Capítulo Catorze
Theodoro Vinro:
Mergulhado na escuridão da inconsciência, fui assaltado por sonhos estranhos e inquietantes. Vi-me em meio a um cenário etéreo, onde animais espirituais se reuniam em frente a imponentes salões de tronos. Suas presenças eram majestosas e, ao mesmo tempo, perturbadoras, como se algo sinistro estivesse se desdobrando sob a superfície. Os regentes nos tronos murmuravam para os nobres ao seu redor, cujas expressões variavam entre a ansiedade e a preocupação. Era como se todos ali aguardassem por um evento iminente, algo que poderia alterar o equilíbrio do mundo espiritual.
No entanto, foi na terceira sala do trono que as coisas ficaram ainda mais estranhas. Ao contrário dos outros salões, não havia um monarca sentado no trono. Em vez disso, apenas uma figura solitária estava presente, alguém que parecia ser o conselheiro do rei. Algo em sua presença me causava desconforto. Seus olhos estavam loucos, selvagens, como se ele estivesse à beira da insanidade. O olhar penetrante do conselheiro atravessava a sala como se pudesse ver através das almas de todos ali presentes.
Havia algo estranhamente familiar nele. Mesmo em meio à distorção do sonho, uma suspeita sombria tomou forma em minha mente. Ele tinha uma semelhança inegável com Mandara — os traços, o porte, tudo indicava que ele poderia ser seu irmão. Essa revelação me deixou ainda mais perturbado, levantando questões que minha mente adormecida não conseguia responder.
Antes que eu pudesse entender completamente o que estava acontecendo, o cenário ao meu redor começou a mudar. As paredes do salão de tronos se dissolveram, e fui transportado para outro lugar, um espaço indefinido e carregado de uma energia maligna. Sentia a presença de espíritos ao meu redor, suas intenções claramente hostis. Eles avançavam sobre mim, seus rostos distorcidos pela fome e pela raiva, querendo arrancar pedaços da minha alma com suas garras invisíveis.
Eu tentava lutar, resistir ao impulso de ceder àquele pesadelo, mas a sensação de ser caçado, de estar à mercê dessas entidades, era avassaladora. Eles se aproximavam cada vez mais, suas vozes sussurrando ameaças e maldições, como se quisessem me despedaçar e devorar a essência do que eu era.
O desespero crescia dentro de mim, e a única coisa que eu conseguia fazer era tentar afastá-los, tentando proteger o que restava da minha sanidade e da minha alma. Mas, à medida que os espíritos se fechavam ao meu redor, senti como se estivesse perdendo essa batalha, sendo consumido lentamente por uma força que não conseguia compreender ou combater.
Tudo ao meu redor era um turbilhão de caos e medo, e minha única esperança era despertar desse pesadelo... antes que fosse tarde demais.
Devo ter acordado várias vezes, mas tudo ao meu redor parecia fragmentado, distorcido, como se minha mente estivesse tentando reconstruir os pedaços do que era real e do que era apenas um resquício de sonho. Lembro-me de estar deitado em uma cama, sentindo o conforto de um colchão macio, embora minha mente estivesse confusa e nebulosa. Havia alguém ao meu lado, alimentando-me com colheradas de algo que tinha um gosto doce, quase reconfortante, que parecia acalmar o turbilhão de pensamentos e emoções que se agitavam dentro de mim.
Por entre essas vagas sensações, a imagem de Fred emergia com clareza. Ele estava cuidando de mim com uma ternura inesperada, enquanto explicava algo a Simon, que parecia nervoso, andando de um lado para o outro. As palavras deles, embora inicialmente confusas, começaram a se encaixar, formando um cenário que eu lutava para compreender.
— Está dizendo que sabia disso tudo? — a voz de Simon estava carregada de frustração e incredulidade.
— Sim, eu sabia o que iria acontecer — respondeu Fred com um peso na voz que transparecia a seriedade da situação. — Quando estive no mundo humano, antes de o templo me puxar de volta, já tinha uma noção do que estava por vir. — Foi então que percebi algo estranho: na cabeça de Fred, enormes orelhas de lobo se destacavam, um detalhe surreal que parecia ao mesmo tempo natural e perturbador.
Fred continuou, seus olhos agora fixos em mim, como se pudesse sentir que eu estava começando a captar o que ele dizia.
— Quando Theo colocou um pouco de seu poder espiritual no altar, isso me despertou de uma forma mais completa. Agora, posso restaurar o templo e ativar o oráculo novamente, para mostrar a ele o que precisa saber neste momento.
Simon estalou a língua, visivelmente descontente com o rumo da conversa.
— Ele não vai querer saber disso quando acordar. Vai querer ir atrás do espírito daquele gato — Simon disse, a preocupação evidente em sua voz.
— Ele não poderá ir atrás de Madara — Fred respondeu com alarme, sua postura ficando ainda mais rígida. — Pelo menos, não até que eu o treine adequadamente com sua magia e o livro. — Fred soltou um suspiro pesado, como se carregasse o peso do mundo sobre os ombros, e Simon, finalmente, ficou em silêncio, percebendo a gravidade da situação.
