Temperatura
— Você já almoçou? — Justin perguntou, relaxando enquanto saía do estacionamento. As janelas permaneciam fechadas, e eu imaginei que ele não fosse abrir. Se eu já achava que era o mesmo perfume da noite do jantar, agora não podia restava nenhuma dúvida. Aquele aroma irritante hipnotizante.
Com teimosia, passei a controlar minha respiração, para não inspirar mais ar do que o estritamente necessário. Meus lábios se projetavam levemente para a frente, num beicinho de raiva. Eu não queria responder, e esperava que isso não ofendesse a diplomacia. Estava ali para ouvir suas propostas, e nada mais.
— Hm, Lia, preciso que me diga para saber a que lugar devo me dirigir... — Lançou-me um olhar rápido — Ou, se quiser, podemos ficar dando voltas no carro, talvez só precisemos parar para abastecer...
Suspirei com a pressão.
— Não almocei, estava nervosa com essa audiência a que fui obrigada a suportar — dotei minha voz de acusação, fuzilando-o com os olhos.
Aquilo pareceu diverti-lo mais e eu trinquei os dentes.
— Tudo bem, vou parar em um dos meus lugares favoritos em San Diego. Não comi ainda também. Além do mais, sei que no Brasil o almoço é uma refeição importante para vocês — disse, em tom de conversa, totalmente alheio ao meu espírito.
Encarei o para-brisa, notando como o veículo agia embaixo de mim. Eu nunca imaginei que andaria em uma Lamborghini e, apesar de estar enfurecida naquele momento, levaria essa parte da experiência para a vida toda, sabia disso. Eu já imaginava a cara do Danilo quando eu lhe contasse sobre o passeio que dera. O carro parecia de brinquedo, o barulho do motor se assemelhava ao som dos veículos de jogos de corrida ou da Fórmula 1. Era achatado, estreito, o console cheio de botões muito semelhante a uma máquina de fliperama. Não parecia real. E quando ele havia aberto a porta para eu entrar? Ela se direcionara para cima, posicionada como uma asa prestes a voar. Não se enquadrava na categoria "automóvel", estava um nível acima.
Imaginei que a fim de preencher o silêncio carregado, Justin ligou o som e de imediato tentei reconhecer a melodia da faixa iniciada, a batida era cativante, o dedilhar de um violão em harmonia com o baixo e alguns sons artificiais. Então, sua voz soou suave, e não ao meu lado exatamente, saindo da caixa de som. Fiquei reflexiva, revirando suas músicas em minha mente. Eu me gabava de conhecer todas. Como poderia não reconhecer aquela? A não ser que....
JB4???
Voltei-me para ele com os olhos ligeiramente arregalados, ele já me olhava de esguelha, um sorrisinho presunçoso no rosto.
— É boa, não é?
Boa???? Era uma obra de arte. Meu corpo se debatia para acompanhar o ritmo da música, mas eu resistia para não lhe dar aquela vitória. Os vocais estavam incríveis em conjunto com a demarcação de tempo pelo som grave. Se ele começasse a cantar em falsete eu enfartaria bem ali. Ódio, não podia negar seu talento.
— É algo em que estou trabalhando. Tem potencial, reconheço, espere só pela ponte.
Balancei a cabeça, descrente, cada vez mais ele obtinha mais e mais habilidade. Quase tive uma síncope quando ele cantou junto, em sua voz manhosa:
— You ain't gotta make your mind up right now, don't rush, no pressure
Eu já estava completamente envolvida com a canção louca para tê-la a meu alcance para escutar repetidas vezes, era uma daquelas músicas que eu me apaixonava completamente de primeira, o que não acontecia com muita frequência. Já podia me ver cantando o tempo todo, usando-a como animação em meus dias deprimentes.
O segundo verso foi enfeitado com alguns falsetes, para completar o delírio coletivo de minhas células. Um melisma, claro atentado para a minha razão. E o novo refrão dotado das melhores vozes de fundo. Para o terceiro verso, muito mais falsete, voz manhosa e.... pronto, minha cabeça estava se balançando contra a minha vontade. Era demais para aguentar em silêncio.
— Lá vem ele! — Anunciou segundos antes de Big Sean, aquele mesmo que me fez surtar em As Long As You Love Me, começar o rap.
