Tóxico

— Aham... Entendi... Protocolado, né?... Para o juiz decidir... Sim. É claro — Lara suspirou, conversando com nosso advogado pelo telefone. Parecia um suspiro de... alívio?

Todos nós estávamos reunidos a sua volta, a ansiedade fechando o círculo. Lara foi a escolhida para ligar ao advogado com a notícia da visita rápida que recebemos. Lhe enviara uma foto do documento e o consultava sobre sua validade. Contorci as mãos embaixo do queixo, aflita.

— Sim... — Agora ela estava sorrindo. Olhou para mim de olhos arregalados, o semblante em êxtase — Uau, sim! Claro, vamos marcar... Até! Obrigada! — Desligou. Deu um pulo, voltando-se completamente em minha direção — É verdade, o advogado colocou no processo hoje! Só falta o juiz dar o ok e já estamos liberados!

Parecia o final da copa de 2002. A alegria recaiu sobre nós feito chuva torrencial e expressamos o sentimento em movimentos efusivos do corpo. Pés empurrando o chão, mãos acima da cabeça, abraços e manifestações verbais desordenadas. November internacional!!!

— Eu estou aqui para ver a publicação! — Danilo comemorou com uma dancinha aleatória — Nossa saída agora assumiu novo significado!

— Dr. Russel disse para agendarmos com Fani e Josh a fim de passar os esclarecimentos gerais. Talvez depois da decisão do juiz. Precisamos acertar com Fani — Lara esclareceu, ofegante, a mão no peito.

— Finalmente o homem adquiriu um pouco de noção! Liguem para a Stefani, precisamos comemorar junto com ela! — Meu pai exultou, gesticulando com as mãos. Imprimiu certo desprezo na palavra "homem", certamente pelo sujeito em questão e não ao gênero.

Dentro de mim, reconheci o incômodo e ímpeto de defender "o homem". Talvez por costume de sempre ter esse tipo de discussão com meu pai. Ou porque, apesar de toda a situação, eu ainda me importava com ele. Explorando esse sentimento, identifiquei a brechinha para a sútil infelicidade poluindo aquele momento de comemoração. Concluí que precisávamos conversar direito. As coisas não podiam terminar tão mal resolvidas assim. Havíamos criado vínculo mais profundo do que duas partes opostas de um processo.

É claro que ele havia sido um babaca e eu não queria voltar a lamber o chão onde passava, mas...

— Ju —meu pai estalou os dedos em frente aos meus olhos — Ligue para a Stefani, sim?

Todos eles olhavam para mim num misto de curiosidade e confusão à minha expressão. Eu não fazia ideia de qual era.

— Deixa que eu ligo — Lara sugeriu, já discando em seu celular.

— Onde você gostaria de ir, filha? — Minha mãe tocou meu braço, como se precisasse mais do que a manifestação verbal para me chamar atenção. Provavelmente estava certa.

Apontei com o queixo para Danilo.

— Passo o bastão para o Danilo. Vamos no Gaslamp e ele decide.

Ele colocou a mão em meu ombro.

— Será uma honra, querida amiga, mas aceito sugestões.

Justin era meu guia turístico, ele conhecia os melhores lugares. Desde que assumira tal função, não me preocupei mais com isso. O pensamento me deu mais uma pontadinha de tristeza.

Ao mesmo tempo, logo me repreendi: Júlia! Trate de viver este momento épico direito com a sua família!

Parecia que ainda não me caíra a ficha: Eu publicaria meu livro!

Finalmente teria meu livro publicado no mercado internacional!

Meu sonho profissional realizado!

Respirei fundo, endireitando os ombros e realocando minhas prioridades. Desci uma cortina na parte inconveniente do meu cérebro. Poderia lidar com isso depois. Merecíamos aquele momento de puro contentamento. As faísquinhas de felicidade ajudaram: EU PUBLICARIA MEU LIVRO!!! Nada mais me deteria!

Poderia até chorar! E quando o juiz confirmasse o fato, não tinha dúvidas de que o faria. Assim poderia me afogar de alegria.

— Não sei, mas podemos pesquisar juntos.

Danilo me abriu seu sorriso largo, reconhecendo a estabilização do meu humor.

— É disso que estou falando!

Nos dedicamos ao trabalho importante de pesquisadores. Sites com matérias tituladas "O que fazer em San Diego?"; a cada estabelecimento encontrado, uma nova expectativa. Entretanto, em dez minutos todos estavam prontos e Danilo e eu não havíamos decidido nada.

— Muitas opções, eu voto para andarmos na rua e escolhermos a dedo — opinou.

— Concordo.

Assim, nos dirigimos à Gaslamp com o destino certo apenas para a diversão. As ruas estavam cheias, ainda mais do que no último dia em que a frequentamos. As luzes iluminavam todas as lojas e cada sorriso. A atmosfera geral era de felicidade, como ocorre em ambientes destinados ao lazer, nos elevando a outro patamar.

Andamos pela calçada esquadrinhando os restaurantes disponíveis, olhos cobiçosos e barrigas vazias.

— Você vai ficar com muita vergonha de mim se eu esbarrar em alguém de propósito para pedir "sorry"? — perguntou ele repentinamente.

Coloquei a mão na boca para rir e dei de ombros.

— Fica a seu próprio critério.

— Tem que ser alguma mulher atraente para mim, vai que ela olha em meus olhos, pede meu número, nos casamos e eu ganho o green card — piscou.

— Tenho dito, o próximo a publicar uma fanfic será você — estalei a língua, contendo a risada.

Ele riu.

