Capítulo 7

Endireitei o pescoço. A dor me trespassou enquanto eu me ajeitava com lentidão e piscava para afastar o sono. Esfreguei os músculos doloridos, tentando relaxá-los.

– Ai.

JJ tirou uma mão do volante e a esticou, massageando meu pescoço com os dedos fortes.

– Você está bem?

– Estou. Devo ter dormido torta. – Endireitei-me no banco, checando os arredores, tentando não me deleitar muito com a massagem. Porque ele era bom demais com as mãos. O senhor Dedos Mágicos submeteu meus músculos a um tipo de normalidade com aparente pouco esforço. Não dava para resistir. Impossível. Então, em vez de tentar, deixei escapar um gemido e permiti que ele prosseguisse.

Estar meio dormindo era minha única desculpa.

O sol estava começando a nascer. Árvores altas e frondosas passavam apressadas no acostamento. Ao sairmos de L.A., ficamos presos num trânsito jamais visto por uma garota de Portland como eu. Apesar de todas as minhas boas intenções, não conversamos. Paramos, compramos alguma coisa para comer e abastecemos o carro. No restante do tempo, Johnny Cash ficou tocando, e eu fiquei ensaiando conversas na cabeça. Nenhuma das palavras chegou à minha boca. Por algum motivo, relutava em pôr um fim em nossa aventura e ficar por conta própria. E isso não tinha nada a ver com o fato de eu ter de vestir a carapuça de menina crescida, e tudo a ver com o modo com que começava a me sentir à vontade perto dele. O silêncio não foi desagradável. Foi tranquilo. Gostoso até, levando-se em consideração o último dia repleto de drama. Estar com ele na estrada... havia algo de libertador nisto. E, lá pelas duas da madrugada, acabei adormecendo.

– JJ, onde estamos?

Ele me olhou de lado, a mão ainda me massageando.

– Bem...

Uma placa passou.

– Estamos indo para Monterey?

– É lá que fica a minha casa – disse ele – Não fique tensa.

– Monterey?

– É. Você tem alguma coisa contra Monterey? Teve alguma experiência ruim em algum festival de música?

– Não. – Pisei no freio, rápido, sem querer parecer mal-agradecida. – Só fiquei surpresa. Não percebi que... Hum, Monterey. Ok.

JJ suspirou e parou no acostamento. A poeira voou e pedriscos bateram na carroceria. (Rafe não ficaria nada contente.) Ele se virou na minha direção, apoiando um cotovelo no encosto do banco de passageiro, encurralando-me.

– Desembuche, amiga! – disse ele.

Abri a boca e despejei tudo.

– Eu tenho um plano. Tenho algum dinheiro guardado. Pensei em ficar em algum lugar tranquilo por algumas semanas até a poeira baixar. Você não tinha que se dar a esse trabalho. Só preciso pegar as minhas coisas na mansão e te deixo livre.

– Certo. – assentiu – Bem, estamos aqui agora e eu gostaria de dar uma olhada na casa. Então, por que não fica comigo alguns dias? Como amigos. Nada demais. Já é sexta-feira, os advogados disseram que vão nos mandar a papelada na segunda. Assinamos. Na terça, tenho um show em L.A. Se quiser, pode ficar na casa por algumas semanas até tudo se normalizar. Isso lhe parece um bom plano? Passamos o fim de semana juntos e, depois, cada um segue o seu rumo. Tudo resolvido.

Parecia mesmo uma boa ideia. Mas, ainda assim, refleti um instante. Um instante longo demais, pelo visto.

– Está preocupada por passar o final de semana comigo? Sou tão assustador assim? – O olhar dele prendia o meu, nossos rostos bem próximos. O cabelo loiro caía sobre o rosto perfeito. Por um momento, quase esqueci de respirar. Não me mexi. Não conseguia. Do lado de fora, uma moto interrompeu toda a quietude.

Ele era assustador? O cara não fazia ideia do quanto.

– Não – menti, dando uma risadinha só para garantir.

Não acho que ele tenha acreditado em mim.

– Olha só, desculpe por eu ter agido como um cretino em L.A.

– Tá tudo bem, JJ, mesmo. Esta situação não seria fácil para ninguém.

– Diga uma coisa – disse ele, num tom baixo – Você se lembrou de ter feito a tatuagem. Lembrou de mais alguma coisa?

Reviver minha embriaguez não era algo que eu gostaria de fazer. Não com ele. Nem com ninguém. Estava pagando as consequências, tendo minha vida investigada e exposta na internet. Ridículo, já que meu passado não era nem remotamente sórdido. A não ser pelo episódio no carro dos pais do Tommy.

– Isso importa? Quero dizer, não é um pouco tarde para termos esse tipo de conversa?

– Acho que sim. – Ele se recostou no banco e pousou a mão no volante. – Precisa esticar as pernas ou algo assim?

– Uma parada num banheiro seria ótimo.

– Tudo bem.

Voltamos para a estrada e o silêncio se seguiu por diversos minutos. Ele desligara o rádio algum tempo depois que adormeci. Agora o silêncio estava constrangedor e tudo por minha culpa. Sentir culpa logo cedo era horrível.  Não devia melhorar muito com o passar do dia mas, assim, de cara, sem nem um gole de café para me fortificar, era horrível. Ele foi legal comigo, tentando conversar, e eu fechei a porta na cara dele.

– Boa parte da noite não passa de um borrão – eu disse.

Ele esticou uns dedos no volante como num aceno. Essa foi a reação dele.

Respirei fundo, tentando criar mais coragem.