Achei que eu não resistiria o bastante, ouvindo Justin cantarolar um novo melisma em falsete para dar entrada na ponte. Mas fiquei feliz por ter sobrevivido, Big Sean entrou com tudo, mal tomando ar para respirar. Justin, ao vivo e a cores, já havia decorado a letra, e o imitou com uma empolgação contagiante. Meus pés bateram suavemente no assoalho para acompanhar o ritmo, minha língua ficou seca para juntar-se a cantoria, mas eu mal podia murmurar, já que aquela era a primeira vez que a ouvia.
Fui humilhantemente derrotada, poucas coisas na vida conseguiam me empolgar como suas músicas. Era golpe baixo usá-las contra mim. Ele deu uma espiada no meu rosto quando retornou a entoar o refrão, as mãos batucavam o volante, depois no peito, e então dançavam no ar. Seu tronco se movimentava em breves ondas iniciadas com um impulso da cabeça. E por alguma razão, não me pareceu exibido ou narciso, apenas um bom criador reconhecendo o valor de suas obras. Eu o compreendia.
Captando alguma emoção em meu rosto, ele sorriu e trocou um olhar de camaradagem comigo. E quando terminou, esperou o veredito.
Eu estava sem palavras, tentei diversas vezes achar alguma coisa adequada a se dizer, e ele riu de minhas tentativas.
— É impressionante! Você é tão talentoso que é injusto. Se fosse 1/4 disso decente até que poderia ser uma boa pessoa.
Ele revirou os olhos para mim.
— Engraçadinha, vou ignorar sua crueldade e te mostrar mais uma.
Antes que eu pudesse dizer que aquilo não era um favor, mas apenas uma de suas estratégias para me manter sob controle, a introdução estava soando e instintivamente fiquei quieta, atenta.
Essa já começava com sua voz ao fundo em reverb "Oh-oh" com toques artificiais e ao que parecia um teclado, tudo num junção bem rap. Era nova também, com certeza. O ritmo por igual era cativante, e dessa vez não lutei tanto para me manter paralisada, eu já havia demonstrado minha fraqueza antes, não fazia sentido me controlar agora. Acabei fechando os olhos para apreciar a experiência por completo. Para o pré-refrão, ele abusou do falsete, e minha tortura foi completa pelo Justin real também fazê-lo bem ali, a pouca distância de mim. Eu não podia perder aquilo, então disparei os olhos para ele.
Seus olhos se fecharam brevemente, e antes que eu pudesse ter noção de que não era nada seguro dirigir de olhos fechados, já os abrira de novo. Justin sempre cantava do fundo de sua alma, qualquer um podia ver se estivesse realmente olhando, e aquilo era uma das coisa mais lindas que eu já vira na vida. Deixou meus olhos lacrimejando. Todo o sonho de vê-lo cantando ao vivo recaiu sobre mim, ainda mais daquela forma intimista, a capella. Por um momento, ele era só meu cantor favorito, não Justin Bieber que me processava (o irritante, bipolar, petulante), e eu a fã obcecada que sonhava em encontrá-lo. Meu coração transbordou. Eu ouviria literalmente qualquer tipo de música que aquele homem gravasse, até mesmo anúncio de produtos: Olha o ovo, uma cartela dez reais! Ovos quentinhos da granja!
Justin captou meu olhar e franziu levemente as sobrancelhas.
— Hmm... Você não gostou?
Eu gaguejei incoerentemente até me concentrar.
— Justin, eu te odeio.
Ele arregalou os olhos levemente, surpreendido pelas palavras.
— Você ainda está com raiva? — Indagou, estreitando os olhos.
— Estou, mas não se trata disso — descartei — Estou com raiva agora porque você não faz UMA música ruim. Fica cada vez melhor. Torna as coisas muito mais difíceis pra mim assim — confessei.
Ele soltou uma risada infantil exultante, o rosto rejuvenesceu em 10 anos, a covinha aparecendo.
— Ah me perdoe, eu até tento ser menos incrível — gabou-se — It don't make no sense, It don't make no sense ... — entoou. E assim que a música terminou, me atirou a pergunta — E então, qual gostou mais? No Pressure ou No Sense?
