Capítulo 7: Assustada

Passava das seis da noite e a jovem ainda dormia. Ela entrou em hibernação? Por que não acordou? Estranho, tal enredo não fazia parte da história principal. Não. Isso nunca aconteceu no livro.

Irmão Yang abruptamente se ergueu, parecia cansado, mas assim como eu não se retiraria. Apenas ficamos, velando o sono dela. A observando silenciosos, como se isso fosse ocasionar seu despertar.

— Pegarei alguns lençóis para passarmos a noite. — Foi suas primeiras palavras em horas.

— Tudo bem.

Irmão Yang se levantou da cadeira, que tomara ao lado da cabeceira de Irmã Yue e se retirou, quieto, do recinto. Assim que saiu, soltei um suspiro exasperado, um misto de preocupação e estranhamento se enovelava em meu estomago e criava uma bola que dificultava a minha respiração. Eu sentia tal coisa, pois tudo me era familiar.

Perdi minha mãe assim. Num dia bem, no outro passou mal e foi ao hospital. Ela não voltou de lá, pois tivera uma complicação em relação a diabetes, o que ocasionou um AVC e sua morte súbita. Num lapso de memória, revivi o luto, a tristeza sem fim, a melancolia fria que me fez companhia após a morte de minha mãe, quando ela se foi e eu fiquei sozinho.

A solidão é um sentimento engraçado, é como um nevoeiro que te engloba, não há nada no entorno, só aquela eterna sensação de desorientação.

Esfreguei os olhos numa tentativa de afastar o véu do passado e escrutinei a pequena jovem que se mexia, afastando os lençóis do seu entorno. Espera. Se mexia? Ergui-me de minha cadeira e corri para a lateral do leito.

— Irmã Yue?

Não houve resposta, entretanto a garota continuava a se movimentar, espreguiçou-se.

— Irmã Yue?

Houve um bocejar e seus olhos negros se abriram. Subitamente, ela paralisou. Arqueou as sobrancelhas, ela transferiu a sua atenção para o meu rosto. Algo como descrença pintou suas feições. Estranho, já vira isto antes, porém em meu próprio rosto quando transmigrei.

Um alarme soou alto e potente em minha cabeça.

— Irmã Yue?

Não houve resposta. A pessoa a minha frente esfregou com força os olhos, sua boca gradualmente se abriu:

— Do que me chamou? Espera. Por que minha voz... ? — Mão contra a garganta. — Não. Não. Não pode ser.

Saltou da cama num movimento brusco, afastou as cortinas que circundavam o seu leito e começou a olhar para a enfermaria com um pânico crescente, boca aberta em surpresa mesclado ao medo. A segui, assustado. Acreditei que fugiria como uma louca em direção ao um destino desconhecido, entretanto estava parada perante um espelho que eu nem notara que estava ali. Seus olhos escuros analisavam o reflexo e pareciam cintilar com ainda mais descrença.

— O que é isso? Alguma brincadeira? — apontou para seu próprio reflexo e por uma fração de segundos pareceu estar muito brava. — Você fez isso, não foi? Vou processá-lo! Pode acreditar!

Suas mãos rapidamente se fecharam entorno da lapela de minha vestimenta.

— Por que você se parece com ele? É algum fã maluco? Quantas plásticas você fez? Por que fez isso comigo? Acabarei com você no tribunal e farei com que fique 1000 anos na cadeia, seu miserável!!!!!

Franzi o cenho, ela falou como uma pessoa moderna falaria. Engoli em seco, mas que loucura era aquela? Uma não foi o bastante e agora vinha outra? Puxei o ar com dificuldade, em razão do pouco espaço deixado por suas mãos delicadas que ainda apertavam as roupas no entorno na minha garganta.

— Acredito que não seja a Irmã Yue. — minha voz soou esganiçada.

— É claro que não sou seu idiota! Eu sou Alberta Chang. Ao menos era e agora... Agora ligarei para a polícia e vou te denunciar!

A ex-irmã Yue começou a tatear o corpo em busca do aparelho. Alberta Chang? Espera, esse não era o nome da autora do livro "Dois Mundos a Manter"?! Como a autora foi puxada para a própria obra?!