– Lembro-me de ter tomado umas doses naquela noite. Depois disso, tudo ficou confuso. Lembro-me do som da agulha no tatuador, da gente rindo, mas é só. Nunca apaguei desse jeito. É assustador.

– É – concordou ele, baixinho.

– Como nos conhecemos?

Ele exalou fundo.

– Hum... Eu e um grupo de amigos estávamos saindo para ir para outra boate. Uma das garotas não estava olhando para a frente e esbarrou na garçonete. Acho que ela era novata e deixou a bandeja cair. Por sorte, só havia umas garrafas de cerveja vazias.

– Como entrei na história?

Ele me olhou de relance, desviando o olhar da estrada por um instante.

– Alguns deles começaram a incomodar a garçonete, dizendo que fariam com que ela fosse demitida. Você apareceu no meio e disse poucas e boas para eles.

– Fiz isso, é?

– Ah, fez... – Ele lambeu os lábios, o canto da boca se curvando num sorriso. – Você os chamou de pretensiosos, riquinhos mimados que deveriam prestar atenção por onde andavam. Você ajudou a moça a pegar as garrafas e depois insultou meus amigos um pouco mais. Na verdade, foi perfeito. Não me lembro de tudo o que disse. Mais para o fim, você se mostrou bem criativa com os insultos.

– Puxa. E você foi com a minha cara por causa disso?

Ele fechou a boca e não disse mais nada. Um mundo imenso de nada. Nada, na verdade, podia significar muita coisa quando se quer muito.

– O que aconteceu depois? – perguntei.

– Os seguranças chegaram para te expulsar. Até parece que eles discutiriam com um punhado de riquinhos.

- Não. Acho que não. 

-Você pareceu ficar apavorada, por isso te tirei de lá.

– Você deixou seus amigos por minha causa? – Fitei-o, admirada.

Ele levantou apenas um ombro. Como se isso não tivesse nenhum significado.

– E depois?

– Saímos e fomos tomar um drinque em outro bar.

– Estou surpresa por ter ficado do meu lado. – Surpresa era pouco.

– E por que não faria isso? – perguntou – Você me tratou como uma pessoa normal. Falamos das coisas do dia a dia. Você não me abordou como quem quer alguma coisa de mim. Não agiu como se eu fosse de uma espécie diferente. Quando olhava para mim era como...

– O quê?

Ele pigarreou.

– Não sei. Não importa.

– Sim, você sabe. E importa.

Ele gemeu.

– Por favor?

– Caramba – murmurou, remexendo-se no banco como se estivesse desconfortável – Pareceu real, ok? Pareceu certo. Não sei de que outro modo explicar.

Fiquei parada num silêncio atordoado por um momento.

– É um bom modo de explicar.

De repente, ele se mostrou bem complacente.

– Além disso, nunca tinha recebido um tipo de proposta como aquela.

– Hummm, ok, pode parar agora. – Cobri o rosto com as mãos, e ele riu.

– Relaxa – disse ele – Você foi encantadora.

– Encantadora?

– Encantadora não é ruim.

Ele entrou com o Jeep num posto de gasolina, parando diante de uma bomba.

– Olha pra mim.

Abaixei os dedos.

JJ me encarava, o lindo rosto sorridente.

– Você disse que achava que eu era um cara legal. E que seria demais se pudéssemos ir ao seu quarto, transar e ficar um pouco juntos, se eu estivesse interessado nisso.

– Puxa. Eu levo jeito! – gargalhei. Acho que tive outras conversas mais embaraçosas do que essa. Algo duvidoso, porém. Meu Deus, como fui pensar em tentar seduzir JJ...? Ele, que tem fãs e modelos glamourosas se jogando para cima dele diariamente. Se houvesse espaço suficiente debaixo do banco, eu me esconderia ali.

– O que você respondeu?

– O que acha que respondi? – Sem desviar o olhar do meu, ele abriu o porta-luvas e pegou um boné. – Acho que os banheiros ficam no fundo.

– Isso é tão humilhante. Por que você também não esqueceu?

Ele só olhou para mim. O sorriso há muito tinha sumido. Por um bom tempo, ele manteve o meu olhar cativo, sério. A temperatura dentro do carro pareceu despencar uns vinte graus.

– Já volto – disse eu, os dedos brigando com o cinto de segurança. – Tudo bem.

Por fim, consegui soltar a coisa, com o coração acelerado. A conversa se tornara mais pesada no fim. Pegou-me desprevenida. Saber que ele tomou o meu partido em Vegas, que escolheu a mim em detrimento dos amigos... isso mudava as coisas. E me fez questionar o que mais eu precisava saber sobre aquela noite.

– Espere. – Ele vasculhou em meio a uma coleção de óculos de sol e me entregou um com ares de aviador. – Você também é famosa agora, lembra?

– A minha bunda é.

Ele quase sorriu. Ajeitou o boné e deixou um braço relaxado sobre o volante. A tatuagem do meu nome estava ali, em toda a sua glória. Estava rosada nas extremidades, e algumas letras tinham casquinhas. Eu não era a única permanentemente marcada por aquilo.

– Até daqui a pouco – disse ele.

– Até. – Abri a porta e desci com cuidado. Tropeçar e cair de bunda na frente dele deveria ser evitado a todo custo.

Cuidei das minhas necessidades e lavei as mãos. A garota no espelho estava com os olhos arregalados e muito mais. Joguei um pouco de água no rosto e tentei controlar os danos dos meus cabelos. Que piada. Aquela aventura em que estava metida procurava impedir qualquer tentativa minha de controle. Eu, minha vida, tudo parecia estar seguindo a correnteza. E isso não deveria parecer tão estranhamente bom como parecia.