Parei para me consultar, eu estava evidentemente eufórica com as faixas, ambas provocaram intensas reações em minha psique, embalaram-me com um bom abraço, capazes de me tirar da realidade presente. Seriam grande acalentadoras se ele lançasse e não me fizesse odiá-lo a ponto de não conseguir mais ouvir sua voz — eu duvidava muito dessa última parte, tinha a impressão de que o ouviria ainda que fosse escondido.
— Não sou capaz de opinar. Ambas são incríveis para mim. Quando pretende lançar? — Eu estava animada demais para me manter na linha dura naquele instante.
Ele hesitou um pouco, os olhos atentos à estrada.
— Bom.... — relutou, aparentemente decidindo se podia me contar.
Suspirei, entendendo.
— Faz parte da sua surpresa de marketing, entendi. Não precisa me contar.
Esfregou o queixo, então assentiu.
— Vou lançar um novo álbum ainda esse ano — anunciou, radiante com a notícia, os olhos brilhando —, estou trabalhando em várias músicas. Quero ter certeza de que estarão perfeitas, e quais são as melhores para usar.
Justin é um perfeccionista, às vezes até demais, eu morreria de ansiedade até que ele lançasse o prometido álbum. Pela prévia, soube que seria majestoso, um retorno digno depois de uma pausa torturante. Contive o impulso de ganir, bater palmas e dar pulinhos no banco.
— Não tenho dúvidas de que ficará impecável, Justin — garanti, sincera.
O canto de sua boca se repuxou num sorriso espontâneo.
— Obrigado, Lia — e então olhou pela janela — Chegamos.
Olhei para o prédio branco, duas bandeiras fincadas, reconheci apenas uma delas, a inconfundível bandeira dos Estados Unidos da América. Então ele parou na cancela e desceu o vidro para conversar com o funcionário na cabine. Eu não conseguia vê-lo direito a menos que me inclinasse feito uma enxerida sobre o câmbio, e não havia necessidade para tanto. Aguardei pacientemente para que a cancela subisse e depois até que ele encontrasse uma vaga no ambiente parcialmente escuro, mais frio do que o comum e de concreto, o modelo típico de estacionamentos. A diferença estava nos carros estacionados, a maioria muito elegante, a simplicidade parecia exceção ali. Com esses clientes, devia ser um restaurante de luxo. A ideia de almoçar não fora minha, muito menos o lugar, e ele havia prometido pagar a comida, eu não faria a mínima questão de insistir no contrário.
Descemos em silêncio e ele convergiu para um elevador logo a frente, o segui, tentando ajustar minhas emoções para me lembrar o que fazia ali. As músicas haviam me desconcertado, desaparecido com uma parte da minha irritação. Lutei para encontrá-la, debatendo comigo mesma que deveria me impor. Entramos no elevador e assim que as portas se fecharam, o ar pareceu mais carregado. Pelo canto de olho, pude ver o semblante um tanto presunçoso de Justin. Fechei a cara. Claro, ele devia estar muito contente por seu plano ter funcionado com perfeição. Agora, ele podia tentar me subornar com as sobremesas de chocolate mais ridiculamente caras, mas eu não cederia meus direitos e....
Interrompi meus pensamentos no meio quando ouvi sua risadinha. Arquei a sobrancelha.
— Eu só estava pensando na ironia das coisas — levantou uma mão, na defensiva.
— Ironia do quê?
— Desde quando decidimos que eu seria o pacífico e você a mau humorada?
O encarei.
— Desde quando você está se divertindo bastante com a minha cara. Sabe, todo mundo tem uma quota de paciência. E sua mudança de humor não é positiva, você fica pulando de um pra outro sem critério algum — acusei.
Ele mordeu o lábio inferior, contendo uma risada.
— Justo. Desculpe, sei que você não queria estar aqui, o que parece outra ironia do destino, mas eu vou te explicar.
Dei de ombros, no exato momento em que a porta se abriu. Fomos recebidos praticamente na porta pelo maître, trajando um smoking de gravata borboleta, cabelos grisalhos e um sorriso hospitaleiro.
— Bem vindos! É bom revê-lo, senhor Bieber! Senhorita — inclinou educadamente a cabeça em minha direção.