— Não duvide do meu potencial. Ali! Aquela. Gostou? — Apontou com o queixo e os olhos para a loura, estatura média, olhos azuis, nariz reto e ligeiramente mais longo do que o comum, lábios finos e pouco preenchidos e o cabelo liso um pouco preso. Andava como se fosse a passarela com sua bota de cano alto, jeans e camiseta.

Torci a boca.

— Padrão demais. Seja mais criativo.

— Hm... e ali?

Olhei para a direção apontada: cabelos ondulados castanho claros, pele bronzeada, lábios cheios e bochechas rosadas. Andava mais retraída e distraída no celular, utilizando uma camisa social lisa dentro da calça skinny rosinha. Aprovada a primeira vista, mas seria adequada além da aparência? Tentei interpretá-la e... Já era, ela passou ao nosso lado.

— Juli, seja rápida ou escolherei uma aleatória — ele se queixou, claramente também se interessara pelo físico da minha recente análise.

Suspirei e busquei entre os rostos da multidão. Duas amigas, a que me chamou atenção tinha os olhos puxados e escuros, cabelo cacheado nos ombros quase preto com mechas vermelhas, rosto redondo, nariz cheio nas pontas e... Ela estava chegando! Sem tempo de pensar mais, dei-lhe um empurrão com o lado do corpo. Ele cambaleou e esbarrou nela. Cirúrgica na pontaria!

— Desculpa! — Ele pediu em português, no automático, então piscou e viu a cara de incompreensão da cidadã — Quer dizer, sorry! — Riu de nervoso.

Tive certeza de que o sorriso dela foi reflexo do dele, mas a dita cuja apenas acenou.

— Está tudo bem — respondeu, simpática. Fiz minha análise pelos milésimos que tive visão do semblante dela. Sim, o interesse definitivamente arqueara suas sobrancelhas e brilhara seus olhos. Depois seguiu seu caminho, inclinando a cabeça para a amiga a fim de comentar alguma coisa em distinta empolgação.

— Mulher, você me cagou a oportunidade! — Danilo me acusou, o rosto corado de vergonha.

Eu ri e neguei, chacoalhando-o.

— Ela ficou interessada, se quiser correr atrás agora é o momento!

— Ela ficou interessada em rir da minha performance desastrosa e burra — retrucou, dividido entre a irritação e graça.

— A Júlia é talentosa em fazer os outros passarem vergonha — Lara colaborou, interrompendo o silêncio que mantivera até o momento por estar entretida demais com seu celular.

Mostrei a língua pra ela.

— Bem, de qualquer forma, já pedi sorry, estou satisfeito. Vou fazer minha fanfic depois.

— Uma meta de vida cumprida, meu amigo — dei dois tapinhas de congratulações em sua mão — De nada.

— Minha vida não seria nada sem você, Juli — abraçou-me de lado, sempre espontâneo e genuíno em suas manifestações de afeto — coisa que eu não sabia fazer e sempre ficava sem graça ao receber.

Descemos toda a rua. Não que não gostássemos de nada do que víamos, talvez apenas movidos à curiosidade de ver todos os estabelecimentos. O clima estava praticamente agradável, um vento fraco soprava em nossos cabelos e resfriava o nariz, não a ponto de ser insuportável. Nenhum de nós reclamou de ter que subir a rua de novo, até Danilo empacar e apontar para o restaurante com a fachada preta com os escritos em maiúscula "El Cabrón".

O totem de papelão na entrada mostrava um homem baixo com espingarda nas costas, de chapéu e bigode grande. Havia alguns bancos altos do lado de fora em frente a um balcão preto improvisado simulando a bancada de um bar com visão para a rua. A metade de cima das paredes era formada de espelhos, dando uma prévia do que havia ali dentro. Nada muito sofisticado, e observando o que os fregueses comiam, o foco principal do estabelecimento eram Tacos.

— O que acham de nos aventurarmos na culinária mexicana? — Arqueou as sobrancelhas para mim duas vezes, sugestivo.

— Já que a Júlia não tem tempo de ir à Old Town comigo, essa pode ser a única oportunidade que teremos de apreciar a culinária mexicana outra vez... — dramatizou Lara — O quê? — Riu de minha expressão sem pudor algum. Ela estava brincando, sabia que no final de semana passado eu não tivera muitas condições de fazer coisa alguma. Talvez nesse desse certo.

— Tirando essa argumentação mequetrefe, eu topo.

Danilo riu de nossas provocações e passou o braço sobre meus ombros.

— Eu amo as expressões brasileiras, não acho possível que a língua inglesa seja tão criativa assim. Por essas razões eu até que gosto de ser brasileiro, sabe? — Refletiu, o cenho e o queixo franzidos como se desvendasse um mistério histórico, o olhar no além.

Rindo, concordei.

— Sim, mas por ser ano de eleição presidencial seria o paraíso permanecer aqui mesmo — fiz uma careta, pensando na guerra civil que me esperava ao retornar.

— Bom, vocês podem ficar conversando aqui fora mesmo, nós dois vamos entrando — meu pai piscou, exibindo-se ao desfilar na nossa frente para a porta do estabelecimento.

Justo, as anacondas estomacais a esta altura já corroíam a parede do nosso estômago. Os seguimos enquanto Danilo relatava as discussões que tomavam conta de sua casa. Seu pai, Roberto, extremamente conservador, discutia abertamente com sua irmã, Marina, mais liberal, todos os dias. Cabeças duras demais para abrir mão de qualquer ponto, os dois sempre batiam na mesma tecla, tornando a conversa nada produtiva para ambos os lados. Se nenhum deles se escutavam e não aceitavam a ideia contrária, qual era a razão de discutir? Danilo argumentara. Ele mesmo escolhia o silêncio ao perceber que jogava pérola aos porcos. Eu, por outro lado, entendia a necessidade de permanecer na teimosia de ter a última palavra. Desnecessário, mas instintivo.

