Cavalo de Troia

Encarei zangada a espinha pela câmera do meu celular. Eu não tinha um problema muito sério com acnes, desde que tomasse água regularmente e lavasse o rosto com um sabonete facial bom, mas, vez ou outra surgia alguma protuberância teimosa em minha pele. É claro que a tendência decidira renascer justamente naquele dia. Lara fizera o possível para me ajudar a disfarçar com maquiagem, contudo, nem ela podia realizar milagres. Como se eu já não estivesse nervosa o bastante em aparecer na televisão, e não qualquer uma, simplesmente um canal de televisão estadunidense.

— Podemos? — Minha mãe perguntou, descendo as escadas rapidamente.

Todos nós estávamos muito animados, no meu caso, a animação vinha diluída em enjoo de ansiedade, a ponto de me despertar a vontade de cancelar a entrevista. Coisa que em sã consciência eu não faria, lembrei a mim mesma, esfregando as mãos suadas.

Levantei-me do sofá muito mais corajosa do que me sentia. Lara saltou ao meu lado, empolgada.

— Podemos. — Confirmei ao ver meu pai descendo atrás dela.

Resolvemos tirar nossos melhores trajes do guarda-roupa, minha mãe apostara num vestido longo drapeado que marcava sua cintura, mesclando o verde camuflado com a estampa florida, o decote V e uma abertura na altura das canelas finalizavam os detalhes. Para completar o look, calçava sandálias musgo, deixando a mostra suas unhas pintadas de vinho. Por outro lado, suas bijuterias eram bem discretas e um casaco preto lhe cobria os ombros.

Lara ostentava seu macacão preto, jaqueta jeans e ankle boots. Enquanto eu escolhi minha blusa branca de seda lisa, calça preta skinny rasgada de cintura alta — o cinto preto com tachas circundando minha cintura servindo apenas de enfeite, blazzer cinza e sneaker preto. Meu pai olhara para minhas unhas pintadas na cor de petróleo e perguntara se eu finalmente decidira virar roqueira. Eu li em seus olhos o comentário deixado de fora: "Agora que finalmente abriu os olhos para a índole do seu cantor pop".

Ele, por sua vez, escolhera vestir sua camiseta branca, calça e casaco pretos e sapatênis na mesma cor. Bem jovial e elegante, e atestamos esse elogio para sua expressão presunçosa de falsa modéstia.

Enfileirados, nos direcionávamos a porta quando batidas ecoaram da mesma.

— Bom dia! — o sujeito atarracado de uns quarenta anos usando um colete preto por cima das roupas modestas abriu um meio sorriso profissional para minha mãe, embora eu pudesse ver certa agitação em seus olhos — É aqui que reside... — Ele leu o envelope que estava em suas mãos em cima de uma prancheta, franzindo a testa de concentração — Júlia Duarte Souza? — Pronunciou em dúvida, naquele mesmo sotaque que Justin usava. Travei o maxilar de irritação ao pensar no nome dele.

— Quem gostaria? — Ela perguntou antes de me denunciar.

— Oficial de Justiça do Estado de Califórnia, senhora. — Botando a mão dentro do colete, tirou de lá uma carteira preta com um brasão que muito me lembrou o distintivo de um policial "California Department of Justice". Ele parecera orgulhoso disso.

Minha expressão desconfiada se desanuviou e dei um passo a frente, estagnada naquele limbo emocional que precedia a fúria esmagadora. Ordinário! Justin miserável Bieber decerto cumprira suas ameaças. Lara, mais atenta ao ouvir as palavras comuns de seu objeto de estudo, Direito, se inclinara sobre meu ombro. Minha mãe a empurrara sutilmente para que assumisse seu lugar ao meu lado, como nosso projeto de advogada.

— Sou eu. — Por alguma razão, eu soara como um tributo.

Ele me deu um breve aceno de reconhecimento e estendeu para mim o envelope branco e sua prancheta.

— Bom dia, senhorita. É uma citação, só preciso da sua assinatura aqui para demonstrar sua ciência do recebimento. — Apontou a linha tracejada no papel preso em sua prancheta, oferecendo-me prestativamente a caneta do seu bolso.

Lara e eu estudamos brevemente os dizeres, o documento portava aquele mesmo brasão da justiça, "Ação de Indenização por Direito Autoral", requerido por Justin Drew Bieber contra Júlia Duarte de Souza, era certificado de que o mandado havia sido cumprido, no meu endereço atual, citando a minha pessoa, que declarava ciência do seu conteúdo.