Depois de um cumprimento gentil, olhei curiosa entre os dois. Justin era um cliente fiel, claro. Na verdade, mesmo que tivesse comparecido somente uma vez, a visita seria memorável o bastante para que não o esquecessem.
— O prazer é todo meu, senhor Coleman.
Justin podia apenas ter lido o nome no broche, então não me deu muitas dicas. Depois, estávamos sendo conduzidos entre as mesas quadradas de toalhas brancas e cadeiras estofadas para encontrar nosso lugar. As paredes eram quase completamente de vidro, interrompidas por pequenas vigas/molduras de madeira a grandes intervalos, a vista era incrível, a cidade se estendia com esplendor. Para não causar acidentes, não pude olhar muito de início. O restaurante não estava muito cheio, mas ainda assim praticamente todos olhares se voltavam disfarçadamente para nós dois — para ele, na verdade. As pessoas estavam muito bem vestidas, e fiquei aliviada por estarmos saindo da audiência para que meus trajes estivessem aceitáveis.
Tive a impressão de que cada passo era um desafio sob toda aquela atenção, eu podia me ver tropeçando e caindo na mesa de alguém, arrastando outro comigo, derrubando um garçom, o pânico na garganta. Por outro lado, Justin estava muito tranquilo, ignorava com muita facilidade todos os olhares, eram anos e anos de prática. Quase suspirei de alívio quando Coleman deslizou uma porta de vidro para nos dar acesso a outro compartimento de mesas, lá fora bem ao lado da grade que impedia o mais desavisado de cair do prédio. Ali, ao ar livre, a vista era mais impressionante.
O céu se estendia ilimitadamente num azul royal, iluminado por um sol distante que mal contribuía para o clima gélido, os prédios dividiam espaço com a paisagem natural já que o extenso rio (ou seria o mar?) não estava muito longe. Eu estava sem fôlego. Distraída, segui os homens entre as mesas menores de toalhas brancas enfeitadas com vasos portando flores amarelas, rodeadas de cadeiras de ferro. Haviam menos pessoas naquele ambiente, e Coleman nos alocou no canto mais isolado, bem na extremidade, voltados para a água límpida no horizonte. Num raio de quatro mesas, não havia ninguém, dos dois lados, e me perguntei se aquilo fora planejado.
Sentei-me onde Coleman puxou a cadeira, muito cavalheiro. Justin se sentou à minha frente, e já estava me estendendo o cardápio, antes do Maître sair com um pedido de licença. Agradeci e prestei atenção nos escritos à minha frente, como toda pessoa que se preze, meus olhos partiram imediatamente para os preços e quase caíram das órbitas.
— Não se preocupe com valores — Justin adivinhou meus pensamentos, devia estar escrito em minha testa o assombro —, eu vou pagar tudo. Divirta-se.
Sondei seu sorrisinho divertido e dei de ombros, a vontade era de pedir todas as opções do cardápio de Misters A'S para ele deixar de ser besta, mas eu não era muito a favor de desperdício apesar dos pesares. De qualquer forma, eu também não estava com muita fome. Suspirei e decidi por um sanduíche seguro de frango com batata frita e refrigerante.
— Gonestraw Farms Chicken on Ciabatta e Coca cola.
Ele assentiu e apertou o botão vermelho de um aparelho preto e redondo no centro da mesa. Logo um garçom apareceu e ele anunciou nossos pedidos com tranquilidade ao passo que eu olhava através da grade, resistindo ao medo justificável da altura. Uma mistura de "hm, vamos pular para ver o que acontece?" com "Meu Deus, não se aproxime muito da grade". Podia ver os carros passando lá embaixo, prometendo me atropelar se eu me estatelasse na rua. Voltei a olhar para cima, pouco a vontade comigo mesma, e então lá estava, um avião quase na altura dos prédios, mais perto do que o rio.
De olhos arregalados, o acompanhei no trajeto, até Justin me interromper.
— É uma vista e tanto, huh? — Me mediu com olhos. Identifiquei por trás deles certa diversão, como se curtisse uma piada interior.
— Ah, sim, claro — confirmei, desconfiada.
— A noite é ainda mais impressionante, com todas as luzes... Dá um belo encontro — ele olhou para os prédios e depois para mim, ainda com o sorriso divertido.
Apertei os olhos, mas preferi não comentar.
