente não está reagindo normalmente e questiona:
_ O que houve? O paciente é tão esquisito e assustador assim? Te ameaçou?
_ Não, não, doutor. São praticamente dois jovens, e não sei se devo expulsá-los daqui, devem ter vindo nos importunar passando-se de loucos delirantes para depois saírem às gargalhadas pelas ruas _ a assistente deu sua resposta solícita.
Mas dr. Oliver não se abala, ele adora momentos impactantes que quebram o tédio diário. Nada melhor do que crianças para alegrá-lo, certo? Ele chama os dois com um sorriso no rosto e fazendo um gesto para que entrem na sala ao lado. Puxa duas cadeiras para eles sentarem, senta-se numa enorme cadeira que lembra uma poltrona, mas não é uma poltrona, e diz:
_ Vocês marcaram uma consulta ou entraram por curiosidade? Sejam sinceros.
O garoto fica envergonhado, olha para o chão, respondendo aos pés:
_ Desculpe o incômodo, doutor. Imitei uma voz mais grossa e fingi que era adulto para poder marcar consulta para minha irmãzinha, porque meus pais jamais a trariam até aqui. Usei o telefone do mercado, o dono do armazém tem um para verificar chegada de encomendas e empresta para outras pessoas do lugar onde moro.
Dr. Oliver ri, ele é bem humorado e alegre, não é o típico psicólogo sério carrancudo, e pode rir nesse momento porque não é uma sessão de psicoterapia e sim uma simples conversa anterior querendo saber se houve agendamento, afinal é um profissional disputado que precisa reservar horário com antecedência.
_ Tudo bem garoto, parabéns por ter agendado, conseguiu fingir bem que era um adulto. Mas não posso cuidar desse machucado na cabeça da sua irmã, não é minha especialidade, embora digam que sou médico de cabeça _ dr. Oliver explica carinhosamente.
O garoto não quer ser dispensado, andou muito até ali, a viagem não pode ser desperdiçada depois de tudo o que passaram, e num sobressalto fala impetuosamente:
_ Não pedi que cuidasse do machucado dela, doutor, porque eu já cuidei. Vim aqui para entender o porquê minha irmã é diferente das outras crianças, ela tem 13 anos e quase não fala, quando fala repete as palavras, não reage como os outros, tem medo de barulho, arranha o próprio braço quando parece ansiosa, e não é só isso.
Dr. Oliver olha para a garota e percebe que ela está balançando o tronco pra trás e pra frente várias vezes, como se fosse um pêndulo. Talvez seja o que ele esteja pensando, mas um diagnóstico de verdade não é feito dessa forma, não é só verificar os sinais e dizer um nome. Precisa de muitos atendimentos, várias sessões de terapia, e a aplicação de vários testes psicológicos.
O psicólogo agora se sente acuado. O menino deve ter gastado todo o dinheiro que tinha para estar ali e poder pagar pela primeira consulta, talvez não consiga pagar por outras sessões. Não pode oferecer tudo gratuitamente quando está devendo o salário atrasado da assistente, tem que pagar o cobrador do local da clínica alugada, e precisa comprar leite para os filhos crescerem saudáveis, porém o leite ficou mais caro.
"Ah, bem que eu poderia comprar uma vaca leiteira e ter leite de graça todo dia, mas minha esposa iria gritar que vaca no jardim é feio e chama atenção exagerada, fazendo a família virar alvo de fofocas da vizinhança"
Pensa dr. Oliver consigo mesmo. Vida de psicólogo clínico independente não é nada fácil. O que responder ao garoto? Só resta dizer a triste verdade.
_ Eu quero muito ajudar sua irmã, garoto. Ela precisa de um bom tratamento, terá que vir várias vezes à clínica, mas tudo custa dinheiro e não posso dar de graça, talvez eu faça um preço menor porque sei que se preocupa com ela, isso é tudo o que posso fazer por você.
O garoto se entristece e responde cabisbaixo:
_ Doutor, moro longe daqui, se tiver que vir várias vezes fica difícil. Quero ajudar minha irmã, posso até trabalhar, ser entregador de jornal, lavar pratos de restaurantes, qualquer coisa. Mas não sei onde ficar, não quero que o tratamento dela seja num local tão distante.
Dr. Oliver fica admirado com a autonomia e responsabilidade vindo de alguém tão jovem. Deve ter passado por muita coisa com sua querida irmãzinha, coisas que não dá pra imaginar tudo, mas cada experiência levou a amá-la mais enquanto desviavam de obstáculos juntos.
Talvez tal admiração tenha levado a tomar uma decisão precipitada que definitivamente faria sua esposa surtar e dizer que era uma ideia absurda, mas ele estava disposto a desafiar a opinião de sua mulher, então sorriu e sugeriu ao garoto:
_ Agora você tem um lugar para ficar. Você e sua irmã podem passar um tempo em minha casa, e poderá trabalhar em um local próximo de lá para receber seu dinheiro. Talvez as roupas dos meus filhos sirvam em vocês.
Jack pulou de alegria, abraçou o psicólogo, e Emanuelly afirmou:
_ Jack feliz! Jack feliz! Jack feliz!
E assim nos distanciamos, voltando ao local onde tudo começou. Esse bosque é bonito né? Ah, como eu amo o outono! Nessa história tudo ficou bem, histórias com finais felizes me agradam bastante, talvez sejam agradáveis a outros também.
Estive pensando sobre quem sou eu, refleti por dias e cheguei à conclusão de que sou amante das almas. A lógica da alma me envolve de tal forma que não consigo sair, e penso o quanto amo isso.
Psicologia envolve amor de ambos os lados, não importa se é o paciente ou o terapeuta. Talvez na maior parte do tempo o psicólogo pareça sério, frio e distante, tentando ter um ar de profissionalismo e neutralidade, mas ele pode sim amar lá no fundo do coração.
Amar resgatar cada alma oprimida, amar oferecer apoio e consolo, amar observar os olhares esperançosos porque apesar da neurodivergência é possível viver bem, amar acompanhar o progresso de cada paciente, e amar ao tentar ser flexível nas cobranças dos atendimentos.
No caso do paciente, o amor envolve agradecimento, um eterno obrigado por estender a mão e me ajudar a sair do fundo do poço, o choro não é mais de angústia e sim de alegria, a dor ainda existe mas ficou menor. Para não se tornar dependente foi ensinado maneiras de preservar a própria saúde mental, afinal precisa saber se virar sozinho no mundo, pois o psicólogo não estará sempre ao lado por mais que ame seu paciente.
Claro que amar demais pode ser um risco ao psicólogo, talvez dr. Oliver esteja no limite e precise reavaliar suas atitudes. Mas a lógica da alma é confusa e abrange ao profissional, que também é um humano acima de tudo, e sendo humano, cede aos fluxos do amor.
Então essa sou eu, uma humana, com defeitos, problemas, traumas, personalidade própria, que às vezes é resumida pelas pessoas como a doutora perfeita que cura pessoas, mas na verdade não sou essa doutora. Sou amante das almas e sempre serei.
*O conto possui um trocadilho com a tradução literal da origem da palavra psicologia, que no grego é a junção das palavras ψυ.χή (psyché) e λογία (logia). Psyché significa alma, logia significa estudo ou lógica, assim psicologia quer dizer literalmente "lógica da alma".
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