Capítulo Vinte e Nove

Theodoro Vinro:

Dias se passaram, e agora era meia-noite. Eu estava perto do meu antigo quarto no dormitório, à distância, observando Manu e Raimoy rindo juntos, imersos em sua própria alegria. No entanto, havia algo em Manu que parecia diferente, uma ansiedade perceptível em seus gestos, como se estivesse esperando por algo importante. Era exatamente isso que eu queria ver, entender o que a estava consumindo. Raimoy, como sempre, estava ao lado dela, oferecendo apoio silencioso, fiel como desde o início do namoro.

— Tem certeza de que quer fazer isso? — Madara perguntou, sua voz baixa e cheia de preocupação. Seus olhos brilhavam na escuridão, refletindo as luzes distantes do jardim.

Nós estávamos de pé na borda das árvores, observando o jardim repleto de flores que antecedia a entrada dos dormitórios. O cenário parecia quase irreal, o contraste entre a quietude da noite e a agitação interna que eu sentia era sufocante. O ar estava quente e úmido, sem uma brisa sequer para aliviar a tensão que pairava entre nós. Eu me sentia deslocado, vestido com jeans e uma camisa branca, um retorno à normalidade depois de tanto tempo vestindo as roupas dos espíritos e vivendo no meio de batalhas e decisões impossíveis.

— Eles merecem saber a verdade. — suspirei, a exaustão evidente na minha voz. — Eu devo isso a eles. Precisam entender porque não posso voltar para casa, por que as coisas mudaram tanto.

Madara me observou em silêncio por um momento antes de dar um passo à frente, sua presença reconfortante ao meu lado. Ele estendeu a mão, tocando meu ombro com suavidade, como se quisesse transferir parte de sua força para mim.

— Você pode visitá-los — disse ele, em tom encorajador, seus olhos suaves e compreensivos. — Ninguém vai impedi-lo, Theo. Não há razão para que você não possa voltar de tempos em tempos. Ela foi sua amiga antes de tudo isso, e sabe que, apesar de tudo, você nunca a esqueceu.

Havia um peso em suas palavras, uma verdade inegável. Mesmo com tudo o que havia acontecido, com o poder que agora corria em minhas veias e o reino que eu deveria liderar, parte de mim ainda pertencia a esse lugar. Ao meu passado, às pessoas que fizeram parte da minha vida antes de eu me tornar o rei de Scrapbooks.

Eu olhei novamente para Manu e Raimoy. O riso deles, embora alegre, parecia distante. Um lembrete de um tempo em que as coisas eram mais simples, quando eu não carregava o fardo de um reino sobre os ombros. Mas agora, havia uma distância entre nós que talvez nunca pudesse ser totalmente cruzada.

— Eu só... — comecei, hesitando. — Eu só não quero que eles pensem que os abandonei.

Madara se aproximou mais, seu olhar firme e acolhedor. Ele sempre soube como me tranquilizar, como entender o que eu sentia sem que eu precisasse dizer.

— Eles sabem, Theo. Eles sabem que você sempre fez o que era certo. — Ele fez uma pausa, um sorriso leve surgindo em seus lábios. — E quanto a mim, estarei aqui para te lembrar disso, toda vez que você esquecer.

Eu sorri de volta, sentindo o peso da ansiedade diminuir um pouco. Madara tinha esse dom. Mesmo no meio do caos, ele conseguia me trazer de volta ao presente, me fazer lembrar de quem eu era, de quem eu sempre fui.

Mas mesmo assim, naquela noite quente e úmida, com a escuridão ao meu redor e os sussurros do passado me puxando de volta, eu sabia que explicar tudo a Manu e Raimoy seria um dos desafios mais difíceis. Eles mereciam saber a verdade, e eu precisava encontrar as palavras certas.

— Vamos lá — murmurei, respirando fundo. — Está na hora de contar a eles.

Madara assentiu, caminhando ao meu lado enquanto nos aproximávamos dos dois. O destino havia mudado tanto, mas eu sabia que não podia seguir em frente sem antes fechar esse capítulo. E com Madara ao meu lado, senti que talvez, só talvez, eu fosse capaz de encontrar a paz que tanto procurava.