— Então, acho que você pode começar a me explicar agora.
Ele passou a mão no cabelo organizado num topete perfeito, sem pressa.
— Primeiro tenho uma pergunta muito importante para te fazer.
— Pode fazer — murmurei, hesitante.
Justin ficou sério, investigando por baixo de seus longos cílios se eu planejava responder com honestidade, ao que parece. Cruzou as mãos sobre a mesa e se inclinou levemente na minha direção. Automaticamente, ergui minhas defesas.
— Qual série você está assistindo no momento?
Levantei as sobrancelhas. "Sério?", expressei sem abrir a boca, mas isso nem fez tremer sua atuação. Expirei devagar, tendo certeza de que estava testando minha paciência.
— Não gosto de série. Não tenho paciência pra isso, toma muito do meu tempo. E ele é precioso — inclinei a cabeça, enfatizando.
Pude ver o fantasma de um sorriso no canto de seus lábios, mas ele arregalou os olhos.
— Que curioso! Mas faz sentido a questão da falta de paciência.
Fuzilei-o com os olhos.
— Você está me enrolando, anda logo, o que quer me propor que não poderia na frente dos nossos advogados?
Perguntei-me o que eu havia dito demais quando ele me jogou aquela olhadela sugestiva, mas antes que eu questionasse, havia se recomposto em uma expressão neutra e reflexiva.
— Eu só queria te falar que estou tão insatisfeito com a situação quanto você... Por favor, ouça — levantou um dedo quando fiz menção de protestar —. Eu acho que agora posso meio que acreditar em você — ele sorriu, jocoso, da minha careta —, talvez você não queira se aproveitar de mim...
— Talvez? — O interrompi acidamente.
O sorriso se alargou.
— Por favor, me deixe terminar — Ele esperou eu concordar com mau humor — Então, mesmo que eu acredite nas suas intenções, é complicado para mim. Naquele dia, embora concorde que de forma um tanto rude, eu já te expliquei as implicações da sua história...
— Completamente rude — acrescentei.
Justin apertou os olhos para mim, impacientes com minha interrupção. Respirei fundo, fingi trancar os lábios e jogar a chave fora. Ele achou graça.
— Tudo bem, de forma totalmente rude, indelicada, mal educada e inapropriada — eu assenti, concordando —, minhas motivações são genuínas. Você, mais do que ninguém, sabe como foi um período difícil e, eu sei que a mídia está relembrando a sociedade o tempo todo sobre isso, mas não gostaria de mais um lembrete eternizado. Gostaria de ter o controle ao menos uma vez das informações que saem sobre mim — mordi os lábios para não contrapor — Eu sei que você vai me dizer que é só um livro sem relação alguma comigo diretamente, mas você sabe também que a maioria das pessoas vai saber que é baseado em mim — ele olhou para a mesa, franzindo levemente o cenho — Não sei até que ponto isso pode me prejudicar, mas é o pensamento da equipe. Entenda, Lia — voltou aos meus olhos, com muita concentração —, não quero seu dinheiro, não quero te prejudicar, mas não posso simplesmente descartar a questão de uma hora pra outra. De igual maneira, não gostaria que você ficasse magoada comigo ou achasse que estou tentando arruinar sua vida. Lamento muito por toda essa situação.
Não reagi, não apenas porque havia trancado minha boca como promessa de que não falaria, mas também não sabia muito bem o que falar, digerindo o que ele dissera. Podia confiar que estava sendo sincero? Ao ler meu rosto, ele disse:
— Falo sério, Lia, acho que você é uma pessoa singular, tem alguma verdade em seus olhos — a intensidade com que falou aquilo, concentrada também em sua íris que parecia desnudar meu rosto, me fez corar, para seu divertimento — Aliás, por esse motivo eu queria conversar com você. Só precisava te explicar de forma mais pacífica agora. Não quero brigar com você. Só temos interesses que colidem. Mas eu ficaria feliz se encontrássemos uma maneira mais tranquila de resolver, não entendo nada daquela coisa judicial.
Fiquei quieta, esperando. Ele sorriu um pouco e gesticulou com a mão, autorizando minha fala.
Diplomacia, lembrei a mim mesma.