Olhei para minha irmã esperando algum conselho para o momento, ela mordia o lábio inferior e meneou a cabeça para o documento, indicando que não havia muito a fazer a não ser assinar. Engoli em seco e peguei a caneta. Eu não acreditava que ele realmente queria seguir com aquilo. As afrontas eram uma coisa, a ação concreta parecia me dar um soco no estômago.

— Boa sorte, senhorita. — O oficial de justiça me disse assim que devolvi a caneta e vi a centelha de efervescência correr livre em seus olhos. Claro, ele tinha visto o nome de quem me processava e também já parecia prever minha derrota humilhante.

Dei um sorriso duro de resposta para suas costas, que se viraram para mim rapidamente, quase como se houvesse deixado uma bomba na frente da minha porta e se afastasse depressa para não ser atingido por ela. O que não era muito diferente da realidade.

Olhei para o envelope branco em minhas mãos, esperando que criasse dentes e me mordesse. Investiguei os rostos ansiosos da minha família, mas eles tampouco sabiam o que fazer, instantaneamente tomados pelo choque. Tudo bem, o mais lógico então.

Rasguei a ponta do papel apenas para perceber que meus dedos estavam trêmulos além de escorregadios e desdobrei o documento para quatro pares de olhos unidos lerem com avidez.

"Poder Judiciário

Estado de Califórnia

Cidade de San Diego

Carta de Citação

Ação de Indenização por Violação de Direito Autoral

Requerente Justin Drew Bieber

Pela presente, extraída dos autos do processo acima indicado que Justin Drew Bieber move em face de Julia Duarte Souza, em trâmite neste juízo, fica vossa senhoria citada para todos os termos, tal como intimada a comparecer em audiência de conciliação, designada para 19 de Janeiro de 2015 às 13 horas, a ser realizada em 2150 West Washington, Suite 112, San Diego, CA 92110, sob pena de revelia, confissão e condenação final no valor de US$ 100.000."

Engasguei ao ler "cem mil dólares", de imediato fazendo a conversão do valor em reais, pelo que eu me lembrava, o dólar custava aproximadamente quatro reais. Escancarei meu queixo ao passo que senti a fúria que serpenteava abaixo da minha pele tomar todo o meu corpo.

— Como ele pode????? Quer nos deixar falidos no olho da rua???? — Bradei nervosa, fechando as mãos em punho e em consequência amassando um pouco o papel. Ainda havia a informação do número do processo para que pudéssemos ler o que Lara chamara de "petição inicial" e apresentar nossa defesa, com uma coisa denominada "contestação" se a conciliação não fosse bem.

Minha mãe tomou com cuidado as folhas da minha mão, tocando de leve o braço do meu pai para que ele parasse de resmungar entredentes.

— E o que raios vamos fazer nessa conciliação? — Perguntei a Lara, mesmo que tivesse uma vaga noção pelo teor da palavra. Esse seria seu terceiro ano no curso, ela já era capaz de discernir algumas coisas.

— Basicamente tentar chegar a um acordo, para não precisar levar a situação toda ao juiz para decidir. — Respondeu, a própria voz trêmula de irritação.

Se Justin Bieber aparecesse na nossa frente naquele momento, seria bom que estivesse com seguranças.

— Acordo. — Repeti com ironia, era o que estávamos tentando desde que Scooter aparecera com as más notícias, e até o momento eu só havia ganhado dor de cabeça e raiva do sorriso milimétrico maldito daquele canadense topetudo.

— Por ser uma coisa mais formal creio que possa ser diferente. — Lara sugeriu, no intuito de pintar a esperança inexistente.

Bufei ao mesmo tempo que meu pai.

— Deveríamos entrar em contato com o advogado agora ou seguimos para o estúdio e o contatamos depois? — mamãe questionou, franzindo o cenho em dúvida ao reler as palavras transcritas. A conciliação seria dali cinco dias. Cinco dias!

Eu nunca estive em contato com a justiça diretamente, não fui parte em nenhuma espécie de processo, nem mesmo visitei os órgãos que compunham o Poder Judiciário. Minha estreia seria internacional, então. E por um momento, senti uma falta inexplicável da minha pátria. A justiça brasileira podia despertar dúvidas, mas, por algum motivo, me sentia mais confortável em confiar nela do que na dos Estados Unidos. É o que diz o ditado: é melhor lidar com o inimigo conhecido.