O espaço não era muito amplo, então nos sentamos logo ali no começo, perto da janela de vidro para olhar as luzes da rua. Danilo se sentou à minha frente e, cruzando as mãos na mesa, se inclinou em minha direção tagarelando cinco assuntos de uma vez só, aquele brilho no olhar de quando se sentia à vontade e empolgado. Ele me fazia perguntas que logo eram respondidas por ele mesmo, engatando em mais uma questão trivial. Outra razão pela qual adorava conversar com ele, era tanta informação ao mesmo tempo que mal tinha tempo para escutar as eventuais vozes deprimentes da minha cabeça. E quando parava verdadeiramente para me ouvir, me dedicava igual atenção, os olhos fixos nos meus apreendendo cada palavra pronunciada.

— E você, Lara? A Júlia me disse que sua viagem dos sonhos é ir para o México? — Virou-se para minha irmã, incluindo-a no meio social. Mais uma de suas características, ele funcionava como um articulador, não deixava ninguém ficar de fora.

Olhávamos os cardápios em meio a enumeração de Lara de razões para ir ao México — como principal argumento, ela adorava a sonoridade da língua, o sotaque lhe parecia "muito fofo" — quando Fani chegou. Grudou-me em um abraço comemorativo. Meus ombros ficaram encolhidos entre seus braços esmagadores, deixando os meus próprios inertes ao lado do corpo.

— Garota! O que você fez? Como conseguiu? Foi nossa conversa? Ele nem quis o dinheiro algum? — Atropelou as palavras, acenando ao mesmo tempo para todos na mesa enquanto distribuía rápidos cumprimentos que deixavam clara sua necessidade primordial de falar comigo.

Eu ri da afobação, sentindo aquela felicidade surreal.

— Acho que deve ter sido resultado da reunião. Ele não explicou muito, pediu desculpa e foi embora. Não quis nenhum dinheiro — conforme fui explicando, o singelo aperto no peito encontrou a oportunidade inconveniente de me incomodar outra vez, espremendo-se entre toda minha explosão de cor.

Seus olhos se aguçaram neste ponto, aparentemente identificando meu semblante carente de alegria integral. Eu estaria melhor assim que tivesse completa certeza judicial de que poderia publicar. Então não deixaria mais nada interferir no meu momento.

— Mais do que lógico ele não querer nenhum dinheiro. Já é podre de rico — retrucou.

— Mas você sabe como é, quanto mais dinheiro se tem, mais eles querem ter. Por isso sigo acreditando na teoria do milagre — Danilo contribuiu à conversa.

Dei um meio sorriso. Seria mesmo mais viável acreditar que ocorrera uma benção divina do que sua opinião por mim ter interferido no resultado. Quer dizer, tínhamos nos envolvido de forma física um pouco íntima, mas pra ele isso devia ser comum. Estava tão acostumado a beijar tantas pessoas que essa devia ser sua forma natural de tratar o sexo feminino.

A linha de pensamentos somou ao incômodo idiota e Fani apertou minha mão, me trazendo de volta.

— Bom, ao cavalo dado não se olham os dentes, vamos comemorar sim! Depois que sairmos daqui podemos ir à casa de shows ali da próxima esquina, eles têm programações diárias incríveis!

Danilo se interessou por essa nuance do assunto e fez com que ela falasse tudo o que sabia da região por um tempo considerável. Fani também era uma boa guia.

No momento em que nossos tacos acabavam de ser colocados à nossa frente — monstruosamente maiores do que eu esperava — Lara ofegou. Os olhos esbugalhados perplexos na tela de seu aparelho fizeram meu coração dar um salto de susto.

— O que foi, mulher? — Perguntei, ansiosa.

Depois de tudo o que vivera nos Estados Unidos eu ficaria traumatizada com novidades, disso tinha certeza. Os mais velhos se ocupavam de algum outro assunto, então só Danilo também voltou a atenção para ela.

— Hm... Nossa... Enfim, a fama — estudou o que via antes de voltar o aparelho para nós dois.

Apertei os olhos para ler, não havia pensado em trazer meus óculos de leitura. À primeira vista já percebi que era uma matéria de... Ah. "Ex affair de Justin Bieber também segue em frente". O conteúdo havia acabado de ser postado, e as frases decaídas seguiam um teor de "vista na praia com um misterioso rapaz, que uma simples pesquisa revelou ser seu 'amigo íntimo' brasileiro, Danilo Correa, recém-chegado ao país", "juntinhos o tempo inteiro", "um contra-ataque à saída de Bieber e Kendall?", "ele chegou para retomar seu posto?" e finalizando como "seu date preferido deve ser na praia".

Danilo se engasgou com a saliva, seguindo para um acesso de tosse e risos.

— A fama veio! Esse dia só fica melhor! — Levantou as mãos, como se glorificasse.

Apesar da matéria ridícula eu também caí na risada, não podia ignorar o teor cômico da situação.

— "Uma simples pesquisa" que eles poderiam ter feito melhor, não? Certamente descobririam, com o mínimo de esforço, que somos apenas amigos — pontuei, balançando a cabeça.

Dando de ombros, Danilo pegou o celular para analisar nossa foto no mar, aquela "super romântica" segundos antes dele me afogar.

— Ué, e somos só isso? — Fingiu estar ofendido.