— Obrigada. Bom, Justin, eu entendo. Mas se você pudesse ler o livro.... eu já tenho o manuscrito em inglês, você veria que não se foca nos seus períodos sombrios e quem sabe convencer sua equipe de que não é necessário impedir que eu publique. É meu sonho, de verdade. E eu nunca tive nem tenho a intenção de te prejudicar ou crescer nas suas costas. Por favor — murmurei, persuasiva, inclinando-me em direção a ele como se isso pudesse fazer alguma diferença.
Ao mesmo tempo, fiquei nervosa. Se ele aceitasse a oferta, estaria praticamente dentro da minha cabeça. A história é inspirada nele, então é bem mais constrangedor do que milhares de pessoas aleatórias lendo. Ele podia pensar que eu o via daquele ponto de vista, que imaginei como era beijá-lo, tocar seu cabelo macio, senti-lo tomar minha cintura como se eu lhe pertencesse... Interrompi meus devaneios por aí, sem fôlego. Claro que levei as coisas um pouquinho sob aquela ótica, mas, ele não precisava saber. A menos que precisasse, naquele ponto.
Justin torceu a boca, alheio ao meu constrangimento.
— Eu não gosto muito de ler. Mas, te prometo que me esforçarei por você. Tudo bem?
A promessa me deixou mais confortada, mas ainda...
— Então não havia nenhuma outra proposta mesmo?
— Nesse sentido não, me desculpe. Minha proposta é de que mantenhamos as boas relações. O que acha?
Ponderei um pouco, mas aquilo parecia ser o melhor que eu conseguiria naquele momento, e por ora, devia bastar. Algum tempo atrás nem isso eu tinha. Já era um grande progresso. Ele leria, veria que era inofensivo e retiraria o processo, e ainda terminaríamos como bons colegas. Ignorei qualquer pensamento negativo, preferindo acreditar que daria tudo certo e assenti, estendendo a mão para selar o não-acordo. Ele pegou minha mão, animado, e novamente me surpreendi com sua textura suave.
— Te envio no e-mail.
— Claro. Me passe seu e-mail agora que vou mandar uma mensagem, assim você não pensará que estou te enganando.
Balancei a cabeça com indignação, mas só por teimosia, porque ele estava certo. Assim, lhe disse meu endereço eletrônico e no mesmo instante, ele digitou um e-mail. Encarei cética seu ar piadista.
"Oi, Lia, pode surtar, sou eu, o Chapolin Colorado", recebi a notificação. Eu ri.
— Idiota — revirei os olhos.
Ele deu uma risadinha.
Mais rápido do que eu esperava, nossos pratos chegaram e nos afastamos para facilitar seu posicionamento na nossa frente. Minhas batatas com o sanduíche pareciam muito saudáveis para mim, já o prato do Justin era suspeito, um pedaço de salmão em cima de uma coisa molenga branca. Tudo bem. Concentrei-me em meu próprio problema, decidindo se eu devia cortar o sanduíche com a faca ou podia pegá-lo com a mão. Olhei para os lados, imaginando se me chutariam dali. Depois dei de ombros, peguei o guardanapo e o levei ao sanduíche.
Não estava nada mal, aprovei, e então percebi que Justin me olhava, risonho.
— É intrigante observar sua expressão quando come nossa comida. Seu nariz fica franzido de desconfiança, e a medida que come fica inexpressiva, depois indiferente.
O sangue pipocou em minha bochecha com sua análise. Eu não me dava nada bem mesmo com atenção.
— Meu estômago pode ser sensível — justifiquei.
— Claro — concordou, franzindo o cenho num falso consenso — Não tem nenhum desejo por algum prato de nossa culinária?
Balancei a cabeça, espetando duas batatas.
— Depende do que você chama de nossa culinária — agitei o garfo no ar antes de enfiar as batatas na boca.
Ele deitou a cabeça, confuso. Tomei a coca cola para engolir mais rápido, lembrando-me depois sobre a matéria que eu vira sobre câncer no esôfago por sua inutilidade. Eu devia deixá-lo fazer seu trabalho de empurrar a comida ou ele ficaria doente.
Merda. Deus, me salve.
Levantei mais uma batata em sua direção para simbolizar, mas, com atrevimento, ele a abocanhou.