Meu pai já havia pensando no assunto, e colocou a mão na base das minhas costas para me incentivar a sair.

— Não podemos deixar esse patife estragar até esse momento. Nossa filha é uma estrela internacional agora, quer ele queira ou não.

Até ele sabia que havia forçado a barra e emitimos risadinhas esquisitas de nervoso e incredulidade. Então, decidido a abraçar a aceitar de uma vez a situação, abraçara meus ombros e dissera afrontoso:

— Pelo menos você vai poder dizer que Justin Bieber te processou. — Animou-se, enxergando satisfação no status de ser capaz de causar incômodo numa estrela gringa.

Mas quando eu pedia para Justin me notar, não era exatamente isso que queria dizer.

Na metade do trajeto, Fani seguiu nosso carro rumo a NBC 4 Southern California, uma das emissoras mais populares do país situada em Los Angeles. Eu mal podia esperar para que contasse à ela a novidade e planejássemos a retaliação a altura. Eu estava começando a deixar de ficar chateada para somente furiosa. Não era um timing muito bom para ser entrevistada, seu nome com certeza seria mencionado, e o que eu mais sentia vontade no momento era botar a boca no trombone para a acusação enfática de sua mesquinhez, egoísmo e grosseria.

Do outro lado da janela do veículo a temperatura exibia 16º graus e um céu nublado, a previsão era de que chovesse a tarde. Bem conveniente com o momento. Discursávamos revoltados sobre a índole duvidosa de Justin, cada um teve a oportunidade de contribuir com uma frase inflamada, às vezes exclamadas ao mesmo tempo.

— Eu te avisei, disse que ele não era homem o bastante, é um moleque! — Meu pai bradou, balançando a cabeça, indignado.

— Bem, para algumas coisas ele é bastante maduro, mas parece que me escolheu para descontar as intempéries da sua vida. Ele passou por maus bocados — admiti, razoável —, só que isso não lhe dá o direito de fazer essa sacanagem comigo!

— Ele vai se arrepender, Ju, relaxa. — Lara garantiu, como se tivesse um plano maquiavélico para varrê-lo da face da terra. O que eu duvidava muito, já que ela não fazia mal nem para uma mosca.

Sob murmúrios indignados, o assunto foi morrendo no campo verbal, mas pelo menos meus pensamentos se direcionavam a maneiras cruéis e diversas de enfiar quatrocentos mil reais no goela dele, seu nariz, ouvidos e rabo. Até chegar à conclusão de que não era uma preparação saudável para minha entrevista televisiva.

Recorri, então, aos meus calmantes ambulantes.

Ju, ele praticamente se jogou de joelhos aos pés dela. — Isis contava rindo sob protestos de Danilo.

Teu nariz! Eu já disse que tropecei.

Ficou tão atrapalhado porque ela é bonita e olhou na sua direção ou ia fazer uma declaração a moda antiga?

Não contive meu riso, Danilo era uma das criaturas mais singulares que eu já conhecera, desastrado, impulsivo e completamente engraçado. Eu e Isis não perdíamos uma oportunidade de rir de suas ações, claro. A ideia de falar com meus melhores amigos, portanto, fora tiro em queda para me distrair de minhas ideias homicidas, após o desabafo bem sincero e energético que eu fizera.

Isis, eu acho que ouvi sua mãe te chamando. — Danilo disse sem disfarçar a intenção de despachá-la da chamada.

Ah tá. Júlia você faz muita falta, agora eu só passo vergonha em público. Te contei que ele arrotou em alto e bom som quando estávamos pedindo nossos lanches no Mc Donald's né? — eu podia visualizá-la de olhos fechados com a mão na testa, desejando ser capaz de apagar o momento — Argh, nunca mais volto lá. — Completou grunhindo, dividida entre rir e repreendê-lo.

Até o próprio Danilo riu disso, mas eu tinha certeza que seu rosto corava de vergonha.

Foi sem querer! — Arquejou entre risos — Eu já pedi desculpas!

Coloquei a mão na barriga já dolorida dos espasmos constantes, sentindo o sangue tomar minha pele do pescoço para cima.

Pelo menos você tem algum pudor agora, hein? — Isis murmurou revoltada.

