CAPÍTULO UM
A enfermeira Andressa andava pelo corredor de piso antiderrapante da clínica geriátrica Paraíso, de Santa Catarina, com uma pequena bandeja metálica, onde um copo descartável repousava no meio. Parou diante da porta 163, arrumou o cabelo para trás da orelha, colocando seu melhor sorriso nos lábios. Bateu de leve à porta, antes de entrar, pois sabia bem que o senhor Menske era exigente com as formalidades e, sendo um dos mais cativantes pacientes, não tinha trabalho nenhum para cuidá-lo dentro dos padrões.
Abriu a porta delicadamente, vendo logo o bom homem sentado em sua poltrona preferida, uma peça em elegantes tons de bordô; ali, parecendo imerso em uma aura impassível, contemplava a paisagem através da janela, por trás das lentes retangulares de seu óculos de aros de metal prateado, um companheiro inseparável e de longa data. Nas mãos graciosamente enrugadas pelas escultoras mãos do mais velho tempo, entre os dedos grossos, pairava um livro de capa estruturada em estética clássica, provavelmente um remanescente de meados do século passado. Andressa quase pensou em dar meia-volta, vendo aquela cena digna de ser emoldurada pela arte de seu próprio silêncio.
E mesmo com seus oitenta e cinco anos, seu paciente irradiava uma rara jovialidade, sem ainda perder a serenidade no emblemático olhar, marcado por pés de galinha que, paradoxalmente, davam-no um ar mais infante, cálido e docemente sorridente, quase como de uma inocente criança que muito já brincou.
Enfim, ela arriscou:
— Boa tarde, seu Balthazar? Incomodo sua leitura? Provavelmente... — Deixou a pequena bandeja metalizada à cômoda, aproximando-se de seu paciente e se acomodando na outra poltrona ao seu lado.
— Não, minha querida. Estava somente passando os olhos pela mesma leitura. Sua presença enche o ar com seu delicado perfume. — Ele ergueu a cabeça para melhor olhá-la dentro dos olhos. — Seja bem-vinda.
Vendo o sorriso recíproco de sua fiel enfermeira, ele soltou o livro vermelho e apoiou os óculos por cima deste, na mesinha que o separava da clássica janela guilhotina, por onde vazava respingos do manso clarão azulado das cinco da tarde. Via-se ainda, como decoração, uma foto antiga dele enquanto menino, junto de sua mãe e, ao lado dela, um bibelô muito antigo de vidro escamado, que com certeza pertencia à memória da família.
Ela olhou em silêncio a ação lenta do idoso e como por instinto, trouxe às mãos a moldura em madeira talhada, correndo os dedos suavemente sob a fotografia desbotada pela ação inevitável de outro velho artista da vida que o senhor tinha muita intimidade.
Perguntou-lhe, agora, com um olhar inquisidor:
— Não havia visto este porta-retrato antes, seu Balthazar. Este menino é o senhor com sua mãe?
— Sim, somos nós. Eu tinha cerca de dez anos. Estava feliz nesta foto. Dá para perceber... Nesta data, minha querida mãe havia me levado a uma festa de aniversário de um primo. Me lembro bem disso, pois foi nesta época que conheci uma certa menina...
Andressa, atenta, não ousou interrompê-lo.
— ... Ela era um pouco mais velha e depois daquele dia, minha vida mudou para sempre.
Ao dizer as últimas palavras, se calou; o olhar agora mais vago e distante, como se hipnotizado por uma correnteza de nostalgia, ecos e ondas que apenas ele poderia compreender. Isso fez com que apenas coçasse a pulga de curiosidade na cuca de sua companheira, cinquenta anos mais nova, que não se conteve:
— E o senhor se importaria de me contar, seu Balthazar?
— É uma longa história. Tão antiga quanto este velho, mas tão fresca quanto uma amoreira carregada de frutos que explodem e pintam os lábios de uma criança curiosa. — Sorriu, com sua deliciosa analogia — Quer perder seu tempo me ouvindo?
— Pois me parece que eu estaria ganhando tempo te ouvindo, seu Baltazar. Mas antes, preciso dar seu remédio, está bem?
Levantou-se de um pulo, animada com a ideia. Preparou um copo de água sobre um pires de fundo jade; ao lado, um pouco próximo a saliência da borda, os dois comprimidos azuis repousavam. Voltou-se para ele e, com ternura, alcançou o objeto comportando a água ao homem, encerrando um ritual bem conhecido. Ambos sabiam o quão imprescindível eram aqueles fármacos para o tratamento de controle de seu mal de Parkinson, recém descoberto.
Andressa servia aos residentes do local há cerca de cinco anos e, em nenhum dia sequer esqueceu-se de vibrar pela saúde de cada um, pois ali, para além dos parâmetros e ditames profissionais, sentia-se como uma neta, como uma filha, tendo perdido o avô para um câncer agressivo e morando distante dos pais. E era exatamente nisso que ela sempre pensava ao observar aquele homem tomando os comprimidos, um de cada vez. Seu coração aquecia-se genuinamente.