— Ei! — Protestei já rindo de surpresa. Ele riu comigo, sem o menor pudor — Se quiser, você pode me pedir, sabe disso, você quem está pagando, aliás. — Empurrei o prato em sua direção, mas Justin negou, dando uma piscadela de conspiração. Ele não queria minha batata, só me desafiar mesmo — Tonto, mas, o que estou dizendo é, se envolve culinária canadense.
— Hmmm.... Qual é o seu interesse? — Centrou-se em seu prato.
Hesitei com o garfo acima da batata, pensando que uma parte da saliva dele estava ali. Minha primeira intuição foi lamber o garfo, mas me contive, resistindo também à gargalhada pelo pensamento idiota. Dei uma sacudida mental e respondi:
— Bem, principalmente Poutine — eu tinha uma referência desse prato no meu livro, Justin, ou melhor dizendo, "Josh", cozinhara o prato para a personagem principal. Principalmente por aquele capítulo, fiquei mais desejosa pela combinação interessante de batata frita com queijo, molhos e outras especiarias.
— É um dos melhores mesmo. Mas se permite, vou te deixar com água na boca pela minha terra natal.
Ele se emendou em uma descrição dos melhores atributos do Canadá, descrevendo com muita nostalgia o gosto do seu país, os melhores programas a se fazer e a cultura local. Não mencionei que eu não precisava de mais motivos para ir ao Canadá, já fazia parte da minha lista de metas um tour por Stanford, impreterivelmente às famosas escadas do restaurante em que ele tocava violão, mas escutei com muita atenção, genuinamente interessada. A bem da verdade, em certo ponto da conversa fiquei ligeiramente distraída, percebendo como a luminosidade ali deixava seus olhos mais claros, quase verdes, numa cor cativante de forma estupenda. Fiquei encarando por tanto tempo que ele chegou a perguntar se eu já estava sem fome, e repetiu a pergunta duas vezes porque não ouvi direito, para meu absoluto constrangimento.
— Também acho justo que me conte um pouco do seu Brasil, embora eu já tenha ido, sei que não foi o suficiente para conhecer tudo. Mas antes, escolha uma sobremesa — empurrou-me o cardápio depois que nós dois já havíamos limpado nossos pratos.
Não pensei em fazer a modesta, ele era rico e estava me processando, nada mais justo que me comprar também uma sobremesa.
— Posso adivinhar? — Ele se adiantou a minha palavra, com aquela expressão presunçosa. Assenti — Chocolate & Berries.
— É meio óbvio que eu sou obcecada por chocolate — rebati diante de sua cara de sabichão.
— Acertei então?
É claro que ele queria uma confissão de que estava certo. Revirei os olhos.
— Sim, oh mestre da sabedoria!
Ele riu, sem diminuir sua vaidade. Esperamos que o garçom anotasse o pedido antes que eu me lançasse a uma descrição quase minuciosa de nossa cultura. Mordi a língua para não tecer minhas revoltas com a desigualdade social, corrupção política e idiotice dos próprios cidadãos. Limitei-me aos pontos positivos, um povo potencialmente carinhoso, acolhedor, da cultura mais rica na diversificação, na perseverança... Endeusei o brigadeiro, pra mim era chocante que, ao que parecia, era uma comida típica apenas do Brasil, bem como a coxinha, pão de queijo, Itubaína.... Quase fiquei triste de vontade, mas logo chegou meu Brownie e afoguei nele minhas mágoas.
— Quem sabe eu não vou passar umas férias lá....
Quase engasguei.
— Claro, minha casa estaria de portas abertas para te receber, manteremos tudo no sigilo — diminuí o som da voz, encenando.
Minha família e amigos o amavam de coração, daria super certo uma coisa daquelas. Ele deve ter pensado no mesmo que eu, pois uma empolgação maldosa brilhou em sua expressão.
— Não me esquecerei disso. Aliás, deixa eu te mostrar uma coisa... — Ele se deslocou para a cadeira que estava entre nós e a aproximou ainda mais de mim. O clima não estava tão gelado a ponto de ser insuportável, mas já foi perceptível a quentura emanada de seu corpo, tão convidativa.
Ele mexeu no próprio celular por alguns segundos, e eu me foquei em terminar o Brownie para não espiar já que seria falta de educação.
— Olhe — apontou-me o aparelho.
