CAPÍTULO QUATRO

      Assim que findou o dia, Balthazar encontrava-se em seu quarto, sentado na poltrona, com a manta nos joelhos, observando o céu alaranjado. Seu semblante era de uma paz imperturbável e sabia que logo a jovem estaria ali, para escutar suas memórias.

No instante em que ouviu as batidas na porta, sabia que se tratava de Andressa. Gostaria de ter sido pai de uma moça tão dedicada como ela, mas infelizmente seu destino não foi gentil com ele. O único filho vivia na Europa e, fora pagar sua hospedagem ali, mandava algumas mensagens e raras aparições em vídeo. Visitá-lo parecia algo impraticável, mas Balthazar não nutria nenhum sentimento que não fosse um amor incondicional pelo filho.

— Com licença, Seu Balthazar? Boa noite?

— Boa noite, querida. Entre, por favor! Estava à sua espera.

Ela se aproximou da cômoda, depositando a jarra de água e um copo limpo. Foi até ele, ajeitando sua manta.

— Eu vim, como o prometido. — Sorriu, sentando na outra poltrona.

— O que a leva querer ouvir um velho como eu?

— Primeiro que não o vejo dessa forma. Gosto de ouvir boas histórias e lembranças dos hóspedes. Me faz querer a mesma felicidade. Eu não conheci meus pais, Seu Balthazar e desde nova, tive que trabalhar e estudar. Poder sentar e escutar suas recordações, me fazem vivenciá-las, como um bom livro.

Ele tinha vontade de dizer algo amável, mas preferiu se manter calado, não queria parecer um intruso, ao passo que ela sorriu, como se compreendesse. Havia uma amizade muito forte entre eles.

— Estou pronta para ouvir suas aventuras com a amiga imaginária.

— E que aventuras! Nem queira saber o quanto aquela garota me colocou em maus lençóis!

Riram juntos, antes que ele desse início aquela nova recordação de sua amiga Lili.

Andressa percebeu que ele olhou a noite já estrelada e por um segundo, teve a impressão que ele iria chorar. Tinha um sorriso sereno nos lábios, mas achou ser pelas emoções aflorando.

— Eu vou contar de onde parei, sim?

— Esteja à vontade, Seu Balthazar. Não se apresse, pois tenho bastante tempo livre. — Sorriu.

— Pois bem. — Se ajeitou na poltrona. — Eu lembro que tinha uns quinze anos na época, quando aconteceu algo inusitado. E, senhorita Andressa, foi um dia realmente inusitado!

— Pois me conte tudo, Seu Balthazar. Já estou curiosa!

E assim, olhando o mundo pela janela, relembrando aquela manhã na escola, começou a contar:

"Eu estava indo no banheiro, durante o intervalo de uma aula para a outra. Era a única vez que podíamos usar o sanitário e mesmo assim, não era permitido demorar mais que alguns minutos. Portanto, saí correndo e sem perceber, esbarrei em um dos garotos mais velhos, que deveria estar um ano de ensino adiantado, mas sua capacidade intelectual não era sua prioridade e sim, realizar flexões nos recreios e se exibir para as garotas. Isto, quando não estava amedrontando os mais fracos e menores que ele, sempre em companhia de um outro tão covarde quanto os que apanhavam dele.

Pois bem! Foi exatamente nele que esbarrei no corredor, indo em direção ao banheiro masculino. Podia ser em qualquer ser humano na face da Terra ou até em um dos inspetores da escola que cuidavam para não ter ninguém fora das aulas. Mas foi no Domingos, o valentão.

— Perdão! Com licença!

Foi a única coisa que pensei em dizer, já que a vontade de usar o sanitário era maior que meu medo de apanhar.

— Como é, baixinho? Como ousa bater em meu ombro e achar que pode sair impune?

Senti um calor subir pelo meu rosto e queimar minhas orelhas. Já estava vendo meu nariz quebrado e sangrando, mas minha bexiga me fez sair correndo feito um desatinado atrás do vaso sanitário, sem dar atenção ao garoto já de punhos fechados.

No instante em que cheguei no banheiro, corri para uma das portinholas e me aliviei, sabendo que em seguida estaria estirado no chão, morto. Só quando terminei e fechei o zíper das calças colegiais, é que vi ele ali parado, bem na porta de saída.

— E agora, sabichão? — Cruzou os braços e se posicionando para barrar minha saída.

— Olha. Eu não vi você... Eu não prestei atenção e pedi desculpas... eu não tive tempo de desviar e... — Gaguejava.

— Vais ficar gaguejando, otário? Como acha que tá bem grandinho pra gaguejar feito um bebezinho?