Algum tempo depois, pegou o copo já vazio, depositando-o sobre a cômoda e sentando-se novamente na poltrona.
— Quando o senhor se cansar, faremos uma pausa e retomaremos no dia seguinte, está bem? — Sorriu.
Ele assentiu, se recostando na poltrona. Lançou mais uma olhadela naquele céu melancólico de fim de tarde. Respirou fundo, fechou os olhos como se meditasse por um breve período e soltou um longo e saudoso suspiro, olhando-a, agora focado:
— Você sabe por que gosto tanto de olhar pela janela, senhorita Andressa?
— Porque dá para o jardim?
Ele assentiu, sorrindo.
— Tudo que eu disser, faz parte do meu passado e como bem sabes, minha memória já não é a mesma ou posso até inventar alguns episódios, por conta da velhice.
— O senhor não é tão velho assim e sei que sua memória é muito boa, seu Balthazar.
— Minha querida... És uma ótima enfermeira, viu? Mas assim eu fico mimado feito um adolescente! — Riu da piada, sendo seguido por ela.
Continuou pigarreando e recomposto:
— Esteja preparada para ouvir o que eu vou lhe contar, sem a obrigação de acreditar. Estamos certos? — Riu.
Ela apenas sorriu, se acomodando melhor, para ouvir o que ele tinha para dizer.
— Foi há muitos anos atrás. Onde as pessoas se cumprimentavam na rua e as crianças podiam brincar livremente. — Suspirou. — Tudo começou num sábado, quando estávamos indo para a festa de aniversário. Eu usava meu melhor sapato lustrado e minha mãe fez questão de usar suas luvas de renda.
— Devia ser lindo morar naquela época. As mulheres se vestiam lindamente.
— Sim, de fato. Minha mãe sempre foi muito vaidosa. Mesmo sendo dona de casa, estava sempre com o cabelo preso numa presilha de madrepérolas do lado dos cabelos negros. Ela falava que era herança de família para quem perguntasse e eu achava minha mãe a mulher mais elegante do mundo! — Suspirou, ajeitando os óculos.
— Pela foto, ela era uma mulher muito elegante, mesmo. E como elas sofriam e ainda sofremos, apesar de tudo. — Acrescentou.
Ele continuou em seguida, com o olhar perdido lá fora:
— Era muito elegante e gentil. Mas, vou contar sobre minha amiga, como havia prometido. Ela me disse que seu nome era Lili e que seríamos amigos inseparáveis. Foi nesta mesma ocasião que eu a conheci. Ela tinha os cabelos castanhos e cacheados e seus olhos eram um verde escuro, que às vezes me pareciam avelãs e em seguida, como figos verdes. Com o passar do tempo fui notar que eles mudavam conforme o estado de espírito dela. — Riu. — Era uma menina muito bonita e se vestia de forma graciosa, num vestido rendado azul e um laço de cetim branco, preso nos cabelos.
Ele deu uma pausa, fechando os olhos e suspirando longamente.
Andressa, visivelmente preocupada, já que certas lembranças poderiam acelerar seus batimentos cardíacos e acabar adoecendo, perguntou-lhe:
— O senhor quer uma pausa, seu Balthazar?
— Está tudo bem, minha querida. — Sorriu. — Foi a memória que me presenteou com boas recordações. Como havia dito, era aniversário de dez anos de meu primo e a festa seria no quintal da família com direito a balões coloridos, muitas guloseimas e dois palhaços contratados para distrair as crianças. Naquele tempo, as mulheres ficavam no interior da casa, tomando chá e abrindo os presentes. Raramente iam os homens nestas festas, pois não caia bem um homem entre senhoras e crianças.
— Acho que até hoje, os homens não gostam muito de aniversário de criança, seu Balthazar. — Abriu um sorriso delicado.
Levantou-se, pegou uma manta dobrada aos pés da cama e cobriu as pernas no senhor, voltando a se sentar.
— E assim foi como tudo começou...
"Eu sempre fui muito tímido e não me sentia muito à vontade, já que a maioria eram primos pequenos e crianças que não conhecia. Então me afastei um pouco da algazarra e sentei em um dos balanços que havia no quintal e fiquei observando de longe a dupla de palhaços com truques de mágica. Eu sempre fui solitário desde aquela época. Eu estava assim, distraído com a movimentação, quando ouvi a voz de uma menina, vindo próximo das árvores.
— Palhaços fazendo mágica? Isso nunca daria certo! Você não acha?
Levantei do balanço, virando na direção daquela voz e vi ela parada, sorrindo pra mim e era um lindo sorriso. Logo pensei que ela deveria ser uma das convidadas, já que havia muita gente que não conhecia. Portanto, nem desconfiei o motivo dela sair de trás de uma árvore.