Quando voltei, ele estava perto do Jeep, assinando uns autógrafos para um bando de rapazes, um dos quais se ocupava em realizar uma performance entusiasmada com uma guitarra imaginária. JJ riu e deu um tapinha nas costas dele, e eles conversaram por mais alguns minutos. Ele estava sorrindo, conversando, até me notar parada nas imediações.

– Obrigado, rapazes. Se puderem não comentar nada por alguns dias, eu agradeço, está bem? Precisamos nos afastar um pouco de toda essa confusão.

– Não esquenta. – Um dos caras se virou e sorriu para mim. – Parabéns. Você é muito mais bonita pessoalmente do que nas fotos.

– Obrigada. – Acenei para eles, sem saber o que mais fazer.

JJ piscou para mim e abriu a porta do passageiro para eu entrar.

Outro cara pegou o celular e começou a tirar fotos. JJ o ignorou e correu até o outro lado do carro. Não falou nada até voltarmos para a estrada.

– Não fica muito longe – esclareceu – Ainda vamos para Monterey?

– Com certeza.

– Legal.

Ouvir JJ falar sobre o nosso primeiro encontro colocou as coisas sob uma outra ótica. Aquela conversa incitara a minha curiosidade. O fato de ele ter, de certa forma, escolhido a mim... Não havia cogitado essa possibilidade antes. Imaginei que nós dois tivéssemos deixado a tequila falar mais alto e, de algum modo, acabamos juntos naquela confusão. Eu estava errada. Havia mais por trás daquela história. Muito mais. A relutância de JJ em responder certas perguntas me fez parar para pensar.
Eu queria respostas. Mas precisava agir com cautela.
– É sempre assim? – perguntei – Você é sempre reconhecido? As pessoas o abordam o tempo todo?
– Esses foram legais. Os malucos são mais preocupantes, mas dá para lidar com eles. Faz parte do meu trabalho. As pessoas gostam das músicas, então...
Uma sensação ruim se instaurou em mim.
– Você me disse quem era naquela noite, não disse?
– Sim, claro que sim. – Ele me lançou um olhar irritado, as sobrancelhas unidas.
A sensação ruim foi embora, só para ser substituída por vergonha.
– Desculpe.
– Kie, eu quis que soubesse em que confusão você estava se metendo. Você disse que gostava de mim, mas que não gostava tanto da minha banda. – Ele mexeu no rádio, outro meio sorriso no rosto. Um rock que eu não conhecia começou a tocar baixinho nos alto-falantes. – Você se sentiu mal a esse respeito, na verdade. Ficou se desculpando. Insistiu em me pagar um hambúrguer para compensar.
– É que prefiro música country.
– Acredite, eu sei. E pare de se desculpar. Você tem todo o direito de gostar do que bem entender.
– O hambúrguer e o milkshake estavam bons?
Ele ergueu um ombro só de novo.
– Estavam bons.
– Queria poder me lembrar.
Ele bufou.
– Pela primeira vez.
Não sei bem o que aconteceu comigo. Talvez só quisesse ver se conseguiria fazê-lo sorrir. Com o joelho dobrado, estiquei o cinto de segurança, me soergui e o beijei na face. Um ataque surpresa. A pele dele resvalou quente e macia sob meus lábios. O homem cheirava muito melhor do que era direito seu.
– Pra que isso? – perguntou, me lançando outro olhar pelo canto do olho.
– Por me tirar de Portland e depois de L.A. Por falar comigo sobre aquela noite. – Dei de ombros, tentando fazer pouco caso. – Por muitas coisas.
Uma ruguinha apareceu entre as sobrancelhas dele. Quando falou, a voz soou rude. – Tudo bem. Tá tudo certo.
A boca dele permaneceu fechada e a mão foi até a bochecha, tocando onde eu o beijara. A carranca e os olhares esgueirados continuaram por um bom tempo. Cada um deles me fez imaginar se JJ Maybank tinha tanto medo de mim quanto eu dele. Aquela reação foi ainda melhor do que um sorriso.

                                                                            __

Uma casa de pedras e madeira se erguia por entre as árvores, aninhada no alto de um despenhadeiro. O cenário era inspirador de uma maneira totalmente diversa da mansão de L.A. Abaixo, o oceano cumpria sua função de ser espetacular.
JJ saiu do carro e seguiu até a casa, pegando um molho de chaves do bolso. Em seguida, ele abriu a porta da entrada e apertou uma sequência numérica num sistema de segurança.
– Você não vem? – ele exclamou.
Fiquei parada ao lado do carro, observando a casa magnífica. Ele e eu sozinhos. Ali dentro. Hum... Ondas batiam nas pedras ali por perto. Juro que ouvi o crescendo de uma orquestra não muito longe dali. O lugar era definitivamente atmosférico. E a atmosfera era de puro romance.
– O que foi? – JJ desceu o caminho de pedras até junto de mim.
– Nada... É só que...
– Bom. – Ele não parou. Não entendi o que estava acontecendo até me ver de ponta-cabeça no ombro dele.
– Ei! JJ!
– Relaxa.
– Você vai me deixar cair!
– Não vou deixar você cair. Pare de se debater! – disse ele, segurando a parte posterior das minhas pernas com o braço – Demonstre um pouco de confiança.
– O que está fazendo? – Bati as mãos nos fundilhos dos jeans dele.
– É tradição carregar a noiva porta adentro.
– Não deste jeito.
Ele deu um tapinha na minha nádega, aquela que tinha o nome dele.
– E por que temos que começar a ser tradicionais agora, hein?
– Pensei que só éramos amigos.
– Isto é bem amigável. Só que seria bom você parar de me apalpar na bunda, ou vou acabar com a impressão errada. Ainda mais depois daquele beijo no carro. 