No Reino dos Espíritos, que agora eu governava, os primeiros dias haviam sido um turbilhão. Eu mal conseguia respirar enquanto tentava freneticamente colocar ordem no caos que reinava. Dy e Quil estavam à beira de declarar outra guerra contra os territórios vizinhos, e eu tive que intervir rapidamente para impedir o pior. Havia tanto a ser feito em Scrapbooks desde que o novo regente subiu ao trono – eu. Reuniões intermináveis foram convocadas, tratados novos e antigos foram cuidadosamente revisados e assinados, e regras rígidas foram estabelecidas nas fronteiras entre os territórios.

Daymon, com sua sabedoria impassível, insistia em cada uma dessas reuniões que eu deveria, eventualmente, assumir o controle total dos outros territórios também. Havia uma suspeita secreta em meu coração de que ele estava adorando ver Dy e Quil se contorcerem de medo com essa possibilidade. E, claro, isso o divertia profundamente.

Madara e Simon estavam ao meu lado durante todas essas reuniões. Madara, como sempre, se mostrava sociável e atento, seu olhar sempre calmo, mas perspicaz, enquanto Simon, bem... Simon era exatamente o mesmo de sempre, o que me fazia sorrir em meio a toda a tensão. Ele nunca mudaria.

Simon havia deixado claro desde o começo que meu novo título de rei não mudaria a maneira como ele me tratava. Ele provou isso da maneira mais inusitada, durante uma das reuniões com os cavaleiros mais rígidos e disciplinados do reino. No meio da tensa discussão sobre os tratados de fronteira, ele simplesmente se aproximou e, com um sorriso travesso, beijou-me na bochecha.

Foi uma ação rápida, mas o suficiente para fazer com que os cavaleiros do esquadrão ficassem tensos, suas mãos automaticamente indo em direção às espadas, como se Simon tivesse cometido um ato imperdoável. Eu precisei reagir instantaneamente, levantando a voz com autoridade:

— Fiquem onde estão! — gritei, olhando para os cavaleiros, que hesitaram, mas finalmente obedeceram.

Simon, é claro, apenas escapuliu, rindo enquanto os olhares irritados dos cavaleiros o seguiam. Ele era alegre demais perto de mim, um raio de luz em meio à seriedade que agora parecia definir minha vida como rei. Embora eu soubesse que ele estava brincando, aquele momento, tão simples quanto foi, trouxe um pouco de leveza para dias que haviam se tornado exaustivos.

Depois que ele desapareceu, não pude deixar de sorrir. Por mais travesso que fosse, Simon sempre soube quando eu precisava de um momento de alívio, uma pausa do peso esmagador das responsabilidades. E, com Madara ao meu lado, observando tudo com um olhar cúmplice e compreensivo, sabia que, independentemente de tudo o que enfrentaria, tinha aliados que nunca me deixariam esquecer quem eu era.

Governar o Reino dos Espíritos seria um desafio interminável, mas esses momentos me faziam lembrar que, no fundo, eu ainda era apenas Theodoro — aquele que, mesmo com uma coroa, ainda tinha amigos que o tratavam como antes, sem reverências exageradas ou formalidades vazias.

Madara começou a se declarar abertamente para mim, o que era quase surpreendente, mesmo depois de tantas vezes que já havíamos nos beijado desde que assumi a coroa. Havia algo diferente em como ele fazia isso agora, um jeito mais direto, como se não precisasse mais esconder o que sentia ou esperar pelo momento certo.

Cada vez que ele me olhava, seus olhos brilhavam de uma maneira que me fazia sentir mais do que apenas o peso do reino sobre os ombros. Era como se ele estivesse me vendo não apenas como o rei, mas como alguém por quem valia a pena lutar — e amar.

Certa noite, após mais uma reunião interminável com os conselheiros sobre os tratados de fronteira, me encontrei sozinho com ele, sob o céu estrelado. Estávamos sentados lado a lado nos degraus de uma varanda, o silêncio confortável entre nós, quebrado apenas pelo suave farfalhar das árvores ao vento. Eu estava exausto, e ele sabia disso.