Os dois continuaram a conversar em tons mais baixos, as palavras começando a se misturar e a perder sentido enquanto minha consciência, já frágil, começava a se esvair novamente. Tentei me agarrar a algum fio de lucidez, mas a exaustão física e mental era esmagadora. E assim, mais uma vez, mergulhei na escuridão, com as vozes de Fred e Simon ecoando ao longe, como um sussurro distante de um mundo que eu não podia alcançar.
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Quando finalmente voltei a mim de vez, tudo ao meu redor parecia incrivelmente normal, exceto pelo fato de que o lugar era mais agradável do que qualquer outro em que eu já estive. Estava deitado em uma cama macia, que brilhava suavemente com partículas de energia espiritual flutuando no ar ao redor. Havia uma manta aconchegante sobre minhas pernas e um travesseiro macio apoiando minha cabeça. O ambiente era reconfortante, quase como se estivesse em um sonho bom, mas havia algo de errado comigo.
Minha boca tinha uma sensação estranha, como se estivesse dormente. Minha língua estava seca e pegajosa, e todos os meus dentes doíam, como se eu tivesse apertado a mandíbula durante o sono. Quando olhei para a mesa ao lado da cama, vi um copo alto, cheio de uma bebida que parecia prometer algum alívio. Minha mão, ainda fraca e trêmula, estendeu-se lentamente para pegar o copo, mas ao envolver os dedos ao redor dele, algo inesperado aconteceu.
O copo começou a brilhar com uma intensa energia espiritual, como se estivesse respondendo ao meu toque. De repente, ouvi um estalo e percebi que o vidro começava a rachar, pequenas fissuras serpenteando pela sua superfície. Surpreso, soltei o copo e recuei com tudo, meu coração disparado de susto.
— Tenha calma, Vossa Majestade — ouvi uma voz atrás de mim, suave e firme ao mesmo tempo. Me virei rapidamente na direção do som, e ali estava Fred, ainda com as orelhas de lobo que havia visto em meus sonhos.
O copo, que estava caindo, parou no ar como se uma força invisível o segurasse, e lentamente voltou ao seu lugar anterior na mesa, as rachaduras se fechando como se nunca tivessem existido. O brilho espiritual ao redor do copo se dissipou, e ele ficou parado ali, tranquilo, como se nada tivesse acontecido.
Fred sorriu para mim, uma expressão de calma e controle que contrastava com o alarme que eu sentia.
— Está tudo bem, alteza. Você ainda está se recuperando, e sua energia espiritual está um pouco fora de controle. Por isso, as coisas podem reagir de forma estranha ao seu toque — ele explicou, sua voz tranquilizadora.
Eu olhei para minha mão, ainda trêmula, e depois para Fred, sentindo uma mistura de confusão e gratidão.
— O que aconteceu comigo? Por que... por que eu estou assim? — perguntei, minha voz saindo rouca e fraca.
Fred se aproximou, sentando-se ao lado da cama.
— Você passou por muita coisa, Alteza. Sua energia espiritual foi usada de maneiras que você ainda não compreende completamente, e isso te deixou um pouco desequilibrado. Mas não se preocupe, você está em um lugar seguro agora. Vamos trabalhar juntos para restaurar o seu controle e fortalecer seu poder. Mas, por enquanto, você precisa descansar e se recuperar.
Suas palavras, embora reconfortantes, deixaram claro que ainda havia muito que eu não sabia, e que as respostas que eu buscava talvez fossem mais difíceis de encontrar do que eu imaginava. Mas ali, sob os cuidados de Fred, com suas orelhas de lobo que pareciam estranhamente naturais, senti que, pelo menos por um momento, estava seguro. E isso era tudo o que eu precisava
— Por quanto tempo eu fiquei desacordado? — perguntei, ainda tentando processar tudo o que havia acontecido.
— Você ficou desacordado por dois dias — respondeu Fred, com uma expressão séria. — Do que se lembra?
Minha mente ainda estava nebulosa, mas as memórias começaram a surgir, uma a uma, como fragmentos de um quebra-cabeça que eu tentava montar.
— Lembro-me de correr com Mandara e Simon em direção a este templo... depois, o lobo nos atacou, e você apareceu quando eu passei um pouco da minha energia espiritual para o altar — falei, tentando levantar-me, embora meu corpo protestasse. — Mandara está bem? Onde ele está? Onde está Simon?
Fred mordeu o lábio, hesitando por um momento antes de responder.
— Mandara foi levado pelos outros capangas dos Wolfdraks para o reino deles — ele finalmente disse, e minhas mãos começaram a tremer de ansiedade. Fred colocou uma mão firme em meu ombro, tentando me acalmar.
— Tentei ver o que poderia fazer, mas não consigo me aproximar do reino de Scrapbooks. A barreira ao redor daquele lugar é forte demais para que eu a atravesse — Fred continuou, e meu coração gelou com a notícia. — Pedi a um dos meus conhecidos para acompanhar Simon e avaliar melhor a situação enquanto você estava desacordado.