Gargalhamos pelo que pareceram vários minutos até eu perceber que nos aproximávamos dos portões da emissora. Meu pai abaixava o vidro para se identificar aos seguranças. A alegria da descontração foi consideravelmente abatida pelo nervosismo. A raiva incandescente desviara meu foco da sensação apavorante de aparecer na televisão, mas um pouco mais calma agora, voltara com toda força. Gemi baixinho.

— É isso, galera. Estou chegando. — A frase soou como um claro pedido de socorro.

Isis emitiu um ruído de animação no fundo da garganta.

Júlia, ouça bem: Você não vai elogiá-lo na TV, lute contra essa tendência demoníaca que habita nesse seu corpo! — Danilo admoestou.

Danilo! — Isis e eu protestamos juntas.

Júlia, não diga nada que eu não diria. — Isis recomendou em tom solene.

Isso não é grande coisa, você é uma cadelinha de todas as suas paixões, como você mesma diz. — protestou Danilo.

Tentei reproduzir uma risadinha, que soou mais parecida com um ganido, percebendo meu pai estacionar ao lado do carro cinza. Isis estalou a língua.

Querida, eu tenho certeza que você vai se sair bem. Confio no seu bom senso.

Sim, Júlia, sem neura. Te assistiremos pela internet.

Bom senso? Eu nem sabia dizer o que aquilo significava mais. Saí para o ar gelado fora do carro, forçando minhas pernas a seguirem. Justin tinha que me desestabilizar mais um pouco naquele momento, claro.

— Tudo bem, eu falo com vocês depois. — Reverti mais da minha atenção e energia para agradecê-los — Obrigada.

O complexo de estúdios a minha frente era enorme, vários prédios brancos e cinza espalhados pelo que parecia ser mais uma cidade. Árvores enraizadas por todos os cantos, eu via até mesmo um lago artificial, e bem à nossa esquerda carrinhos de golf enfileirados. Claro, o transporte para percorrer entre os estúdios. Fomos recebidos pela funcionária alta, de cabelo black, sorriso amplo e brilhante e um crachá com seu nome: Angelina. Ela nos recepcionou com um bom humor extraordinário para aquela hora da manhã (oito e meia?), nos encaminhando aos carrinhos brancos. Tivemos que nos dividir em dois.

Reparei no esplendor do trajeto enquanto minha mãe se responsabilizava de responder as perguntas triviais, pensando se enfim conheceria algum famoso simpático.

Vi-me praticamente num estupor ao nos aproximarmos do estúdio do Access Hollywood Live, o programa que me entrevistaria, experimentando as alterações graduais em meu organismo, dentre as quais incluía a boca desagradavelmente seca. Por essa razão tomei água em todos os galões pelos corredores de hospital que passávamos — portas azuis fechadas e plaquinhas identificando sua utilidade — até chegar no que Angelina anunciou como "caracterização".

— Posso ver que vocês já estão arrumados, mas vamos ver se a equipe tem alguma ideia para complementar a produção. — Se justificou, abrindo a porta e indicando que entrássemos.

A sala se assemelhava a um mini salão de beleza, cadeiras giratórias, espelhos quadrados grudados na parede à direita, produtos variados e algumas perucas — sim, perucas.

Nós cinco fomos compelidos a sentar nas cadeiras, revezando pelo número limitado a três pessoas por vez. Meu pai não pareceu muito contente em passar maquiagem, mas não teve muita escolha.

— É por causa da iluminação. — A maquiadora rechonchuda se justificou novamente, levando-o pelo cotovelo e contendo um sorrisinho diante de sua testa vincada.

No meu caso, fiquei bastante satisfeita que trabalhassem em mais uma tentativa de esconder minha espinha na testa, para que eu não parecesse tanto uma versão ruim de unicórnio. E deveria admitir que fizeram um bom trabalho. Retocaram minha maquiagem leve só por precaução, sombra dourada, batom nude, deixando meu cabelo solto e ondulado ao redor dos meus ombros.

Depois fomos conduzidos ao "meu camarim". Júlia Souza, dizia o papel na porta. Lara trocou o olhar de euforia comigo assim que a porta foi aberta. Era bem simples (cof cof, não para mim), compondo apenas o sofá creme de três lugares, mais uma daquelas cadeiras giratórias em frente ao espelho quadrado pregado na parede, TV ligada na NBC 4, e uma fruteira em cima da mesa branca com cachos de uva, banana e maçãs.