A primeira coisa que pensei foi que, como eu, não queria ficar entre a agitação da festa.
— Quem é você? E o que estava fazendo lá nas árvores?
— E isto importa, garoto? Eu sempre estive aqui. Você é que não me viu.
— Qual é seu nome? O meu é Balthazar.
— Pode me chamar de Lili.
— Prazer, Lili.
— E por que não está lá na festa com as outras crianças?
Enquanto falava, foi na direção do balanço, se sentando graciosamente.
— Pelo mesmo motivo que você. Não gosto de barulho.
— Mas eu não sou uma convidada, garoto!
Imagine a minha cara abismada e confusa quando ela me disse aquilo. Mesmo ricamente vestida para uma festa, ela não era convidada. Para mim, era muito esquisito.
— Nem adianta ficar com essa cara de sapo assado!
— E lá você sabe como é a cara de um sapo assado, garota? Eu, hein!
— Mas é muito embasbacado mesmo! — Riu.
Foi neste momento que percebi minha mãe se aproximando de onde estávamos, com um prato de docinhos na mão e sorrindo pra mim:
— Meu pequeno? O que estás fazendo aqui, tão sozinho? Não estás se divertindo, não?
"Sozinho? E a garota do meu lado?" — Pensei, sem entender.
— Mas, mãe! Eu não tô sozinho! Eu tô com ela! — Apontei na direção da menina.
Minha mãe olhou curiosa, para todas as direções, procurando a menina e como não a encontrou, virou para mim, enrugando a testa.
— Ela quem, menino?
— A menina do balanço, mamãe.
— Mas que menina, filho? Ela deve ter voltado pra festa. Venha. Pegue estes docinhos.
Olhei para a garota, que se embalava, agitando a fita no cabelo, alheia ao que minha mãe dizia. Fiquei sem entender nada e pensei ser alguma brincadeira de minha mãe, dizendo não a ver, só pra me fazer rir. Coisa que ela nunca faria numa festa.
— E então, Balthazar! Que brincadeira é essa?
Minha mãe estava com um olhar enfezado e eu sabia que não era brincadeira. Pisquei várias vezes em súplica para que ela falasse alguma coisa e nada. Continuou se embalando e se divertindo às minhas custas. Aquilo tudo não fazia sentido algum! Eu achei melhor nem insistir, baixando os olhos e peguei os docinhos.
— Meu filho, daqui a pouco vamos voltar para casa, está bem? Coma estes docinhos e não se demore.
— Está bem, mamãe... — Virei na direção de Lili, sentando no balanço ao seu lado.
— Diga que sou sua amiga imaginária, Balt. Não fique assim.
Ela parou o balanço e veio até mim, me abraçando. Era um pouco maior que eu e vinha um perfume suave e almiscarado dela, mas eu não conseguia decifrar o que era. Só sabia que era bom de sentir. O abraço dela foi como se plumas macias tivesse me envolvido e uma sensação de paz penetrou em minha alma.
— Ela é uma amiga imaginária, mamãe.
— Amiga imaginária?! Do que você está falando, Balthazar? Quer ficar de castigo?
Nunca vi minha mãe elevar a voz daquela forma e me senti confuso, sem compreender o que estava acontecendo. Não entendia o que acabara de acontecer e um sentimento de frustração foi crescendo dentro de mim.
— Não fique assim. Apenas sorria pra sua mãe. Não vai adiantar ficar teimando.
Seu sorriso era apaziguador e ter uma amiga imaginária parecia a melhor coisa que tinha me acontecido.
— Era brincadeira, mamãe. Me desculpa?
— Tudo bem, mas nunca mais brinque assim. Sei que crianças gostam de ter amiguinhos imaginários, mas não faça isso na rua. Não é de bom tom! Estamos entendidos?
— Sim, senhora.
Aquilo me assustou um pouco, mas aos poucos, fui aceitando a ideia, já que fazia mais sentido, dentro daquela loucura toda.
— Está certo, então! Agora termine de comer e não se suje. Logo partiremos para casa, querido — Disse minha mãe, dando meia volta e indo de volta para o interior da casa.
Olhei na direção da Lili e sorrimos cúmplices. Não fazia ideia, mas a partir daquele dia, nunca mais nos separamos..."
— Eu tinha vários amigos imaginários quando era mais pequeno, mas na minha idade, poderiam achar que eu tinha algum problema de saúde da cabeça, como se dizia na época. Então era mais fácil aceitar tudo em segredo, até que ela desaparecesse como os demais amiguinhos. Mas, uma garota tão real como ela, era a primeira vez e eu estava gostando de ter uma amiga que pudesse conversar a qualquer hora.
Andressa sorriu ao ouvir até ali. Sabia que estava na hora dele repousar e levantou-se para cobri-lo até os ombros.
— Amanhã a gente continua, seu Balthazar. Está na hora do seu descanso, está bem?
Ele afirmou com o olhar plácido, fechando-os em seguida.
(2281 palavras)
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