— Você carrega tanta coisa agora — ele disse baixinho, virando-se para mim. — E eu... bem, eu só queria ter certeza de que você ainda se lembra de que não está sozinho nisso.

Seus dedos roçaram suavemente os meus, e o simples toque me fez estremecer. Era um gesto tão pequeno, mas cheio de significado. Ele não precisava dizer mais nada, mas suas palavras carregavam uma profundidade que eu sempre sentia quando ele estava por perto.

— Como eu poderia esquecer? — respondi, virando-me para ele, nossos rostos próximos o suficiente para que eu pudesse ver o brilho suave em seus olhos. — Você está sempre aqui, Madara. Mesmo quando eu estou perdido nas responsabilidades, você me lembra de quem eu realmente sou.

Madara sorriu, um sorriso que sempre conseguia me desarmar. Era o tipo de sorriso que transformava qualquer momento simples em algo especial, algo íntimo. Ele se inclinou lentamente, e eu soube o que viria a seguir. Mas, diferente das outras vezes, havia algo mais nesse gesto — uma intensidade nova, um desejo de mostrar que, para ele, eu era muito mais do que um rei.

Nossos lábios se encontraram, e o beijo foi suave no começo, mas rapidamente se tornou mais profundo, mais urgente. Eu sentia o calor de sua proximidade, e por um breve momento, todo o peso do reino desapareceu. Só existia ele, e o que compartilhávamos naquele instante. Cada beijo que trocávamos parecia fortalecer o que já era inevitável entre nós, algo que havia crescido com o tempo, mesmo antes de eu subir ao trono.

Quando nos separamos, ainda ofegantes, Madara passou os dedos pelos meus cabelos, seus olhos fixos nos meus.

— Não importa quantas vezes o mundo te chame de rei, Theo — ele disse suavemente. — Para mim, você sempre será mais do que isso. Sempre será você.

Eu sorri, sentindo meu coração bater mais rápido, mas de um jeito que trazia uma sensação de conforto e pertencimento. Madara não precisava de títulos ou poder. Ele me amava pelo que eu era, não pelo que eu tinha me tornado. E isso fazia toda a diferença.

A química entre nós era inegável, e eu sabia que, independentemente do que o futuro trouxesse, Madara estaria ali ao meu lado, não apenas como um aliado, mas como alguém que me compreendia em um nível profundo e pessoal. Eu era o rei de Scrapbooks, sim, mas com ele, eu era apenas Theo — e isso era mais do que o suficiente.

A noite estava quente e silenciosa, exceto pelo farfalhar leve das folhas das árvores e o som suave dos passos de Madara enquanto se afastava, me dando o espaço que eu precisava para a conversa que estava por vir. Manu estava à minha frente, seus olhos fixos em mim, mas havia algo de diferente neles. Um misto de expectativa e dor. Eu podia sentir a tensão entre nós, a distância que se alargara desde que me tornei rei.

Manu é minha amiga mais próxima, alguém que me conhecia de verdade. Mas agora, com tudo que aconteceu, eu sabia que ela tinha perguntas, dúvidas que precisavam ser esclarecidas. E eu devia isso a ela.

— Então, finalmente decidiu voltar para nos ver? — ela começou, sua voz calma, mas carregada de uma leve ironia. — Achei que tinha nos esquecido.

Eu sorri, um sorriso cansado. Sabia que, por trás de suas palavras, havia um coração ferido. Ela não estava realmente com raiva — estava machucada.

— Não poderia esquecer vocês, Manu — respondi, dando um passo em sua direção. — Nunca.

Ela cruzou os braços e suspirou, olhando para o chão por um momento antes de erguer o olhar novamente, seus olhos brilhando à luz suave das estrelas.