— Inacreditável que ele tenha sido o responsável por todo esse sonho começar e esteja se empenhando tanto a pôr o fim. — Fani, encostada na mesa, reprovou ao saber da notificação que recebi, balançando a cabeça em negação com uma careta, depois colocou uma uva na boca. — Mas não se preocupe, Júlia, ele não vai conseguir nada com isso. — Garantiu, lançando-me um olhar confiante e desafiador.

Cruzei minhas pernas como um índio na cadeira, devorando eu mesma o cacho de uva, que era uma das minhas frutas preferidas,— se não a preferida — , e assenti, embora não estivesse tão segura assim.

— Vou mandar uma mensagem bem educada para Scooter e contatar nosso advogado agora mesmo.

Ela digitava no celular quando Angelina bateu na porta para nos buscar. Arregalei os olhos e minha caixa torácica expulsou meu coração para a garganta, que absorveu toda a saliva. Fani colocou a mão em meu ombro.

— Você consegue, Júlia, não tem segredo.

Tentei desenrolar as pernas sem cair de cara no chão e fracassaria se não tivesse sido amparada por minha mãe. Balancei as mãos para expulsar o nervosismo e obriguei meus pés a caminharem. Recebi sorrisos simpáticos dos funcionários que encontrei no caminho, torcendo para que minha retribuição passasse a mensagem correta, já que eu não conseguia sentir meu rosto para dizer ao certo. Alguém que não peguei o nome colocou um microfone pequenino encaixado na minha blusa, recomendando que eu tentasse não esbarrar nele enquanto estivesse no ar. Se eu conseguisse respirar já era lucro, quis dizer.

Expirei quando chegamos à beira da entrada. O cenário me lembrava uma copa sofisticada, lustres elegantes pendurados, sete televisões na parede, uma no centro e três enfileiradas em cada lado — quê? —, mesas coloniais nos cantos sustentando vasos elegantes, e no centro de tudo estava Kit Hoover, a apresentadora do programa, sentada num banquinho alto atrás da mesa de vidro no curioso formato de V invertido.

Kit esbanjava elegância no vestido vermelho de manga longa, acinturado, que terminava na altura de suas coxas, calçava Scarpin na mesma cor. O cabelo castanho de luzes terminava na altura dos ombros levemente ondulado na ponta. Ignorava bravamente a equipe de gravação e os refletores acima de sua cabeça, tão acostumada com o meio que parecia ter nascido ali.

— E agora precisamos falar de uma estrela em ascensão. — Ela mudou de assunto sem que eu notasse qual era o antigo, conversava eloquentemente com as câmeras, como se houvesse algum rosto atento em cada uma delas. — No Brasil, uma jovem fã iniciou sua trajetória profissional sem nem ao menos perceber....

Ai meu Deus, ela estava falando de mim! Senti os sorrisos orgulhosos de minha família e Fani no meu rosto. Eu agarrava o braço de Lara e minha mãe apertava meu ombro como conforto. Desejei ter insistido em levar todos comigo para o palco, mas já estava destinada a sobreviver sozinha essa experiência.

Você consegue, Júlia. Eu já dera entrevistas antes, era só fingir que não havia câmeras me filmando. Quiquei no chão como um lutador de box se preparando para entrar no ringue, ouvindo vagamente suas palavras elogiosas sobre minha pessoa.

— ... e vamos recebê-la para saber sobre essa história mais a fundo. Chega mais, Julia! — Virou a cabeça na minha direção e me chamou com a mão.

Senti vários pares de mãos me empurrando e aproveitei o impulso para seguir, apertando de leve o braço de Lara como se dissesse "me deseje sorte". Kit se levantou do seu banquinho para me dar um beijo no rosto, me direcionando seu sorriso de ocupar quase toda a face. Parecia muito alegre de me ver, o que me deixou brevemente confusa, até me ocorrer que deveria ser uma coisa de apresentadores de TV. Pensando bem, eles sempre se mostravam radiantes em receber seus convidados, numa notável tentativa de empolgar também seu público.

— É um prazer conhecê-la, querida! Sente-se. — Mostrou o banquinho ao lado do seu.

— O prazer é todo meu! — Respondi com a melhor entonação que pude, me içando para alcançar o assento elevado. Minhas pernas ficaram suspensas no ar o que me dava mais uma coisa com a qual me preocupar: não balançar as pernas desvairadamente.