Lara paralisou, sem perceber a atuação, apenas os olhos se movendo em alerta entre nós dois. Ela não conhecia completamente a tendência dele de fazer piada de tudo.

— Claro que não, é minha alma gêmea — acrescentei, dando-lhe um tapinha no pulso.

Ele piscou para mim e a sobrancelha de minha irmã se levantou. Fiz um sinal negativo expressivo para ela, "não é desse jeito, mulher, está doida?!", e a dita cuja levantou um ombro indiferente, embora ainda estreitasse os olhos.

— Bem, eu fiquei ótimo nas fotos, Juli, finalmente uma obra de arte valorizada devidamente! Fiz bem em não abandonar a academia. Lara, me mande esse link, por favor? Tenho que enviar para Ísis agora, ela vai gritar — pediu, a expressão travessa assumindo seu sorriso.

Ísis gritou mesmo. E ao telefone. Ela fez uma chamada de vídeo imediatamente para ele e nos disparou perguntas histéricas o tempo inteiro, sem parar de rir. Sabia do absurdo desta ideia. No fim da ligação meu abdômen doía de esforço pela crise de risos que me contagiou. De fato, aquilo dobrou o humor de Danilo — o que eu não achava ser possível.

— Quer dizer, você não se importa que eles pensem que tenhamos alguma coisa romântica, né? — Perguntou no meio de uma piada sobre ser uma estrela internacional desejada, apoiado na teoria de que pessoas comprometidas geralmente atraem mais do que as desimpedidas. Eu já havia lhe dito que essa premissa não trazia pessoas de caráter muito bom, mas ele não se importara.

Revirei os olhos para a pergunta óbvia.

— Claro que não. Não é como se eu tivesse um namorado para dar satisfação ou não quisesse que alguém se desiludisse de estar comigo.

O olhar estranho que ele me lançou refletiu o estalo enigmático em meu cérebro. E se... Bloqueei o pensamento. Não podia dar asas às teorias em minha cabeça que só prejudicariam a mim mesma. Ele aceitou a resposta sem discutir, mas não queria dizer que tinha acreditado.

Passei parte do tempo olhando sobre o ombro e para os lados, desconfiada que alguém estivesse mirando uma câmera em minha direção. O incidente com as meninas do clube do livro ainda estava fresco na memória, e essas fotos só provavam que por alguma razão absurda e ilógica os cliques poderiam se voltar para mim.

Nos primeiros momentos, fiquei engessada quanto a cada gesto que faria, não querendo passar a impressão errada. Contudo, desvencilhei-me da parte superconsciente ao entrar na casa de shows escolhida por Fani, a vibração relaxada e em êxtase do local contagiava. Acrescentando o fato de que a iluminação baixa proporcionava maior sensação de privacidade. Uma banda tocava Highway to hell e Danilo já entrou com as mãos para cima e jogando a cabeça. Olhou-me energético:

— Living easy, livin' free

Season ticket, on a one way ride — cantou, fechou os olhos com força e franziu o nariz, imitando a voz do vocalista.

Conviver com Danilo me fazia acreditar que era possível, em sentido literal, morrer de rir.

Chegamos em casa dez e meia, já satisfeitos do que a cidade podia nos oferecer no dia. Uma olhadela ao meu amigo me confirmava que seu estoque o levaria pelo menos até quatro da manhã ainda, mas não se queixava, igualmente satisfeito em nos acompanhar.

— Ainda temos tempo de ver um filme de terror, Juli. O que acha? — Sugeriu, já se dirigindo à sala.

Para mim sempre era oportuno ver filmes de terror. Algo na adrenalina animava meu espírito.

— De acordo! — Sorri — Só vou tomar um banho primeiro. E sim, Lara, você verá conosco.

Subi as escadas sob suas reclamações e protestos. Lara não gostava de assistir filme de terror. "É idiota ficar com medo de propósito". Ela acabaria descendo só para me agradar, contudo não prestaria a mínima atenção na tela, eu sabia. Me enfiei no guarda-roupa para pegar um pijama qualquer, revirando a pilha de roupas um pouquinho desorganizada. Havia separado em classificações quando chegara, porém, no decorrer do tempo o desleixo foi tomando conta do espaço — como sempre me acontecia.

Peguei antes de pensar — e ver direito — a calça moletom cinza. Uma vez em minha mão, reconheci a peça e parei de respirar, o coração gelado de repente. Foi automático, não tive a menor chance de conter, meus olhos arderam. Expirando devagar, remexi a gaveta mais um pouco e ali estava, a camisa cinza de mangas longas. O cheiro dele ainda estava impregnado, mesmo depois de passar pela máquina de lavar. Fiquei com raiva, a respiração saindo na força do ódio. Ele precisava mesmo ser cheiroso?! E por que raios eu não devolvi a merda da roupa?!

Bati o pé, frustrada. Tive o impulso de jogar as peças pra longe. Mas meus dedos apenas se fecharam com força ao seu redor. Ele havia tomado a cena de novo. Me dera um tempinho de folga e retornara ao foco para me abalar. Eu não devia estar triste. Nem um pouco. Havia conseguido o que queria. Por que ele me afetava desse jeito? Me dava medo de... de... Mordi meus lábios com força. Eu gostava da presença dele, droga, por que ele tinha que estragar tudo?

A pele fina da minha boca estava prestes a se romper e eu a libertei dos meus dentes. A última coisa que precisava agora era sangrar. Já odiava a sensação incompleta e o impulso idiota de consertar. Eu não conseguiria consertar nada. Provavelmente nem era certo querer. Mas eu... Precisava ao menos de um fim digno.