– Não estou apalpando sua bunda – grunhi e parei de me segurar na bunda dele para me firmar.

 Como se fosse culpa minha a posição em que ele me colocou e que não me deixava outro lugar para segurar, que não fossem suas nádegas firmes.
– Ora, por favor, você está caindo em cima de mim. Isso é desconcertante.

Ri, apesar de tudo.

– Foi você quem me colocou no ombro, seu idiota. Claro que estou em cima de você.

Lá foi ele subindo os degraus, depois atravessou um pátio e passou pela porta. Piso de madeira escura e caixas passando por mim, muitas caixas. Eu não conseguia ver muito mais que isso.
– Isso pode ser um problema – disse ele.
– O quê? – perguntei, ainda de ponta-cabeça, o cabelo atrapalhando a vista.
– Segure-se. – Devagar, ele me endireitou, pousando meus pés no chão. Todo o sangue desceu da cabeça e eu cambaleei. Ele me segurou pelos cotovelos, mantendo-me de pé.
– Tudo bem?
– Sim. Qual é o problema?
– Pensei que houvesse mais móveis – explicou ele.
– Nunca veio aqui antes?
– Andei ocupado.
Além das caixas, havia mais caixas. Estavam por toda parte. Estávamos no meio de uma sala imensa com uma lareira grande o suficiente para assar uma vaca, se alguém quisesse. Havia escadas conduzindo para o segundo andar e para um andar abaixo. Havia também uma sala de jantar com uma cozinha aberta. O lugar tinha vidros do teto ao chão, paredes de madeira e de pedras cinza. A mistura perfeita das técnicas de design do antigo e do novo. Era incrível. Mas todos os lugares em que ele morava pareciam ser assim.
Fiquei imaginando o que ele pensaria do meu apartamento com Lauren, pequeno e decadente. Um pensamento tolo. Como se um dia ele fosse vê-lo.
– Pelo menos eles colocaram uma geladeira. – Abriu uma das portas imensas de aço inoxidável. Todos os centímetros internos estavam tomados por comida ou por bebida. – Excelente.
– Quem são "eles"?
– As pessoas que cuidam da casa para mim. Uns amigos. Eles também cuidavam dela para os donos anteriores. Liguei para eles e pedi que arrumassem um pouco as coisas para nós. – Ele apanhou uma Corona e tirou a tampa. – Saúde.

Sorri, entretida.

– De café da manhã?
– Faz dois dias que estou acordado. Quero uma cerveja e quero uma cama. Caramba, espero que tenham pensado na cama. – Com a cerveja na mão, ele voltou para a sala e subiu as escadas. Curiosa, eu o segui.
Ele abriu cada um dos quartos. Havia quatro em cima e todos eles tinham banheiro, porque, claro, os ricos não dividem. Na última porta do corredor, ele parou e relaxou, aliviado.
– Graças a Deus por isso.
Uma cama do tamanho de um reino com roupa de cama branca e limpa o aguardava. E mais algumas caixas.
– Por que há tantas caixas? – perguntei – Eles só providenciaram uma cama?
– Às vezes, compro coisas nas viagens. Às vezes, as pessoas me dão coisas. Nos últimos anos, eu mandava tudo só para cá. Olhe o quanto quiser. E, sim, só há uma cama. – Tomou um gole de cerveja. – Acha que estou nadando em dinheiro?
Bufei uma risada.
– Quem diz isso é o mesmo cara que mandou abrir a loja da Cartier para que eu escolhesse uma aliança.
– Lembra-se disso? – Ele sorriu ao redor do gargalo da garrafa.
– Não, apenas deduzi pelo adiantado da noite que devia ser. – Vagueei até a parede de vidro. A vista era linda.
– Você tentou escolher uma coisinha de nada. Nem pude acreditar. – Ele me encarava, mas seu olhar estava distante.
– Joguei o anel em cima dos advogados.
Ele se retraiu e ficou olhando os sapatos.
– É, eu sei.
– Sinto muito. Eles me deixaram furiosa.
– Advogados fazem isso. – Tomou mais um gole. – Rafe disse que tentou bater nele.
– Errei.
– Melhor assim. Ele é um idiota, mas tem boa intenção.
– É, ele foi legal comigo. – Cruzando os braços, olhei para o resto do quarto, entrando no banheiro. A Jacuzzi teria deixado a de Rafe envergonhada. O lugar era simplesmente suntuoso. E, mais uma vez, a sensação de não pertencer àquele lugar, de não me encaixar com a decoração, me atingiu com força.
– Que carranca, amiga! – disse ele.
Tentei sorrir.
– Eu só estava tentando entender as coisas. Quero dizer, é por isso que você se rebelou em Vegas? Porque é infeliz? E, com exceção de Rafe, está cercado por idiotas?
– Droga. – Ele deixou a cabeça pender para trás. – Temos que continuar a falar sobre aquela noite?
– Só estou tentando entender.
– Não – disse ele – Não foi isso, está bem?
– Então o que foi?
– Estávamos em Vegas, Kie. Merdas acontecem.
Calei a boca.
– Não quero dizer... – Ele esfregou o rosto com uma mão. – Droga. Olha só, não fique pensando que foi só uma bebedeira e uma festinha, e que foi só por isso que tudo aconteceu. O porquê de nós acontecermos. Não quero que pense assim.
Me senti fraquejar. Aquela parecia a única reação apropriada. – Mas é isso o que acho. Foi exatamente isso o que pensei. É a única explicação que faz sentido na minha cabeça. Quando uma garota como eu acorda casada com um cara como você, o que mais posso pensar? Deus, JJ, olhe só para você. Você é bonito, rico e bem-sucedido. Seu irmão tinha razão, isto não faz sentido algum.
Ele se virou para mim, o rosto contraído.
– Não faça isso. Não se menospreze assim.
Apenas suspirei.
– Estou falando sério. Nunca mais pense no que aquele cretino disse, entendeu? Não é verdade que você não seja nada.
– Então me dê alguma coisa. Me diga como foi entre nós naquela noite.
Ele abriu a boca, depois a fechou com força.
– Não. Não quero ficar insistindo nisso... Você sabe, águas passadas e tudo o mais. Só não quero que você fique pensando que a noite toda aconteceu só por causa da bebida... Falando sério, você nem parecia tão embriagada assim, na maior parte do tempo.
– JJ, você está se esquivando. Vamos lá. Não é justo que você se lembre e eu não.
– Não – disse ele num tom frio, distante, que eu ainda não tinha ouvido. Ele pairou acima de mim, o maxilar travado – Não é justo que eu me lembre e você não, Kie.
Eu não sabia o que dizer.
– Vou sair. – Fazendo jus às suas palavras, ele saiu em disparada pela porta. Passadas pesadas ecoaram pelo corredor e escada abaixo. Só fiquei olhando para a porta.

