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gяιммєℓ ο ϲяυєℓ
ENQUANTO O SOL PAIRAVA NO CÉU, a vila seguia seu curso normal. Lenora, como de costume, mergulhava nas obrigações de chefe enquanto Soluço havia sido arrastado para a floresta por Cabeça Dura. Ela não fazia ideia do motivo, mas sabia que com Cabeça Dura envolvido, o encontro era, no mínimo, incomum.
━ Volto logo! ━ Soluço havia dito antes de sair, parecendo desconfiado, mas resignado. Lenora apenas acenou, sorrindo, antes de retornar às suas inúmeras tarefas.
No santuário dos dragões, os vikings ajudavam a lidar com disputas que sempre surgiam entre as criaturas.
━ Eu já falei! Esse peixe é meu! ━ berrou Leo, tentando puxar um balde que dois dragões disputavam com fervor.
Astrid, que estava de pé ao lado dele, revirou os olhos e deu um tapa leve no braço do companheiro.
━ Leo, só divide o peixe entre eles. É mais rápido.
━ Não é questão de rapidez, é questão de princípio! ━ retrucou ele, antes de quase ser puxado junto com o balde pelos dragões.
Enquanto isso, Lenora seguia seu dia como um borrão. Ajudava a organizar madeira para reconstruir os poleiros destruídos por dragões brincalhões, recebia pescadores que traziam redes cheias para a costa e ainda ouvia reclamações de alguns dos mais velhos da ilha.
━ Chefe Lenora! ━ chamou uma senhora viking, a voz esganiçada ecoando pelo porto. ━ Esses dragões continuam roubando o salmão da minha rede!
Lenora se virou para encará-la, cansada, mas mantendo um sorriso educado.
━ Vou falar com Soluço para reforçarmos os poleiros perto das baias de pesca. Isso deve resolver.
━ Hmph. Só quero ver. ━ A senhora balançou a cabeça, resmungando enquanto se afastava.
Quando finalmente conseguiu escapar, Lenora foi para a casa de sua mãe. Assim que entrou, soltou um suspiro longo, a exaustão pesando sobre seus ombros. Sigrid a recebeu com um sorriso caloroso, guiando-a para um dos assentos.
━ Está trabalhando demais, minha querida. Precisa descansar.
━ Eu sei, mãe, mas há tanto a fazer... ━ Lenora suspirou, acariciando o ventre de forma instintiva.
Sigrid lançou um olhar desconfiado.
━ Você parece exausta, querida ━ comentou Sigrid, erguendo os olhos para a filha.
Lenora suspirou, derretendo no assento.
━ Hoje foi um dia cheio, mãe. Organizar Berk e lidar com dragões dá mais trabalho do que eu imaginava.
━ Você precisa descansar, Lenora. Sabe disso. Por que não sobe para o seu antigo quarto e tira uma soneca?
Lenora hesitou por um momento, mas o cansaço venceu.
━ Talvez você tenha razão... Só um cochilo rápido.
━ Vá logo ━ insistiu Sigrid, apontando para a escada com um sorriso. ━ Quando você acordar, o jantar estará pronto.
Lenora sorriu de volta e subiu os degraus, sentindo o peso das preocupações começarem a diminuir. Ao entrar em seu antigo quarto, foi invadida pela nostalgia. Tudo parecia intocado, como se tivesse sido congelado no tempo desde a última vez que morou ali.
Deitando-se na cama macia, suspirou aliviada. Com uma das mãos, acariciou instintivamente o ventre. A gravidez ainda era um segredo seu, mas cada dia que passava, sentia a conexão com o bebê crescer.
━ Como será você? ━ sussurrou para si mesma, olhando para o teto. ━ Será que vai ter os cabelos escuros do Soluço e os meus olhos? Ou os meus cabelos selvagens e os olhos verdes dele?
Seus pensamentos vagaram para o momento em que contaria a Soluço sobre o bebê.
━ Quando seria o momento certo? ━ murmurou, com a mão ainda traçando círculos na barriga.
Ela imaginava o sorriso de Soluço ao receber a notícia, mas também sentia a ansiedade crescer. Era muita responsabilidade, e ele já tinha tantas preocupações como chefe.
━ Será que vai ser uma surpresa boa? ━ perguntou a si mesma, um sorriso leve surgindo em seus lábios.