— O que está achando de Los Angeles, Julia? É sua primeira vez aqui? — Indagou.

Acuada e intimidada, era como me sentia. As luzes, pessoas e câmeras voltadas para mim me deixavam incomodada ao extremo. E bem lá no fundo, a sensação de importância. Mesmo sem saber lidar com aquilo, talvez eu fosse relevante para algumas pessoas. Aquele era praticamente o mesmo sentimento começado na ponta dos meus dedos quando autografei livros. Nunca pensei que eu pudesse ser conhecida, nem mesmo tive ganância para tanto, e bem, lá estava eu. Em alguns momentos da minha vida realmente senti aquele temor corriqueiro de não conseguir ser útil, de decepcionar as pessoas com meu futuro. Agora, eu tinha a esperança de ter tomado um rumo.

Com aquela breve e repentina confiança nos ombros eretos, sem perceber, comecei a responder suas perguntas cada vez mais naturalmente, embora ouvisse meu coração martelar nos ouvidos e estivesse paranoica com meu inglês. Tinha a terrível impressão de que devia estar cometendo graves assassinatos contra a língua inglesa, como "mim ser Júlia" e derivados. Misericórdia, Pai.

Seguimos num ritmo agradável de conversa cordial, adentrando sutilmente na minha vida profissional, sem deixar de fora a pergunta mais óbvia e inconveniente no momento:

— E como você teve a ideia para esse livro? Qual foi sua inspiração?

Ela devia muito bem saber a resposta e me obrigar a reforçá-la era cruel, visto que eu deveria manter minha ira sob controle.

— Ah... Eu sempre fui muito fã de um cantor, comecei a ler histórias sobre ele, fanfics, já ouviu falar? — Ela assentiu entusiasmada. Será que eu parecia cínica? — Então decidi eu mesma escrever. Gostei muito da ideia de me compenetrar em uma coisa tão afundo assim, e criar eu mesma um mundo que me servia de refúgio. Até que eu não conseguia mais parar de escrever, carregava o caderno no qual produzia para todos os lados, e quando estava sem ele arranjava uma folha em qualquer lugar para fazê-lo. Fiquei obcecada. — Admiti para seus olhos esverdeados arregalados e breves ruídos de interesse — Acabou que uma das minhas histórias explodiu no fandom e recebi propostas de editoras para lançá-lo. Alterei todos os nomes e coisas do tipo para não infringir direitos autorais e lancei no Brasil. — Frisei a última parte, torcendo para que não transparecesse a acidez que senti na ponta da língua.

— Isso é incrível, Julia. Parabéns! — Gesticulou com simpatia e eu agradeci — O cantor em questão... ? — Esperou-me completar.

Contive um palavrão, ela queria mesmo que eu dissesse o nome dele.

— Justin Bieber. — Forcei um sorriso. Tive certeza de que parecia mais uma careta de alguém com diarreia.

— Ele é mesmo encantador! — Depende para quem, amada, acrescentei mentalmente. — Suponho que sempre foi seu sonho encontrá-lo, não? — Perguntou retoricamente, piscando os longos cílios ainda mais animada.

Apertei as mãos geladas cruzadas no colo.

— Pode-se dizer que sim. — Limitei-me a dizer, me contendo para não olhar para trás e pedir socorro à Fani.

Eles deviam ter conhecimento da matéria no TMZ, não era possível que não tivessem. De fato, eu imaginava que fosse até mesmo o motivo pelo qual sabiam da minha existência a ponto de me convidar para aquela entrevista. Ela queria que eu descrevesse como havia sido nosso primeiro e desastroso encontro? Não podia saber que aquele, na realidade, era nosso segundo embate. Ambos salpicados de rabugice.

— Imagino que sim! E hmm... Ah! Quem é aquele ali? — Ela apontou para algo nas minhas costas, imaginei que fosse meu pai entrando para me resgatar.

Assim que segui seu dedo com meus olhos, entretanto, meu queixo caiu, literalmente. Descrente, observei Justin Bieber entrar, segurando um buque de rosas na mão de um modo que me lembrou muito o cavalo de Troia, arqueou uma sobrancelha para mim e algo quase parecido com um sorriso repuxava seus lábios.

— Surpresa! — Kit exclamou de alegria.

Mas que diabos...... ?!

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