                                                                                        —

Eu lhe dei um tempo para esfriar antes de segui-lo até a praia. A luz da manhã era ofuscante, o céu azul se estendendo ao longe. O dia estava lindo. O ar salgado do mar clareou minhas ideias um pouco. As palavras de JJ levantaram mais perguntas do que responderam qualquer coisa. Entender aquela noite consumia meus pensamentos. Cheguei a duas conclusões. Ambas me preocuparam. A primeira foi que aquela noite em Vegas foi especial para ele. Minhas perguntas e o modo como trivializei tudo o aborreceram. A segunda, eu suspeitava, era que ele não estivera assim tão embriagado. Parecia que ele sabia exatamente o que estivera fazendo. E, nesse caso, como ele deve ter se sentido na manhã seguinte? Eu o rejeitara, e ao nosso casamento, de bate e pronto. Ele deve ter se sentido magoado, humilhado. Existiram bons motivos para o meu comportamento. Mesmo assim, agi de modo absolutamente irrefletido. Eu não conhecia JJ naquele instante. Mas agora começava a conhecê-lo. E quanto mais conversávamos, mais gostava dele.
JJ estava sentado numas pedras com a cerveja na mão, fitando o mar. A brisa fresca do oceano bagunçava o longo cabelo dele. O tecido da camiseta se agarrava nas costas largas. Ele estava com os joelhos dobrados e um braço ao redor deles. Parecia mais jovem do que era, mais vulnerável.
– Oi – disse eu, abaixando-me ao seu lado.
– Oi. – Os olhos estavam apertados contra a luz do sol, mas olhou para mim, com a expressão reservada.
– Desculpe por insistir.
Ele assentiu, voltando a fitar a água.
– Tudo bem.
– Não quis te chatear.
– Não se preocupe.
– Ainda somos amigos?
Ele bufou uma risada.
– Claro.
Sentei-me ao seu lado, tentando descobrir o que dizer em seguida, o que poderia fazer as coisas se acertarem entre nós. Nada do que eu dissesse compensaria o que acontecera em Vegas. Eu precisava de mais tempo com ele. O relógio marcando o tempo restante até os papéis da anulação batia cada vez mais alto. Pensar que o nosso tempo juntos seria pouco me desalentava. Que logo tudo terminaria, e eu não o veria, nem falaria com ele novamente. Que eu não entenderia o quebra-cabeça que somos. Minha pele ficou toda arrepiada e não só por causa do vento.
– Droga. Você está com frio – disse ele, passando um braço pelos meus ombros, puxando-me para perto.
E eu me aproximei, bem contente.
– Obrigada.
Ele apoiou a garrafa e me abraçou com os dois braços.
– Acho melhor entrarmos.
– Daqui a pouco. – Meus polegares ficaram esfregando os dedos, ansiosos. – Obrigada por me trazer aqui. É um lindo lugar.
– Hum.
– JJ, verdade. Desculpe.
– Ei. – Ele pousou um dedo sob meu queixo, erguendo-o. A mágoa e a raiva tinham sumido, sendo substituídas por gentileza. Ele deu um dos seus dares de ombro. – Vamos só deixar pra lá.
Essa ideia, de fato, me fez entrar em pânico. Eu não queria deixar pra lá. Entender isso foi surpreendente. Encarei-o, deixando que esse entendimento penetrasse em mim.
– Eu não quero.
Ele piscou.
– Tudo bem. Quer me compensar?
Duvidei que estivéssemos falando da mesma coisa, mas assenti mesmo assim.
– Tive uma ideia.
– Manda ver.
– Coisas diferentes podem ativar as lembranças, correto?
– Acho que sim – disse eu.
– Então, se eu te beijar, você pode se lembrar de como fomos juntos.
Parei de respirar.
– Quer me beijar?
– Você não quer que eu te beije?
– Não – respondi rapidamente. – Tudo bem se me beijar.
Ele refreou um sorriso.
– Muita gentileza sua.
– E esse beijo seria apenas com um propósito científico?
– Isso mesmo. Você quer saber o que aconteceu naquela noite e eu não quero falar a respeito. Então, imaginei que seria mais fácil se você mesma se lembrasse de alguma coisa.
– Faz sentido.
– Excelente.
– Até onde fomos naquela noite?
O olhar dele abaixou para a minha camiseta e para as curvas dos meus seios.
– Até aqui.
– De roupa?
– Sem. Nós dois estávamos sem a parte de cima. Carinhos topless são os melhores. – Ele observou enquanto eu absorvia a informação, o rosto dele próximo ao meu.
– Sutiã?
– Claro que não.
– Puxa. – Lambi os lábios, respirando com dificuldade. – Acha mesmo que devemos fazer isto?
– Você está pensando demais.
– Desculpe.
– Pare de se desculpar.
Minha boca se abriu para repetir as desculpas, mas eu a fechei com determinação.
– Tudo bem. Você vai pegar o jeito.
Meu cérebro se fechou, e fiquei olhando para a boca dele. Ele tinha uma linda boca, com os lábios cheios levemente curvos nos cantos. Demais.
– No que está pensando?
– Você me disse para não pensar. E, sério, não estou.
– Bom – disse ele, inclinando-se mais – Isso é muito bom.
Os lábios dele resvalaram os meus, para que eu me acostumasse. Suaves, mas firmes, sem hesitação. Os dentes brincaram com meu lábio inferior. Depois o sugaram. Ele não beijava como os rapazes que eu conhecia, apesar de eu não saber determinar a diferença. Era apenas melhor e... mais. Infinitamente mais. A boca dele pressionou a minha e a língua penetrou minha boca, esfregando a minha. Deus, como ele era gostoso. Meus dedos mergulharam nos cabelos dele, como sempre quiseram. Ele me beijou até eu não me lembrar do que acontecera antes. Nada mais importava.