— Assim que encontrar a porcaria daquele celular! — disse com a voz carregada de indignação.

Ela cruzou a enfermaria revirando o catre em que esteve, depois as cadeiras, olhou para baixo de sua cama e depois voltou pisando duro.

— Cadê meu celular, seu sacana?! Vou fazer espetinho de você, se não me dizer!

Estremeci com um leve receio, céus aquela mulher era assustadora. 

— Acha que estou brincando? — ela me deu um tapa na cara.

Minha bochecha ardeu em reclamação, esfreguei a região atingida e a encarei enraivado, pouco me importando se cortava sua fala, rugi para ela:

— Para de enlouquecer, desgraça! Você transmigrou! Ok? Transmigrou para dentro do seu próprio livro! 

A ex-irmã Yue me encarou, rosto pequeno e oval ficou vermelho, olhos se arregalou. Voltou a apontar o dedo indicador na minha cara e abriu a boca, possivelmente para me xingar, quando realizei um sinal e a espada deixou a bainha e se jogou contra a parede da enfermaria, sua lâmina brilhou em azul, embebida em qi como se chamas lhe lambesse o fio. Se chocou contra a parede em tela de madeira, cortou uma boa quantidade da floresta em bambu que crescia atrás da enfermaria e iria mais longe, porém mandei que retornasse. A lâmina deu a volta em pleno ar, retornando em velocidade da luz para o interior da bainha de madeira, como se nunca tivesse saído dali.

— Isso é o bastante? Ou quer que eu efetue outra demonstração? — inqueri, me curvando para a encarar. 

Ela se encolheu em resposta. Percebi uma sutil tremedeira em seus lábios, só nessa hora notei que me temia. Um passo atrás, medo lhe encheu o rosto. "Essa é a expressão que adoro ver nos rostos das pessoas, medo é melhor que nojo". Sacudi a cabeça, de onde vinha aqueles pensamentos? Eu estava enlouquecendo? Sem perceber comecei a morder a unha do polegar.

— Você me entregará, Shun Xuě? — a voz dela rompeu meus pensamentos sobre alguma espécie de maldição que eu podia estar sofrendo.

A encarei e quase gargalhei, seu pânico era cômico aos meus olhos. Dei um tabefe na testa.

— Eu? Tá com medinho de mim? O grande vilão sanguinário? Não tenha, eu não sou o vilão. Ele tá morto. Literalmente, morto.

A ex-irmã Yue piscou os olhos, parecia processar o que eu disse. Uma luz tremeluziu nos contornos de sua expressão.

— Então, você é um transmigrado?

— Sim.

— Qual o seu nome?

Sorri de leve.

— Guilherme Antunes.

— Acho que já sabe o meu nome, mas vou repetir, sou a Alberta Chang!

Nos encaramos carrancudos e sérios, no instante seguinte, nós dois rimos, talvez rimos de nossa própria desgraça, seja como for, gargalhamos até a barriga doer. Tomamos ar e eu conduzi Alberta até a cama, ela tinha as pernas fracas e parecia terrivelmente pálida.

— Mas que grandes azarados, nós somos, não é? — ela passou a mão pelo rosto. — Ainda não consigo acreditar.

— É, eu ainda tenho esperanças de conseguir voltar para casa, quando durmo a noite. Julgo que logo, desistirei, já que não tenho para o quê voltar.

Alberta sacudiu a cabeça.

— Também, não tenho nada para voltar. Minha avó morreu, então tecnicamente, eu estou sozinha. — ela puxou os lençóis brancos por sobre as pernas.

— Eu sinto muito. — falei com toda a sinceridade.

— É. — ela deu de ombros, triste. 

— Como você  morreu? — inqueri curioso.

— Parada cardíaca, eu acho. Só senti uma dor aleatória no peito e puf. Acordei aqui! E você?

— Tropecei nos degraus da escada e morri. Embora, ainda sigo confiante que eu só tenha ficado em coma e tudo isso aqui é uma alucinação ou alguma EQM (Experiência Quase Morte). Uma bem longa... 

— Ter esperança nunca é demais. — ela deu de ombros. — Quando você morreu?