— Sabe, eu entendo que as coisas mudaram, Theo. Entendo que você tem novas responsabilidades, e que... se tornou rei. — Ela parou por um segundo, como se a palavra "rei" fosse difícil de pronunciar. — Mas não dá para simplesmente desaparecer sem explicações. Eu fiquei preocupada, Raimoy ficou preocupado. Achamos que você tinha ido embora para sempre.

A sinceridade em sua voz atingiu algo profundo em mim. Ela estava certa. Desde que assumi o trono, tudo havia mudado tão rápido que não tive tempo de dar as explicações que eles mereciam. E isso não era justo.

— Eu sei, Manu. — Minha voz saiu suave, quase um sussurro. — Eu sei que desapareci sem dizer nada. E sinto muito por isso. As coisas... elas simplesmente aconteceram rápido demais. Eu fui puxado para esse novo mundo, para essa nova responsabilidade, e acabei deixando vocês para trás sem querer. Mas nunca foi minha intenção.

Ela me olhou com um misto de compreensão e tristeza.

— Você sempre foi alguém especial, Theo. Desde que éramos crianças, sabia que você era diferente. Mas acho que nunca imaginei que isso significaria perder você para esse... reino distante. — Ela deu um meio sorriso, mas havia algo melancólico em seus olhos. — Eu só quero entender. Por que você não pode simplesmente voltar para casa? Por que não podemos voltar a ser como antes?

Suspirei, sabendo que essa seria a parte mais difícil. Eu queria que fosse simples, queria poder dizer que tudo voltaria ao normal. Mas não era assim.

— As coisas nunca mais serão como antes, Manu — comecei, a verdade pesando em cada palavra. — Quando me tornei rei de Scrapbooks, assumi responsabilidades que vão além do que eu poderia imaginar. Não é só sobre governar; é sobre manter o equilíbrio entre os territórios, proteger as pessoas e... tomar decisões difíceis. E isso significa que, muitas vezes, não posso simplesmente voltar para casa e fingir que nada mudou.

Ela ficou em silêncio por um momento, absorvendo minhas palavras, e eu podia ver o conflito em seus olhos. Parte dela entendia, mas outra parte ainda lutava contra essa nova realidade.

— Mas e nós? — Manu finalmente perguntou, sua voz suave, mas cheia de emoção. — O que acontece com a nossa amizade? Vai desaparecer junto com a sua antiga vida?

Eu me aproximei, colocando uma mão suavemente em seu ombro.

— Nunca. — Falei com firmeza, olhando em seus olhos. — Nossa amizade é uma das coisas que me mantém firme, Manu. Não importa o quanto as coisas mudem, você sempre será parte de quem eu sou. Eu posso não voltar para casa com frequência, mas isso não significa que vou te esquecer. Ou Raimoy. Vocês são parte da minha história, parte de mim.

Manu respirou fundo, e por um momento, parecia que ela ia chorar. Mas, em vez disso, ela apenas assentiu lentamente.

— Eu só quero ter certeza de que não vamos nos perder nesse caminho, Theo — disse ela, sua voz suave, mas sincera. — Que você não vai nos esquecer completamente, mesmo sendo um rei agora.

Eu a puxei para um abraço, sentindo o peso da conversa se dissipar um pouco enquanto ela se permitia relaxar em meus braços.

— Eu nunca vou esquecer, Manu. E sempre que eu puder, eu voltarei para vocês. Prometo.

Ela se afastou levemente, um sorriso pequeno e genuíno em seus lábios.

— Espero que cumpra essa promessa, ou eu mesma irei atrás de você e farei com que se lembre. — Ela riu, e eu sorri de volta, sentindo que, apesar de tudo, nossa amizade havia resistido ao teste do tempo e das mudanças.

Era um novo começo, não apenas para mim como rei, mas para nós. Sabíamos que o caminho à frente seria diferente, cheio de desafios, mas o laço que compartilhávamos continuava intacto, e isso era o mais importante.

— Acho que eu não teria como esquecer com você sempre me lembrando — brinquei, e juntos, compartilhamos aquele momento de leveza sob o céu estrelado, sabendo que, apesar das mudanças, ainda tínhamos uns aos outros.

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Gostaram?

Até a próxima 😘

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