Lenora fechou os olhos, permitindo-se relaxar enquanto pensava no futuro que os aguardava. Uma coisa era certa: quando chegasse o momento, contaria a Soluço do jeito mais especial possível.
E com esse pensamento, adormeceu, abraçada pela paz que só o quarto de sua infância podia trazer.
Quando as coisas ficavam além do suportável, Lenora sempre acabava em seu antigo quarto. Ali, cercada pelos mesmos móveis de madeira desgastada e pelas pequenas lembranças de sua infância, ela encontrava consolo. Era um refúgio, um pedaço de sua vida que parecia congelado no tempo, imune às mudanças que Berk e o mundo haviam enfrentado.
O quarto trazia memórias doces de dias mais simples. Quando tudo que ela precisava fazer era acordar cedo para decorar sua casa para o Snoggletog, ou disputar a última fatia de pão com seus irmãos antes que desaparecesse. Ela lembrava de como Soluço aparecia do lado de fora de sua janela, com aquele sorriso tímido e desajeitado, convidando-a para um voo matinal. Eles tinham apenas 16 anos, despreocupados, mesmo com todas as tensões com os dragões e os perigos ao redor da ilha.
Não era que ela não amasse a vida que tinha agora ━ longe disso. Mas às vezes ela desejava voltar a ser adolescente, perseguir Astrid pelas docas ou rir das constantes trapalhadas de Melequento.
Ela queria que seus filhos tivessem isso também. A liberdade de explorar Berk e além, o privilégio de sentir o vento no rosto durante um voo ao lado de um dragão amigo. Ela desejava que eles experimentassem a excitação de planejar aventuras com os amigos, de inventar histórias sobre trolls nas montanhas ou de sabotar uma corrida de barril de Perna de Peixe.
Queria que eles vivessem.
Lenora abriu os olhos lentamente, ainda abraçada pelas memórias confortantes de seu antigo quarto. O sol já havia se inclinado mais no céu, sinalizando que o dia avançava rapidamente. Ela suspirou, relutante em sair do aconchego, mas consciente de que suas responsabilidades como chefe não poderiam esperar.
Desceu as escadas, sendo recebida pelo olhar atento de Sigrid, que parecia ter uma pergunta na ponta da língua, mas não fez nada além de oferecer um leve sorriso.
━ Dormiu bem? ━ perguntou a mãe.
━ Sim, foi o que eu precisava. Obrigada, mãe.
━ Então vá. Tenho certeza de que Berk já sente sua falta.
Lenora sorriu, abraçando Sigrid antes de sair às pressas. Pegou sua cesta no caminho e seguiu até Randi, que aguardava pacientemente no espaço aberto próximo à casa.
━ Vamos, garoto. Temos o resto do dia pela frente ━ murmurou enquanto afagava o pescoço escamoso do dragão.
Randi grasnou levemente, como se entendesse. Com um movimento ágil, Lenora montou e prendeu sua cesta com cuidado.
No céu sobre Berk, Lenora sentia o vento contra o rosto, o cheiro do mar e o barulho constante das asas de dragões cruzando os céus. Era uma sensação familiar e renovadora, mas também um lembrete do quanto sua vida tinha mudado desde aqueles dias simples que sua antiga casa trazia à mente.
Ela lembrava de correr pelos corredores da aldeia, de rir das piadas de Cabeça Dura e seus truques bobos, e das aventuras ao lado de Soluço. Agora, era tudo diferente. As responsabilidades eram maiores, mas o desejo de que seus filhos tivessem as mesmas experiências e alegrias crescia mais a cada dia.
━ Eles precisam viver isso ━ pensou em voz baixa, um sorriso se formando em seu rosto.
No santuário, atrás da forja, Lenora aterrissou com habilidade, descendo suavemente da sela de Randi. Ela ajustou a cesta em seus braços e deu uma última olhada para o céu. Viu as figuras familiares de seus amigos e conhecidos em meio ao movimento, cada um ocupado com suas tarefas.
Lenora caminhou até Cabeça-Quente, estendendo a mão para içar sua espada da parede. A empunhadura reforçada brilhou sob a luz e arrancou um sorriso satisfeito de seu rosto. Ela a girou habilmente, verificando o peso e o equilíbrio antes de fazer um corte no ar para testá-la.
━ Ei, Cabeça-Quente, como vão as coisas com Perna de Peixe e Melequento? ━ perguntou, casual, enquanto devolvia a espada ao suporte.