Me encolhi diante da palavra fim e o lado revoltado de minha mente de imediato me retrucou. Fim de que se nem havia começado nada?!

Joguei-me de costas na cama, abraçada às roupas. Olhei desalentada para o teto do quarto, expirando. Limpei o rosto, vergonhosamente molhado, com as costas da mão e respirei fundo. Era exaustivo ser tão contraditória comigo mesma. A batalha interna de neurônios já se encerrava, encaminhando-se para uma conclusão. Talvez eu não devesse manter as roupas tão próximas do meu rosto, certamente poderiam influenciar em meu julgamento. O aroma da colônia masculina pungente entrelaçada ao perfume natural dele, para ser mais exata, o cheiro que tinha a curva de seu pescoço...

Estremeci de agonia com a lembrança e peguei de uma vez meu celular no bolso, havia decidido.

Abri as mensagens e fui diretamente ao seu nome. Cogitei a possibilidade de ter trocado de número ou me bloqueado e isso me fez hesitar alguns segundos, temendo a verdade. Bem... Se ele tivesse me bloqueado poderia tomar aquilo como um sinal de que deveria seguir em frente e abandonar todo esse drama inútil. Pensei.

Esta ideia despertou a onda de sangue gelado em minhas veias.

Expirei devagar. Deveria tentar, depois pensaria no mais adequado a se fazer.

Testei algumas palavras, apagando repetidas vezes nas primeiras letras. Enfadada enviei a última de minhas inspirações:

"Precisamos conversar".

No mesmo segundo a mensagem retornou. Literalmente senti meu coração se rachando em pedacinhos. Então ele havia mesmo me bloqueado ou trocado de número. Mordi o lábio inferior, tentando não chorar enquanto olhava estática para a caixa de mensagens.

Estreitei os olhos para o texto, jurava que o iMessage deixava um ponto de exclamação ao lado da mensagem não entregue e não a devolvesse como se a outra parte tivesse enviado. Seria uma nova atualização? Ou... Qual a possibilidade dele ter me enviado a mesma coisa no exato segundo? E fui além, na verdade, qual era a possibilidade de ter me mandado qualquer mensagem que fosse?

Permaneci olhando para a tela, o coração saltando até minha língua, sem saber o que fazer. Deveria testar com outra mensagem...?

Então vi as reticências no balãozinho que indicavam que ele estava digitando. Acho que minha pressão caiu.

"Hm, então estamos de acordo?"

Pisquei e tinha mais uma.

"Digo, que devemos conversar"

Meus batimentos cardíacos abafavam qualquer outro som pelos meus ouvidos. Segurei o celular com as duas mãos, percebendo que estava ridiculamente trêmula. Xinguei-me baixinho e digitei.

"Finalmente..."

Apaga.

"Não poderia ser..."

Ruim.

"Não teria paz se não..."

Ah, Júlia, que ódio! Pense!

"É o mais civilizado a se fazer".

Dane-se, vai essa mesmo.

Batuquei os dedos no aparelho esperando a resposta. Se houvesse uma. Quer dizer, tínhamos que marcar local, dia e hora, não?

Ele estava digitando. E assim permaneceu por muito tempo para me corroer de ansiedade.

"Posso ser civilizado com você. Sei que deve estar muito ocupada com os preparativos agora, então, às 19 no Mister A's amanhã?"

Recebi o golpe de imediato, ele havia dito que aquele local era propício a encontros no período noturno. Fazia de propósito?

"Eu pago", acrescentou, milésimos depois, como se essa fosse a razão do meu silêncio repentino.

Imaginei como seus olhos e cabelos brilhariam dourados a luz da lua no piso superior do restaurante, como seu corpo ficaria majestoso em contraste com a cidade escurecida atrás das costas e prendi a respiração. Seria facilmente manipulada ali, não deveria aceitar.

Mas que mal ele poderia me fazer ainda?

Antes que fizesse a lista mental lógica, respondi:

"Tudo bem."

Burra. Já começava a me arrepender de ser tão maleável.

"Não precisa ser uma reunião formal. Eu vou sozinho."

Um pedido visível para que eu não fosse acompanhada, o que parte pequena de mim recebeu com desconfiança. Envergonhava-me o fato de pensar desde o início que estaríamos sozinhos. Entretanto, talvez precisássemos mesmo da privacidade para não ficarmos engessados.

"Ok."

A contradição mental me deixou carente de palavras. Um segundo depois temi que houvesse encerrado a conversa.

"Posso te buscar?"

Bloqueei qualquer voz sentimental que pudesse influenciar minha decisão, já estava dando corda demais para ser aceitável.

"Não precisa, nos encontramos lá."

Mordi a parte interna de minhas bochechas, apreensiva diante da ausência de resposta dele. Deveria ter aceitado que me buscasse? Não, não precisava. E não deveria querer. Já havia aceitado sua condição de horário e lugar. Além de concordar em estar lá sozinha. O que mais ele poderia querer?

As reticências voltaram e eu pude respirar.

Segundos depois prendi de novo.

Não tinha fim.

"Tudo bem. Boa noite, então, Lia. Obrigado."

Minhas tripas se reviraram quando li o apelido.

"Desculpa te incomodar." — Ele acrescentou rápido.

Suspirei.

"Te vejo amanhã". — E mais uma.

Eu queria que ele continuasse falando, por mais difícil que fosse admitir. Na verdade, preferia que me ligasse. Que me dissesse o quanto sentia minha falta. Para eu ouvir sua voz. Se eu ouvisse sua voz, choraria outra vez..