A urgência tomou conta de mim.
— Temos que ir atrás deles — insisti, tentando afastar a fraqueza e o medo que me dominavam.
Fred me olhou com uma expressão mista de pena e preocupação.
— E o que você vai fazer, Theo? — perguntou lentamente, como se quisesse que eu compreendesse a gravidade da situação. — Você ainda é um mortal sem magia que não liberou seu verdadeiro poder ou se lembrou do que deveria saber. Me diga, Vossa Majestade, o que você pode fazer agora?
Suas palavras cortaram fundo, e a realidade da minha situação caiu sobre mim como uma avalanche. Eu queria desesperadamente ajudar Mandara e Simon, mas Fred tinha razão. Eu estava fraco, confuso, sem o controle necessário sobre minhas habilidades, e o que quer que estivesse acontecendo no reino dos Wolfdraks estava além do meu alcance no estado em que me encontrava.
Fred, percebendo minha frustração, apertou suavemente meu ombro.
— Eu entendo o que você está sentindo, Theo. Acredite, eu também quero salvar Mandara e Simon. Mas, para isso, precisamos nos preparar. Você precisa estar forte, com controle sobre sua magia e suas capacidades espirituais. Sem isso, ir atrás deles agora seria um suicídio, e você sabe disso.
A raiva e o desespero dentro de mim se chocavam, mas as palavras de Fred eram verdadeiras. Respirei fundo, tentando acalmar o turbilhão de emoções.
— Então, o que eu preciso fazer? — perguntei, tentando focar na solução e não no problema.
Fred sorriu, dessa vez um sorriso encorajador.
— Primeiro, vamos trabalhar para que você recupere completamente sua energia e controle. Vou te ajudar a liberar seu poder mágico, e depois, começaremos seu treinamento. Quando estiver pronto, não só iremos atrás de Mandara e Simon, mas também enfrentaremos qualquer desafio que o reino dos Wolfdraks colocar em nosso caminho.
Eu assenti, decidido. Sabia que o tempo estava contra nós, mas também sabia que não havia outra escolha. Precisava estar preparado, não só por mim, mas por Mandara, Simon e todos aqueles que dependiam de nós. Fred estava certo: a batalha ainda estava apenas começando, e eu teria que estar à altura dela.
— Você é um espírito de lobo — falei, minha voz carregada de uma mistura de surpresa e curiosidade enquanto tentava juntar as peças desse quebra-cabeça.
Fred sorriu suavemente, seus olhos brilhando com uma ternura que me surpreendeu. — Sim, sou um espírito de lobo — ele confirmou, com um tom de voz que parecia tanto uma revelação quanto um conforto. — Mas, além disso, eu era o familiar da sua avó.
Essa revelação me atingiu como um golpe suave, mas profundo. Fred, sempre tão presente, mas envolto em mistério, agora se revelava como uma conexão direta com meu passado e minha linhagem. Enquanto eu processava essa nova informação, ele se aproximou e gentilmente arrumou o travesseiro atrás de mim, como se quisesse me proporcionar todo o conforto possível para o que estava por vir.
— Por que não me disse nada antes? — perguntei, a dúvida e a leve mágoa permeando minha voz. Era difícil entender por que essa verdade havia sido escondida de mim por tanto tempo.
Fred suspirou, seu olhar se suavizando ainda mais. — Porque não era o momento certo, Theo — respondeu ele, sua voz doce e cheia de compreensão. — Há coisas que só podem ser compreendidas no tempo certo, quando você está preparado para recebê-las. Saber quem eu era antes de você estar pronto poderia ter confundido ou até prejudicado seu desenvolvimento. Agora, com tudo o que aconteceu, chegou a hora de você entender a extensão de quem você é e do que somos juntos.
Suas palavras faziam sentido, mas também levantavam novas questões. Eu queria saber mais, entender mais, mas Fred parecia saber exatamente o que eu precisava ouvir e o que ainda precisava ser guardado para um momento futuro.
— Então... o que vem agora? — perguntei, tentando aceitar essa nova parte da minha realidade.
— Agora, começamos a sua verdadeira jornada, Theo — Fred respondeu, sua voz assumindo um tom de determinação. — Vou te ensinar tudo o que você precisa saber, sobre sua magia, sobre os espíritos, e sobre o legado que sua avó te deixou. E, quando estiver pronto, você será capaz de enfrentar qualquer desafio que vier pela frente, inclusive resgatar Mandara e Simon.
Eu podia sentir o peso e a importância das palavras de Fred, mas ao mesmo tempo, havia uma sensação de propósito crescendo dentro de mim. Pela primeira vez em muito tempo, eu sabia que estava no caminho certo, mesmo que esse caminho fosse árduo e cheio de perigos. E, com Fred ao meu lado, sabia que não estaria sozinho nessa jornada.
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Gostaram?
Até a próxima 😘
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