Cabeça-Quente imediatamente revirou os olhos e suspirou de forma exagerada, jogando-se dramaticamente contra a parede da forja.
━ Não me faça começar, Lenora. Eles estão me deixando maluca! O Perna de Peixe não cala a boca sobre os novos desenhos do livro dos dragões e o Melequento… Bem, ele é o Melequento. Ele insiste em transformar cada trabalho aqui na forja em um show de acrobacias que só ele acha impressionante. Ontem, quase incendiou o teto!
Lenora arqueou uma sobrancelha, tentando esconder o riso. Astrid, ao seu lado, soltou uma gargalhada clara ao ver o olhar de arrependimento imediato no rosto de Lenora por ter tocado no assunto.
Leo, que estava apoiado nos cotovelos sobre o balcão, observava a cena com um sorriso divertido. Ele se inclinou um pouco mais para Astrid e cochichou:
━ Quanto tempo você acha que Cabeça-Quente vai continuar com isso?
Astrid, ainda rindo, deu de ombros.
━ Quem sabe? Uns trinta minutos, no mínimo.
━ Eu aposto uma hora ━ Leo retrucou com um brilho malicioso nos olhos.
Astrid estreitou os olhos para ele.
━ Uma hora e dez minutos.
Léo se fingiu pensativo antes de retrucar:
━ Uma hora, dez minutos e dois segundos.
Astrid franziu a testa.
━ Você é um idiota.
Léo sorriu.
━ E você acabou de estender minha aposta para uma hora, dez minutos e três segundos. - Ai!
Astrid resmungou, empurrando-o levemente com o ombro, enquanto o rapaz ria.
Lenora observava a troca, escondendo um sorriso. Era evidente que os dois se divertiam implicando um com o outro, algo que parecia mais leve do que os desafios diários em Berk.
Astrid, por um momento, desviou o olhar para Leo, que ainda ria de seu próprio comentário, e percebeu algo. Ele tinha mudado muito desde a época em que era um viking mais distante, tentando se provar constantemente. Leo agora era genuíno, despretensioso, e de alguma forma, isso o tornava mais interessante.
Ele não era como os outros homens que já tentaram impressioná-la com gestos grandiosos ou arrogância. Não, ele era diferente. Astrid percebeu que sempre havia gostado desse lado mais autêntico de Leo, mesmo quando eram mais jovens. Agora, ela admirava quem ele tinha se tornado.
━ Sabe, você ainda é um bebê chorão ━ disse ela, com um meio sorriso, empurrando-o novamente.
━ Talvez ━ respondeu Leo, piscando para ela com um ar travesso. ━ Mas sou um bebê chorão que está certo sobre o tempo do monólogo do Cabeça-Quente.
Os dois riram, enquanto Cabeça-Quente continuava seu discurso interminável ao fundo, totalmente alheia à aposta.
Toda a conversa parou quando Soluço entrou no local com uma carranca no rosto, o peso da preocupação evidente em sua expressão. O burburinho cessou, e todos na forja voltaram sua atenção para ele.
━ Tem alguém aqui ━ ele anunciou gravemente, a voz carregada de tensão.
Lenora se endireitou de imediato, os ombros rígidos e a respiração prendendo por um instante.
━ O quê? ━ Bocão levantou a viseira do capacete, espiando por trás de um conjunto de dentes de pesadelo monstruoso.
━ O quê?! ━ repetiu Nora, ecoando a mesma perplexidade.
Soluço não perdeu tempo, continuou com a voz firme:
━ Ele conseguiu passar pelos nossos batedores e armou uma armadilha na floresta.
Os olhos de Lenora se arregalaram, e sua respiração ficou suspensa. Ao seu lado, Cabeça-Quente apertou os punhos com raiva, o rosto contorcido em indignação. Astrid trocou um olhar carregado com Leo, ambos com a mesma mistura de choque e fúria.
━ Uma armadilha? ━ Lenora ecoou, a incredulidade clara em sua voz. ━ Uma armadilha de dragão?
Soluço assentiu, a expressão ainda séria. Ele abriu a boca para explicar mais, mas foi interrompido quando Cabeça-Dura agarrou algo da sacola de Soluço e brandiu na frente de todos, o rosto lívido de raiva.
━ Isso! Foi isso que ele deixou! ━ Cabeça-Dura gritou, antes de jogar o objeto com força contra a parede.
O dardo atingiu uma viga de madeira com um som oco, errando por pouco o rosto de Eret, que cambaleou para trás surpreso.