Minhas pernas ficaram bambas quando percebi que ele vinha se aproximando, me encurralando contra as pias.

— Eu já pedi desculpas, Domingos!

— É pouco, sua mariquinha! Vais levar umas bifas na fuça sardenta, pra aprender a respeitar os mais velhos!

Ele veio com tudo pra cima de mim, me empurrando com toda a força, me fazendo bater as costas contra o balcão de mármore. Senti uma dor latejante subir pela espinha, me fazendo encolher de dor.

Ele levantou a mão com o punho fechado e neste momento, um barulho estrondoso surgiu atrás de nós. A porta que dava para o corredor, bateu com tanta força, que mais parecia um vendaval ou alguém muito forte tinha batido com ela.

Ele abaixou o braço no instante que me daria um soco, achando que algum dos fiscais tinha ouvido a conversa e com medo, se afastou de mim, para verificar quem poderia ter batido com tanta força.

Me encolhi todo, agradecendo a Deus por ter trazido um dos temidos fiscais. Nunca tinha ficado tão feliz de ter sido pego por um deles. Me virei em direção aos espelhos, para molhar meu rosto, que queimava de tanto pavor, em uma das torneiras. Para meu assombro, lá estava ela, dando risada de toda aquela situação.

— Foi tão engraçado a sua cara de medo!

— Engraçado porque não é você no meu lugar, né?

Abaixei a cabeça, para passar as mãos molhadas e esconder as lágrimas que desciam. Eu sabia bem que ele não iria me deixar em paz até me arrancar sangue.

— Não fique assim, Balt. Ele não vai bater em você, está bem? — Senti um calor morno no ombro. Sabia que era a mão dela me tocando.

— Eu voltei, florzinha! Não tinha ninguém no corredor e não sei como a porta bateu daquele jeito! Mas nada vai me impedir de quebrar sua cara, pelo atrevimento!

Lili, com as mãos na cintura, enrugou as sobrancelhas e bateu o pé, contrariada:

— Mas que cara de fuinha mais chato! Não adiantou em nada bater a porta!

Eu não sabia se prestava atenção no garoto que voltava na minha direção ou em Lili, que esbravejava. Eu não conseguia respirar com toda aquela situação e saber que ela podia bater em coisas sólidas, me assustou mais que desejava.

"Amigos imaginários não são mais que nossa imaginação fértil. Então... Como ela fez aquilo?" — Pensei.

Olhei na direção dela, com assombro nos olhos, os arregalando o mais que pude e murmurei para ele:

— Tem um homem nos encarando, agora.

Ele parou e me puxou pela camisa, já assustado.

— Que lorota é esta, pirralho? — Berrou.

— É sério. Tem um homem enorme com uma foice, nos olhando!

Ele me largou com violência, olhando para o teto e em todas as direções, completamente apavorado. Olhou em minha direção, saindo do banheiro sem olhar pra trás.

— Homem enorme com uma foice? Eu agora virei um personagem de filme de terror?

— Foi o que deu pra improvisar! Deu certo, não é?

Caímos na risada juntos.

— Agora você terá de enfrentar um homem enorme e de régua na mão, cara de sapo! — Ria.

— Meu Deus! O professor de matemática!

Saí correndo em direção à sala de aula, sabendo que receberia uma advertência para levar aos pais, mas valeu a pena, já que fui salvo por um triz de parar no hospital. Eu até havia esquecido completamente o caso da porta e nunca mais Domingos me importunou. Sempre que me via, desviava o caminho e não me encarou mais."

     — Por esta eu não esperava! Mas foi ela mesmo que bateu a porta ou algum aluno o fez para ajudá-lo?

— Nunca soube com certeza e naquele tempo, eu não me preocupei muito. Acho que agora, sei exatamente o que aconteceu, mas isto ficará para uma próxima vez. — Sorriu.

Ela olhou no relógio, percebendo que já estava na hora de se despedir do gentil homem.

— Está na hora do senhor ir repousar, Seu Balthazar.

— Ficarei só mais alguns instantes, lendo um capítulo e prometo me recolher aos braços de Morpheus.

— Já sei que presente lhe dar em seu aniversário. Um livro! — Sorriu, antes de ir em direção à porta. — Boa noite, Seu Balthazar. Obrigada por me proporcionar mais um pouco de suas memórias. Me sinto honrada.

— A honra é toda minha, querida. Boa noite.

No momento em que se viu sozinho, sorriu, olhando a lua que iluminava todo o seu rosto.

— Foi um dia e tanto aquele, não é mesmo, Lili?

Voltou sua atenção para a leitura, deixando-se levar pelas aventuras da protagonista.

(1473 palavras)



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