Era uma paisagem natural, o que uma vez fora uma catarata estava estática no ar, congelada pela neve opressora. Do outro lado da outrora queda de água eu podia ver algo como uma montanha ou rocha completamente esbranquiçada, enfeitada com árvores igualmente salpicadas de neve. Eu não entendia como elas simplesmente não congelavam e caiam duras de mortas. Era o que aconteceria comigo se enfrentasse uma geada daquela. Involuntariamente estremeci.
— É lindo. Onde é?
Justin riu do contraste das minhas palavras com minha reação.
— Cataratas do Niágara, na província de Ontário.
— Acho que já ouvi falar sobre isso — concordei.
— Claro, é bem famosa. É meio difícil vê-la completamente congelada desse jeito, mas em uma das minhas visitas tive essa sorte.
Só pude imaginar em como devia estar incomumente frio para congelar uma catarata. Tremi de novo. Ele riu.
— Sim, estava muito frio. Na verdade, essa época do ano no Canadá é bem gelada, em janeiro a temperatura fica basicamente no negativo.
— Eu sofreria muito para viver nesse tipo de lugar, não sou acostumada nem com temperatura de 5 graus.
Seu sorrisinho foi solidário.
— Posso ver — tomou minha mão que descansava negligentemente em cima da mesa —, a temperatura não está tão baixa assim e sua mão já está congelando. Mas eu te ajudaria com isso — prometeu, pegando a outra também. Deixou-as unidas entre as suas, provavelmente para esquentá-las.
Contudo, tive que combater o calor que ameaçou subir ao meu rosto outra vez. Eu não era muito acostumada com demasiado toque físico, o que se agravava se viesse do sexo oposto. As pessoas de quem eu mais era próxima eram minha mãe e Lara. Então foi super estranho ter uma homem segurando minhas mãos daquele jeito. Meu coração deu uma batida errática e meu primeiro impulso era me afastar, mas percebi que aquilo realmente deixava minhas mãos mais aquecidas e confortáveis. O calor é bom.
Então ele olhou para o que fazia e eu vi uma expressão curiosa passar rapidamente por ser rosto, como se nossas mãos estivessem conversando com ele. Depois, seus olhos lampejaram para o meu rosto antes que eu pudesse forjar inexpressividade. Justin ficou pensativo me analisando e eu fiquei muito nervosa com isso, ao mesmo tempo reparando mais uma vez o quanto sua íris parecia ser feita para prender pessoas, o mel pegajoso para humanos. Provavelmente prendia a respiração, porque fiquei sem ar.
Ele deve ter percebido isso, franziu levemente o cenho com alguma conclusão, mas esboçou um sorriso observador. Eu não estava mais com frio, pelo que me constava a sensação térmica passara a 40º graus como se estivesse no meio da rua do Rio de Janeiro. Tive a certeza de que teria um ataque nervoso se continuássemos naquele limbo, minha tensão emanava pelo ar, entretanto, eu parecia mesmo hipnotizada, sem ideia nenhuma do que dizer ou fazer, embora buscasse loucamente uma saída. Era como dar de cara com as paredes brancas em meu cérebro.
Justin suspirou e apertou um pouco mais forte minhas mãos.
— Se importa se eu te levar para Los Angeles agora?
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NÃO ME ASSASSINEM
Eu posso literalmente sentir a mão de vocês apertando meu pescoço conforme eu demoro mais para postar hahahaha mas eu juro que tentei. Bem, postei agora, e logo posto o próximo. As coisas estão meio corridas, mas eu vou vencer.. Obrigada pelas leituras, favoritos, comentários... Bem vindas novas leitoras!!!!E eu escutando repetidas vezes No pressure e No sense para tentar descreve-las foi o máximo hahahah Eu realmente não sei qual é a minha preferida, amo as duas de paixão. E vcs,o famoso dilema: No pressure ou No sense meninas?
Espero que tenha sido tão divertido para vcs lerem esse capítulo quanto foi para escrever. No mais: se cuidem! Sem aglomeração, usem mascara, alcool em gel, não subestimem o coronga, quero todas saudáveis para acompanhar a jornada comigo. Agora, o que Justin vai querer com ela em LA heinnnnn?
Com amor,
Isabelle.
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