━ Ei! ━ Eret protestou, estreitando os olhos para o projétil preso à madeira. Ele se aproximou cautelosamente, observando o brilho arroxeado que emanava do dardo.
Com dedos cuidadosos, ele o retirou da viga, analisando o objeto com seriedade.
━ Isso não é coisa de amador ━ murmurou ele, enquanto girava o dardo entre os dedos.
Bocão, que havia ficado quieto até então, explodiu, brandindo as mãos em frustração:
━ Deixe-me pegá-lo! ━ Ele gritou, avançando, mas Soluço o deteve com uma mão firme em seu ombro.
━ Uau, devagar, Bocão! ━ Soluço exclamou. ━ Vamos ser estratégicos. Colocaremos uma equipe de busca no chão e batedores no ar.
Ele se virou para Astrid:
━ Você e Tempestade lideram o time A. Fiquem atentos.
Astrid assentiu prontamente, já chamando Tempestade para preparar o voo.
━ E nós? ━ Lenora avançou, a determinação clara em seu tom.
━ Banguela e eu voaremos pela costa ━ respondeu Soluço, que havia retomado o comando da situação.
━ Randi e eu iremos com você ━ Lenora afirmou, sem dar espaço para objeções.
Soluço hesitou por um momento, mas ao encontrar o olhar resoluto de Lenora, soube que seria inútil tentar dissuadi-la.
━ Certo ━ ele concordou. ━ Mas precisamos ser rápidos e eficientes. Não podemos deixar esse caçador se aproximar mais de Berk.
Eret olhava para o dardo em sua mão como se fosse um velho inimigo reencontrado. Ele suspirou e declarou, com um tom grave que silenciou qualquer murmúrio restante:
━ Eu não aconselharia levar seus dragões para lugar nenhum, chefe.
Os cavaleiros franziram a testa, trocando olhares confusos, antes de voltarem a atenção para ele. Soluço deu um passo à frente, as sobrancelhas arqueadas.
━ Por que não? ━ perguntou, sua voz carregando um tom de preocupação e dúvida.
Lenora, ao lado de Soluço, sentiu uma mistura de emoções crescendo dentro dela. Confusão, preocupação, e algo próximo à raiva começaram a fervilhar.
Eret levantou o dardo, analisando-o por um instante antes de dizer:
━ Eu conheço esse trabalho manual. ━ Ele fez uma pausa, como se o peso do nome fosse difícil de dizer. ━ Grimmel, o Cruel.
O silêncio que se seguiu foi denso e inquietante. Nenhum deles havia ouvido aquele nome antes, mas algo no jeito como Eret pronunciou “Grimmel” carregava o peso de um trovão prestes a desabar.
━ Quem? ━ perguntou Astrid, franzindo a testa enquanto cruzava os braços.
━ Famoso de onde eu venho. ━ Eret continuou, o tom sombrio. ━ O caçador de dragões mais inteligente que já conheci. Bem, depois de mim, é claro.
Melequento soltou um revirar de olhos tão dramático que poderia ser ouvido.
━ Não pode ser tão inteligente assim ━ provocou Soluço, com um meio sorriso, tentando aliviar o peso no ambiente.
Eret ignorou o comentário e passou o dardo para Lenora. Ela o pegou, analisando a peça cuidadosamente. Seu polegar roçou a base grossa e estriada, a substância roxa dentro piscando perigosamente sob a luz. Ela não gostou nem um pouco do que via.
━ Ele deixou a armadilha desarmada ━ comentou Soluço, quase em tom de dúvida.
Eret riu, mas o som estava longe de ser reconfortante.
━ Nada é acidental quando se trata do velho Grimmel. ━ Ele suspirou e passou os olhos pelo grupo, fixando-os em Banguela, que estava sentado observando o céu, a mente claramente longe dali. Randi estava ao lado dele, limpando suas asas, mas até ele parecia inquieto.
Lenora engoliu em seco. Um nó se formava em sua garganta enquanto observava os dragões, quase como se já pudesse sentir a ameaça iminente pairando sobre eles.
━ Ele vive para a caça. ━ A voz de Eret voltou a preencher o silêncio. ━ Entra na mente de sua presa, controla cada escolha que ela faz.
Ele se virou para o grupo, a seriedade em seus olhos perfurando cada um deles.
━ É tudo um jogo para ele.