A mão escorregou para a minha nuca, segurando-me firme. O beijo continuou sem parar. Ele me acendeu dos dedos dos pés à cabeça. Eu não queria que aquilo acabasse.
Ele me beijou até minha cabeça girar e eu me segurar, como se minha vida dependesse daquilo. Depois se afastou, arfando, e apoiou a testa na minha.
– Por que você parou? – perguntei quando consegui formular um pensamento coerente. Minhas mãos o puxaram, tentando atraí-lo de volta para a minha boca.
– Psiu. Relaxa. – Ele respirou fundo. – Lembrou-se de alguma coisa? Alguma coisa pareceu familiar?
Minha mente atordoada não me trouxe nenhuma lembrança. Maldição.
– Não. Acho que não.
– Pena. – Uma fenda se formou entre as sobrancelhas. As manchas loiras sob os olhos azuis pareceram se intensificar. Eu o desapontara novamente. Senti o coração pesado.
– Você parece cansado – observei.
– É. Acho que está na hora de dormir um pouco. – Ele depositou um beijo na minha testa. Seria um beijo amigável ou algo mais? Eu não sabia dizer. Talvez também fosse com um propósito científico. – A gente tentou, né?
– É. Tentamos.
Ele se pôs de pé, pegando a garrafa de cerveja. Sem ele para me aquecer, a brisa soprou por mim, fazendo-me estremecer até os ossos. Mas foi o beijo o que mais me deixou abalada. Explodira minha cabeça. E pensar que tive uma noite de beijos como aquele e esqueci. Eu precisava de um transplante de cérebro o mais rápido possível.
– Importa-se se eu for junto? – perguntei.
– Nem um pouco. – Estendeu a mão para me ajudar a levantar.
Juntos, andamos de volta para a casa, subindo as escadas até a suíte master. Tirei os sapatos enquanto JJ tirava os dele. Deitamos na cama, sem nos tocar. Ficamos olhando para o teto como se ali estivessem todas as respostas.
Fiquei quieta. Por um minuto inteiro. Minha mente estava bem desperta e conversando comigo.
– Acho que entendo um pouco melhor como acabamos nos casando.
– É mesmo? – Ele virou o rosto na minha direção.
– É. – Nunca fui beijada daquela forma. – Entendo.
– Vem cá. – Um braço forte circundou minha cintura, arrastando-me para o meio da cama.
– JJ. – Segurei-o com um sorriso nervoso. Mais do que pronta para outros beijos. Mais dele.
– Deite-se de lado – disse ele, as mãos me manobrando até ele se deitar atrás de mim. Um braço estava debaixo do meu pescoço e o outro passava por cima da minha cintura, puxando-me para perto dele. Seus quadris se encaixaram às minhas nádegas com perfeição.
– O que estamos fazendo? – perguntei, surpresa.
– Estamos ficando em conchinha. Ficamos assim por um tempo naquela noite. Até você passar mal.
– Fizemos conchinha?
– Isso mesmo – disse ele – Fase dois do processo de recuperação de memória: conchinha. Agora durma.
– Só faz uma hora que acordei.
Ele pressionou o rosto no meu cabelo e passou uma perna sobre a minha, imprensando-me, só por garantia.
– Azar o seu. Estou cansado e quero ficar em conchinha. Com você. E, pelo que estou entendendo, você está me devendo. Então vamos fazer uma conchinha.
– Entendi.
A respiração dele aqueceu meu pescoço, provocando tremores em minha coluna.
– Relaxa. Você está toda tensa. – Os braços dele se apertaram ao meu redor.
Depois de um instante, peguei a mão esquerda dele, passando meus dedos pelos calos dele. Usando-o como meu brinquedinho. As pontas dos dedos eram duras. Também havia uma marca descendo pelo polegar e na junção dos dedos com a palma. Obviamente, ele passava muito tempo segurando guitarras. No dorso dos dedos havia uma tatuagem, FREE. Na mão direita, a palavra LIVE. Não pude deixar de pensar se aquele casamento não atrapalharia essa liberdade. Ondas num estilo japonês e um dragão retorcido cobriam seu braço, as cores e os detalhes eram impressionantes.
– Fale-me sobre seu curso – pediu ele – Está estudando arquitetura, correto?
– Isso mesmo – confirmei, um tanto surpresa por ele saber. Eu devia ter lhe contado em Vegas – Meu pai é arquiteto.
Ele entrelaçou os dedos nos meus, pondo um fim na minha brincadeira.
– Você sempre quis tocar guitarra? – perguntei, tentando não me distrair demais com a maneira como ele me envolvia.
– A música é a única coisa que fez algum sentido para mim. Não consigo me imaginar fazendo qualquer outra coisa.
– Hum... – Deve ser legal ter alguma coisa da qual se goste tanto. Gosto da ideia de ser arquiteta. Muitas das minhas brincadeiras de criança envolviam construção com blocos e desenhos. Mas eu não me sentia exatamente atraída por isso. – Eu sou meio desafinada.
– Isso explica muita coisa. – Ele riu.
– Seja bonzinho. Também nunca fui muito boa em esportes. Gosto de desenhar, de ler e de assistir a filmes. E gosto de viajar, não que eu tenha tido muita oportunidade para isso.
– É mesmo?
– Hum-hum.
Ele se ajeitou atrás de mim, ficando mais confortável.
– Quando viajo é sempre por causa dos shows. Não sobra muito tempo para passear. – Que pena.
– E ser reconhecido às vezes é bem chato. De vez em quando a coisa fica feia. Existe bastante pressão sobre nós e nem sempre posso fazer o que quero. A verdade é que estou pronto para desacelerar, ficar mais em casa.
Eu não disse nada, refletindo sobre suas palavras.
– As festas cansam depois de um tempo. E ter tanta gente em volta o tempo todo também.