— 13 de Outubro de 2017.

— 13 de Outubro! Sinistro, eu morri na mesma data só que 20 anos depois.

— 20 anos? Em 2037? - inqueri alarmado, mas que loucura era essa?!

— Exato.

Fiquei abismado e boquiaberto, isso só podia ser uma piada! Esperei pelas risadas, mas não veio, ela estava séria quando disse cada palavra e se mantia séria. O que isso queria dizer? Que estou morto há 20 anos? Minha garganta se apertou, encarei minhas mãos e aquele corpo tinha 18 anos... Será que era possivel que não fosse um livro e sim um mundo paralelo e essa fosse minha encarnação atual? Fazia sentindo, isso explicava as memórias do meu passado como Guilherme que se tornavam mais apagadas a cada dia, até o nome Guilherme soava vazio, como um nome sem significado.

Contudo, se é isso então porque subitamente recordei o meu "passado"? Qual era o sentido de até ver a minha morte e ler aquele livro que praticamente narrava sobre esse mundo? Qual era a razão da minha presença ali?

Não. Eu posso estar pensando demais.

— Pelo menos, isso será divertido. - sua boca se esticou num sorriso. - Estamos dentro de um livro ou mundo paralelo, tipo o dorama "W: Two Worlds". De qualquer forma, vamos viver felizes e longe da treta que rolou no mundo de 2037.

— E o que aconteceu?

Ela deu um sorriso triste.

— Humanos raramente conseguem viver em harmonia. — sacudiu a cabeça, porém não completou sua fala.

De repente, a porta da enfermaria se abriu, fiz uma cara de paisagem. Irmão Yang deslizou seu olhar de mim para a garota sentada. 

— Irmã Yue! — ele trazia consigo dois pares de lençóis e almofadas.

— Eita, que gostoso! — falou a escritora, lhe dei um cutucão e esbugalhei os olhos, "se comporta, desgraça ou vão descobri!". Ela deu de ombros. — O quê? Eu tenho olhos.

— Irmã Yue? — Irmão Yang parecia assustado.

— Não é nada. — Irmã Yue respondeu de imediato. — Só me alegro em lhe ver, Irmão Yang.

Ela deu um sorriso safado, em resposta lhe joguei a coberta por sobre a cabeça. 

— Ela precisa dormir, a febre tá deixando ela estranha. — dei de ombros.

— Devo chamar o médico? — perguntou Irmão Yang, preocupado.

— Não. Ela ficará bem. Vamos dormir?

Arrumamos as cobertas e tomamos os catres vazios como nossas camas improvisadas. Depois que retirei as botas de couro, me joguei e me estiquei na cama. Irmão Yang se sentou sobre o fino colchão do catre, seus olhos pretos focavam o meu rosto no escuro.

— Ela me assustou. — comentou num sussurro.

Me virei para o encarar.

— Eu sei, também fiquei assustado.

— Não quero perdê-los. Você e a irmã Yue. Sei que muitas vezes não nos damos bem, mas ainda o considero muito.

"Suas mentiras me enojam!". Meu estomago embrulhou em sincronia com o pensamento. Forcei aquilo para longe.

— Você tem raiva de mim? — ele perguntou subitamente.

— Não. Só o invejo. — admiti numa meia voz. Me virei na cama, encarando o teto, mãos atrás da cabeça.

— Me inveja? Eu que o invejo! Acha que treino tanto por quê? — retorquiu, ouvi o ranger da sua cama, ele se deitara, deduzi.

— Nunca será tão bom com uma espada como eu, porém eu nunca serei humano como você. — concluí, puxando o lençol por sobre o corpo.

Silêncio. Ele se mexeu no catre, virando as costas para mim.

— Isso não muda o fato que somos família e sempre seremos.

A conversa terminou, suas palavras foram bonitas, não obstante, insinceras. O tempo passaria, nossos caminhos fatalmente se separariam e no fim seriamos inimigos mortais, dispostos a matar um ao outro como se nada fossemos. Isso era irremediável? Ou eu conseguiria mudar tal destino? Nossos atos realmente formam nosso futuro? Ou tudo sempre fora decidido e imutável?

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