Bati em minha testa, me punindo.

Ele derrubou sua publicação, você está com raiva!

"Boa noite, Justin. Até."

Minhas respostas se limitavam por necessidade. Tive medo de dizer demais e pagar papel ridículo de novo. Ou dizer demais e soltar tudo aquilo que meu subconsciente queria lhe dizer.

Abracei suas roupas contra meu peito e lamentei pensar no dever de devolvê-las. Ele tinha bastante dinheiro para comprar quantas roupas quisesse, provavelmente nem lhe faria falta. Mas seria desonesto da minha parte. Comigo mesma e com ele.

A bem da verdade eu podia muito bem abraçar a filosofia da década de abandonar tal valor ao menos dessa vez. Ele mesmo tinha feito isso, não?

Inclinei o queixo e inspirei com mais força, me inebriando com o aroma feito viciada. Choraminguei. Não podia acreditar que o encontraria no dia seguinte. Isso despertava um nervoso quase incapacitante em todo meu corpo desregulado. E o medo de estar sendo fraca, idiota, sem amor próprio.

Eu odiava o estado crítico e perdido que ele me deixava.

Os toques na porta me fizeram ser funcional de novo, saltei e escondi as roupas embaixo do cobertor. Limpei o rosto para esconder qualquer vestígio do meu momento de fraqueza há pouco tempo atrás.

Eu espero muito que você não tenha dormido, Juli. Você sabe que serei obrigado a te acordar se tiver — Danilo disse pelo vão da porta.

Levantei-me depressa para o caso dele abrir a porta, correndo para o guarda-roupa.

Pigarreei.

— Não, estou escolhendo meu pijama — respondi de volta, esforçando-me para ser mais natural possível.

Peguei o tecido mais leve que senti em meus dedos, sem dar muita atenção, afobada para representar meu papel. A porta se abriu.

— Hmmm — ele murmurou, sentia seus olhos me analisando. Uma vez com a calça e a camiseta em mãos, tive que olhar em sua direção — Você sempre esquece o quanto te conheço, vem aqui — caminhou até mim, acolhendo-me em seu abraço de urso protetor. Seu calor me cobria, protegendo-me do frio existente ao nosso redor, uma barreira para intempéries.

Já me sentia a pessoa mais sortuda do mundo por tê-lo em minha vida. Sabia que ele me apoiaria em minhas escolhas, por mais que não gostasse delas, e depois me ajudaria a lidar com as consequências.

— Preciso te contar uma coisa.



Lara foi a última a se ajeitar no banco e acenamos para nossos pais da janela fechada e transparente do Uber.

— Acho uma péssima ideia — Repetiu ela através dos dentes fechados que fingiam um sorriso a nossos genitores.

— Imagino que até ela saiba que não é boa — Danilo concordou, falando como se eu não estivesse ali.

— Ela sabe — aquiesci, fiel à verdade.

Os dois estreitaram os olhos para mim.

— Se saírem fotos seus pais ficarão um pouco aborrecidos por não ter contado — Lara levantou o indicador, contando — e por ter encontrado ele — dedo médio.

— Não acho que nosso maior problema seja o aborrecimento dos pais de vocês, e sim se ele vai dobrar ela.

— O que você acha que ele poderia fazer? Será que ainda vai insistir na história do livro? Acho que isso já é passado, não? — Batucou os dedos no queixo, refletindo.

— Não acho que o livro. Mas depois dessa não acho que ele seja muito confiável. Se envolver com ele não parece ser uma escolha inteligente — pontuou ele, o cenho franzido de concentração.

Lara meneou a cabeça.

— Talvez. Mas se for pra tirar só uma casquinha é válido. Afinal, ele é muito bonito — sorriu num esgar sugestivo.

— Sabemos que a Júlia se envolve com as pessoas, não sabe tirar só casquinha. Ainda mais quando ela já está envolvida.

Fechei a cara para os dois e arqueei a sobrancelha.

— Vão continuar mesmo falando sobre mim como se eu não estivesse a centímetros de vocês?

Os dois sorriram com a mesma expressão insolente.

— Sim — responderam ao mesmo tempo e trocaram um olhar de camaradagem.

Bufei, revirando os olhos.

— Vocês têm que confiar em mim — murmurei, não muito confiante. Nem eu mesma estava me dando muito crédito naquele momento. As mãos estavam geladas em meu colo, se retorcendo feito minhocas.

Por essa razão apenas recebi um olhar de descrédito.

— Bem, a gente cria nossos filhos para o mundo mesmo. Precisamos deixá-los quebrar a cara sozinhos — Lara suspirou, exagerando no tom de mãe exausta.

Danilo deu dois tapinhas em seu joelho, indulgente.

— Sim. Estaremos a distância de uma ligação. Não vamos muito longe, também. — Tranquilizou-a.

— Três pessoas desmioladas nessa cidade numa sexta feira à noite, a mãe irresponsável sou eu — disse, pesarosa.

Ryan Butler não tem uma maturidade muito maior que os dois, e embora me agradasse em partes que ele resolvesse manter a amizade com minha irmã, a despeito de toda minha confusão com Justin — "ele ficou no meu pé", ela me disse quando perguntei naquela manhã —, sempre o achei bem soltinho, pronto para voar. Três cabeças de vento sem alguém para segurar a cordinha do balão? Arriscado.

Apesar dos argumentos, tecidos por cada parte, e embora eu não fosse admitir em voz alta, sabíamos que a maior preocupação era eu. Sozinha. Frente a frente com meu pior inimigo. Minha maior fraqueza.