– Aposto que sim. – Mas, mesmo assim, em L.A., ele estava com uma fã pendurada no braço, adorando cada palavra dele. Evidentemente, partes daquele estilo de vida ainda tinham certo apelo. Partes com as quais eu não tinha certeza de que pudesse competir, mesmo que quisesse – Não vai sentir falta de alguma coisa, pelo menos?
– Falando sério? Faço isso há tanto tempo que já nem sei.
– Bem, você tem uma linda casa para passar um tempo.
– Hum. – ele ficou quieto por um momento – Kie?
– Oi.
– Ser arquiteta foi ideia sua ou do seu pai?
– Não me lembro – admiti –Sempre falamos sobre isso. Meu irmão nunca se interessou em seguir seus passos. Ele sempre se meteu em brigas e cabulou aulas.
– Você disse que também passou por uns maus bocados na escola.
– E não é assim com todo mundo? – Eu me remexi, virando para poder ver seu rosto. – Não costumo falar sobre isso com as pessoas.
– Falamos sobre isso. Você disse que implicavam com você por causa do seu tamanho. Deduzi que foi isso que a fez avançar nos meus amigos. O fato de eles estarem incomodando a garçonete como um bando de malditos garotos de colégio.
– Acho que pode ser. – Esse tipo de brincadeira não era um assunto no qual eu gostava de tocar. Com muita facilidade, ele trazia à tona todo tipo de sentimentos associados. Os braços de JJ, contudo, não permitiram que nenhum deles escapulisse. – A maioria dos professores apenas ignorava. Como se fosse mais uma coisa com a qual eles não tinham que lidar. Mas havia uma professora, a senhorita Hall... Toda vez que eles começavam a me amolar ou a outros garotos, ela interferia. Ela era demais.
– Parece bem legal mesmo. Mas você não me respondeu. Quer ser arquiteta?
– Bem, foi o que sempre planejei ser. E eu... gosto da ideia de projetar casas para as pessoas. Não sei se ser arquiteta é o meu chamado divino, como a música é para você, mas acho que posso ser boa nisso.
– Não estou duvidando disso, gata – disse ele, com uma voz suave, porém determinada.
Tentei não deixar que o termo afetuoso me transformasse numa massa disforme sobre o colchão. Sutileza era a chave. Eu o magoara em Vegas. Se estivesse querendo levar aquilo a sério, se quisesse dar mais uma chance para nós, eu precisava ir com cuidado. Dando-lhe boas lembranças para substituir as ruins. Lembranças que nós dois pudéssemos partilhar desta vez.
– Kie, é isso o que você quer fazer da sua vida?
Parei. Já tendo passado por todas as respostas-padrão, era necessário refletir mais. O plano esteve presente por tanto tempo que eu não tendia a questioná-lo. Havia segurança e conforto nele. Porém, JJ queria mais e eu queria lhe dar isso. Talvez fosse por isso que tivesse revelado meus segredos em Vegas. Algo naquele homem me atraía e eu não queria lutar contra isso.
– Para falar a verdade, não tenho certeza.
– Tudo bem, sabe. – Seu olhar não se desviou do meu. – Você só tem vinte e um anos.
– Mas eu deveria agir como adulta agora, responsabilizando-me pelos meus atos. Era para eu saber esse tipo de coisa.
– Já faz alguns anos que você está morando com sua amiga, não é? Pagando as contas e indo para as aulas, não?
– É.
– Então como isso não é tomar conta de si mesma? – Ele ajeitou o cabelo atrás da orelha, que tinha caído sobre o rosto. – Você pode começar com a arquitetura e ver no que vai dar.
– Você faz isso parecer tão simples.
– E é. Ou você continua ou parte pra outra coisa, vendo o que dá mais certo pra você. A vida é sua. É você quem decide.
– Você só toca guitarra? – perguntei, querendo saber mais sobre ele. Querendo que eu não fosse mais o centro da conversa. O nó crescente dentro de mim não era nada prazeroso.
– Não. – Um sorriso repuxou o canto da boca dele; ele sabia exatamente o que eu estava fazendo. – Baixo e bateria também. Claro.
– Claro?
– Qualquer um passável com uma guitarra consegue tocar baixo, se quiser. E qualquer um que consiga segurar duas baquetas ao mesmo tempo consegue tocar bateria. Certifique-se de dizer isso ao Rafe da próxima vez em que o encontrar, está bem? Ele vai adorar ouvir.
– Pode deixar.
– E eu canto.
– Canta? – perguntei, ficando toda animada – Pode cantar alguma coisa para mim? Por favor?
Ele emitiu um som reservado.
– Você cantou para mim naquela noite?
Ele me lançou um sorrisinho condoído.
– Cantei.
– Então isso pode disparar alguma lembrança.
– Você vai ficar usando isso agora, não vai? Toda vez que quiser alguma coisa, vai jogar isso em cima de mim.
– Ei, foi você quem começou. Você quis me beijar com um propósito científico.
– E foi com um propósito científico. Um beijo entre amigos por motivos totalmente lógicos.
– Foi um beijo bem amigável, JJ.
Um sorriso maroto iluminou seu rosto.
– É, foi mesmo.
– Por favor, cante alguma coisa para mim?
– Ok – ele bufou – Vire de costas. Estávamos de conchinha.
Aninhei-me contra ele e ele se aproximou ainda mais. Ser o bichinho de pelúcia de JJ era uma coisa maravilhosa. Não consegui imaginar nada melhor. Uma pena que ele estivesse insistindo nesse aspecto científico da coisa. Não que eu o culpasse. Se eu fosse ele, também estaria cautelosa ao meu redor.
A voz dele me envolveu, grave, rouca na melhor maneira possível, enquanto cantava uma balada:

Um sentimento indo e vindo
Dez dedos quebrados, o nariz partido
Águas escuras, frias demais
Para casa, sei que vou voltar
Arrependido, o Sol ao céu queimou
Tão distante, tão imponente ela está Seu destino é de pedra
Seu trono partir, sei que vou
Estes ossos quebrados não vão me atrasar
Já suportaram tanto estes pés
Os queimaram estas chaminés
Este mar deixou afogar

Quando ele terminou, fiquei em silêncio. Ele me deu um aperto, provavelmente vendo se eu ainda estava viva. Retribuí o aperto em seu braço, sem me virar, para que ele não conseguisse ver as lágrimas nos meus olhos. A combinação da voz dele com a canção triste me comoveu. Eu estava sempre me desfazendo diante dele, chorando ou vomitando. Eu não fazia ideia do porquê de ele querer qualquer coisa comigo.
– Obrigada.
– De nada.
Fiquei ali, tentando decifrar a letra. O que poderia significar ele ter escolhido aquela canção para cantar para mim?
– Qual o nome dela?
– "Saudades de casa", escrevi para o último álbum. – Ele se soergueu num cotovelo, inclinando-se sobre mim, para ver meu rosto. – Ah, droga, te deixei triste. Desculpe.

– Não. Foi lindo. Sua voz é incrível.

Ele franziu o cenho, mas voltou a se deitar, o peito pressionando a minha coluna.
– Da próxima vez, canto algo mais alegre.
– Se quiser. – Pressionei os lábios contra o dorso da mão dele, tracejando as veias saltadas, os pelos salpicados. – JJ?
– Hum?
– Por que você não canta na banda? Sua voz é tão linda.
– Faço voz de fundo. Jimmy adora o estrelato. Sempre foi a praia dele. – Seus dedos se entrelaçaram nos meus. – Nem sempre ele foi o cretino que é agora. Sinto muito por ele tê-la abordado em L.A. Eu poderia tê-lo matado por dizer o que disse.
– Está tudo bem.
– Não, não está. Ele estava descontrolado. Não sabia o que estava dizendo. – O polegar dele se movimentou incansável sobre minha mão. – Você é linda. Não precisa mudar nada.
Eu não sabia o que dizer primeiro. Jimmy dissera algumas coisas horríveis que me marcaram. Engraçado como as coisas ruins sempre marcam.
– Eu vomitei e chorei em você. Tem certeza disso? – Por fim, resolvi brincar.
– Sim! – respondeu ele com simplicidade – Gosto de você do jeito que você é, dizendo o que lhe passa pela cabeça. Sem tentar me manipular ou me usar. Você apenas... "é" comigo. Gosto de você.
Fiquei ali sem saber o que dizer por um instante, surpresa.
– Obrigada.
– De nada. A seu dispor, Kiara. Sempre que quiser.
– Também gosto de você.
Seus lábios resvalaram minha nuca. Tremores percorreram minha pele.
– Gosta?
– Sim. Muito.
– Obrigado, gata.
Demorou algum tempo para que a respiração dele ficasse regular. Os braços e as pernas ficaram pesados e ele ficou parado, adormecido ao encontro das minhas costas. Senti o pé formigar, mas pouco me importei. Nunca antes dormi com alguém, desconsiderando as ocasionais partilhas de cama platônicas com Sarah. Ao que tudo levava a crer, dormir era só o que eu faria naquele dia.
Mas, bem no fundo, ficar deitada ao lado dele era gostoso.
Parecia certo.

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