Desci do carro com as pernas trêmulas — ouvindo frases de incentivo e alertas — e andei de imediato para dentro, sem procurá-lo por ali. Não queria que fôssemos flagrados juntos por mais de uma razão e ele provavelmente estava de acordo. Analisei o suéter branco de tricô, gola rolê, que usava, ele se alongava um pouco abaixo da minha cintura, sobre minha calça jeans escura. Por baixo vestia meia calça. O clima estava mais frio, com indícios de chuva. Ventava um ar gelado, não forte o suficiente para expulsar as nuvens. Por essa razão havia calçado minhas botas pretas de cano longo. Passei a mão em meu cabelo solto, praguejando contra a tendência da chuva de levantar o frizz nos fios. Talvez eu devesse ter seguido o conselho de Lara de passar chapinha ou secador, mas eu odiava. Pelo menos uma touca já teria ajudado em alguma coisa.

Já estava andando em círculos na entrada, batucando minha coxa. Ali só havia a bancada de recepção, os elevadores, escada e a mesa lateral de vidro enfeitada por dois vasos de flores falsas. Os lustres que pendiam do teto como pequenos cristais só serviram para me distrair por breves minutos e eu não estava a fim de conversar com a recepcionista, que me cumprimentara no começo, e, depois de me sondar um pouco, reparou na minha espera impaciente por alguém, passando a me ignorar educadamente. Mais um par de casais passou pela porta, e outra vez olhei ansiosa demais na direção do movimento, só para me frustrar no mesmo instante. Dei espaço, acenando com a cabeça.

Questionei-me se não havia me antecipado demais. Ou se ele estava me esperando do lado de fora. Olhei para a porta, indecisa. Deveria sair? Podia ouvir o som distinto do chuvisco que começava a cair. Não havia levado guarda chuva. Deveríamos ter combinado o lugar exato para nos encontrarmos. Deveria ligar para ele? Eu ao menos deveria estar ali? E se ele houvesse desistido de comparecer?

Esta última opção arranhou meu estômago. Resolvi ignorá-la, para o meu bem. Em contrapartida, voltei-me para questões mais úteis. Ainda não havia formulado nada do que diria. Ficaria a meu cargo puxar a conversa? Aliás eu também havia dito que precisávamos conversar. O que eu queria?

Hm. Pergunta perigosa.

O que seria adequado querer?

Ignorei o movimento seguinte da porta, olhando a ponta do meu calçado como se pudesse encontrar respostas das minhas perguntas ali. Infelizmente o Tap e Flap só existiam no Castelo Rá-Tim-Bum.

— Boa noite, Júlia.

Me voltei tão rápido para sua voz que quase fiquei tonta. E ao visualizá-lo, perdi de fato alguns sentidos. Seu cabelo muito bem penteado no topete chegava a brilhar, quase tanto quantos os olhos, mansos, profundos, hesitantes e vivos. A jaqueta verde musgo aberta influenciava a cor intensa deles. Por sua vez, seu tênis largo branco desafiava o clima, combinando com a camisa da mesma cor, gola alta e lisa se ajustando ao seu corpo. Como costume, a calça preta parecia larga e caída na cintura, devidamente coberta pelo tecido superior. A beleza competiu minha atenção com o que segurava nas mãos.

Um buquê de rosas roxas e pretas.

Ele seguiu meus olhos e estendeu as flores para mim.

— Eu sei que preto geralmente remete a luto, mas você disse que essas eram suas cores preferidas, então... São pra você. Não que eu ache que isso melhore qualquer coisa, eu só... É um presente — eu tinha a impressão de que ele poderia estar suando de nervoso.

Comprimi os lábios, tentando esconder o sorriso completamente comovido. Ele era bom mesmo. Praga. Aquele era o primeiro buquê que ganhava na vida. Na verdade, qualquer flor, no geral. Vindo dele só tornava o gesto mais emotivo para mim. Lembrei-me do quanto desejei ser One Less Lonely Girl em seus shows e minha fã interior quase enterrada por raiva levantou-se como uma morta viva para o grito interno.

Peguei o buquê das mãos dele, sem jeito.

— Obrigada.

Ele estendeu a mão para o elevador.

— Podemos?

Assenti, segurando com um pouco de força demais as flores. Não achava que poderia ficar mais nervosa. Esperava que quando o visse entrasse em meu centro lógico racional. Zombei de mim mesma por ser tão ingênua.

Ficamos em silêncio até estarmos dentro da caixa metálica. E quando a porta se fechou, ficou ainda mais estranho. A presença dele me pareceu mais intimidadora.

— Obrigado por ter concordado em vir — disse ele, sem olhar para mim.

Levantei o ombro.

— Sem problemas.

Quanto tempo mais levaria para chegar ao topo? Argh. O perfume delicioso dele estava por toda parte, como uma assombração, o que me fez lembrar...

Respirei fundo para tomar coragem e me arrependi, provavelmente usava algum tóxico de colônia para enevoar a mente alheia.

— Eu trouxe suas roupas para te devolver — gesticulei vagamente para a bolsa preta pequena em minhas costas.

Agora atraí sua atenção. Ele franziu as sobrancelhas, parecendo confuso por alguns momentos. Antes que eu precisasse passar pela experiência constrangedora de explicar, sua expressão se clareou.

— Ah, sim. Bem... — Ele estava sem graça? A ladra era eu — Obrigado, então — desviou os olhos de novo.

Ouvi quando resmungou baixinho, só não entendi as palavras. Devia ser alguma justa acusação. Enrubesci.

Para ser justa, ele também havia roubado meu sonho esta semana. Estávamos quites.

Prestes a sugerir que parássemos o elevador para ir pela escada, a porta finalmente se abriu e eu expirei, praticamente correndo para fora. Com um rápido vislumbre, notei como o local parecia consideravelmente mais cheio. Claro, sexta feira, Júlia. Quão conveniente era estarmos ali juntos e eu segurando um buquê de rosas? Quis me esconder, mas o melhor que pude fazer foi abaixar a cabeça — e o buquê — e seguir seus pés até a parte externa do restaurante outra vez.

Eles haviam puxado uma cobertura na altura do telhado a fim de que não nos molhássemos, e fomos conduzidos a ponta outra vez, distante das outras pessoas. A maioria delas estava lá dentro, indispostas a exposição ao clima.

— Se você quiser podemos entrar também — Justin disse rápido, seguindo a linha do meu olhar.

O chuvisco caía reto do céu, impedido de chegar a área pela cobertura, por enquanto estaríamos seguros. A última coisa que eu queria era ficar lá dentro, alvo de olhares curiosos.

— Não acho que precise agora.

Ele aquiesceu e nos sentamos. Me abstraí de todo o drama por alguns instantes, contemplando a beleza da vista, a cidade iluminada em prédios e postes, como estrelas caídas, a nossos pés. O mar infinito e escuro no horizonte, as nuvens ainda não haviam tomado conta de todo o céu azul ultramarino, deixando visível a lua cheia e parte dos corpos celestes. Tanta majestade e perfeição só poderia ser obra de Deus mesmo. Quando voltei minha atenção para frente, Justin estava olhando para mim, impassível. Meu coração levou um pequeno susto.

Ele não se preocupou em dizer alguma coisa, o que não foi muito justo. O esverdeado em seus olhos, acentuado pela jaqueta, tornava-se mais límpido e hipnotizante àquela luz e me preocupei seriamente que esquecesse como respirar ou as coisas que deveríamos acertar. Era ainda mais terrível do que imaginei. Ele parecia um astro celeste personificado e radiante diante de mim.

Falei a primeira coisa racional que se passou na minha cabeça:

— É a segunda vez que me traz aqui depois de tentar me prejudicar, é algum padrão seu?

Racional, mas não muito educado, ponderei. Serviu para minha percepção pessoal de que ainda havia raiva em meu sistema, e isso foi um alívio. Não poderia agir como se ele não tivesse feito nada, ainda que tentasse remediar no momento. Pés no chão.

Percebi em seu semblante a interrupção de sua linha de pensamentos para se reajustar ao assunto.

— Na verdade não.

Apertei os olhos a fim de medi-lo, mas parecia honesto.

— Tem alguma razão em especial para esse lugar? — Segui no instinto desconfiado, contudo, poli as palavras para não ser tão agressiva.

Ele se recostou na cadeira e sútil aborrecimento espreitou sua feição.

— Não. Por ser perto da sua casa, por ser um lugar legal, por você ter gostado da primeira vez? Qualquer uma das opções — respondeu, entortando o canto da boca.

— Hm.

Puxei o cardápio da mesa. Podia sentir minhas barreiras se levantando, apresentando-lhe minha fachada rabugenta. Sentia a necessidade de me defender de mim mesma, tão afetada por ele que poderia fazer algo que me arrependesse depois.

— O Daniel deve ter odiado o fato de você ter aceitado me ver — disse e notei certo tom acusatório em sua voz.

Paralisei. Seria possível ele ter entendido a piada de Danilo? Ou teria dado um jeito de descobrir depois? À menção mental dela me despertava vontade de rir.

Não ria, Júlia!

— Danilo — corrigi — Ele não ficou exatamente saltando de alegria ao saber. Aposto que isso também desagradou a Kendall — contra-ataquei, antes que eu mesma percebesse minha intenção.

Justin franziu o cenho.

— Ela não tem muito a ver com isso.

— Claro que não — ironizei, baixo, voltando-me para o cardápio que eu via sem ler.

Ouvi seu suspiro.

— Não te chamei aqui para te chatear, só quero conversar com você, e pelo que entendi você também tem alguma coisa a me dizer — falou, era evidente seu esforço em controlar o gênio.

Vi a oferta de paz em seus olhos e coloquei o cardápio de volta na mesa, relutante.

— Tudo bem.

— Você já escolheu o que comer? Vou chamar o garçom.

Relanceei os olhos mais uma vez no cardápio e escolhi os mais familiares, salmão e salada caesar. Ele escolheu Hazelnut Crusted Sea Bass, seja lá o que isso significa. O garçom foi rápido, e logo estávamos cara a cara outra vez. Suor escorreu pela minha nuca.

— Quer começar? — Ofereceu, passando a língua nos malditos lábios rosados, ostentando uma expressão séria (a qual, muito convenientemente, sempre foi motivo de surto pra mim) que destacava sua mandíbula.

Mais uma vez questionei minha decisão de estar ali. Seria uma longa noite.


------------------------------------------------------

EU TO FICANDO COM VERGONHA DE PEDIR DESCULPA KAKAKAKKAAKMas to muito feliz por ter conseguido postar esse capítulo logo. Muito obrigada a quem ainda não desistiu de mim. Eu amo muito essa história, nosso mundinho e vocês!


Orando para que eu consiga retornar mais rápido! Gastei o dia todo de hoje só para escrever o final e revisar, além de todos esses dias tentando ka kaObrigada pelas estrelhinhas e comentários, eles me motivam muito!Curiosa para ver o que sairá desse jantar. O que vocês esperam? Um beijo e abraço cheios de saudade!

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top