Lenora trocou um olhar com Soluço. Ele estava tenso, mas ela viu a determinação em seu rosto. Apertando o maxilar, ela deu um passo à frente, encarando Eret com firmeza.
━ É, bem, esse Grimmel, o Cruel, não tem ideia com quem está se metendo ━ declarou, sua voz firme como aço.
Os olhos de Soluço se voltaram para ela, e a confiança que ela exalava pareceu renovar a dele. Ele deu um leve sorriso antes de acrescentar:
━ Nós já lidamos com caçadores antes.
Eret balançou a cabeça devagar, como se soubesse de algo que eles não sabiam.
━ Não o subestime, Soluço. ━ Ele apontou o dardo para o chefe antes de guardar cuidadosamente a peça. ━ Marque minhas palavras: ele vai voltar.
O silêncio caiu novamente, mais pesado do que antes, mas a determinação nos olhos de Lenora e Soluço era clara. Grimmel podia ser cruel e astuto, mas eles já haviam enfrentado desafios impossíveis antes. E estavam prontos para enfrentá-lo juntos.
A NOITE SE INSTALARA SOBRE BERK, escura e silenciosa, com apenas o som ocasional de dragões ajustando-se em seus poleiros ou o estalar distante das ondas contra os penhascos. A sugestão de Astrid de manter a ameaça de Grimmel em segredo por enquanto parecia prudente. Uma histeria generalizada seria desastrosa para a vila, ainda mais com a proximidade do inverno, quando os ânimos já estavam à flor da pele.
Para Lenora, o segredo também significava proteger mais do que apenas o povo e os dragões. Significava proteger a pequena vida que crescia dentro dela. O pensamento deu um aperto em seu peito enquanto ela caminhava de volta para casa sob o manto da noite.
Seu coração bateu forte enquanto ela se aproximava pela entrada dos fundos, os passos furtivos contrastando com o leve tilintar de sua armadura e o peso da espada pendurada ao lado. Ela lançou um último olhar em direção ao centro da vila, onde sua antiga casa ficava. Por um breve momento, considerou se deveria ter ficado com sua mãe naquela noite, mas descartou a ideia rapidamente. Ela precisava estar ali, ao lado de Soluço.
Ao virar a esquina, ficou surpresa ao encontrar Soluço do lado de fora da casa, sentado no degrau de madeira sob o telhado inclinado. Não era o plano, e ela franziu a testa com preocupação enquanto avançava em sua direção, o silêncio da noite abafando o som de seus passos.
A visão dele ali, com os cabelos desarrumados pelo vento e o olhar perdido na escuridão, trouxe um turbilhão de lembranças. Quantas vezes, quando eram mais jovens, ela o encontrara assim, esperando por ela do lado de fora de sua casa? A diferença agora era o peso das responsabilidades que carregavam.
Quando ela chegou perto, Soluço levantou o olhar e deu um pequeno sorriso. Ele se inclinou para frente, segurando a mão dela com delicadeza, o couro frio de sua luva contrastando com o calor reconfortante do toque dele.
━ Você está bem? ━ ele perguntou, a preocupação evidente em sua voz.
Lenora sorriu de leve, apertando a mão dele.
━ Estou. E você?
Soluço hesitou antes de responder, seu olhar desviando para o horizonte.
━ Eu não posso convencê-la a ficar com sua mãe, pelo menos por enquanto? ━ Ele sugeriu, sua voz baixa e cautelosa.
Lenora sabia que ele falava mais por preocupação do que qualquer outra coisa, mas mesmo assim deu um sorriso reconfortante.
━ Soluço, tudo vai ficar bem. ━ Sua voz era firme, mas suave. ━ Ele será como todos os outros que enfrentamos antes. Nós sempre conseguimos superar juntos.
Ele balançou a cabeça, ainda inquieto.
━ E se essa ideia for estúpida? ━ ele sussurrou, quase para si mesmo.
Lenora arqueou uma sobrancelha, puxando a mão dele para apertá-la com mais força.
━ Não é sempre assim? ━ rebateu ela, sua provocação leve arrancando uma risada baixa e sincera dele.
━ Talvez seja. ━ Ele sorriu, finalmente relaxando um pouco.
━ Nós ficaremos bem, Soluço. ━ Lenora segurou o rosto dele, forçando-o a olhar diretamente para ela. ━ Eu acredito em você. Sempre acreditei.
Os olhos de Soluço suavizaram, e ele inclinou a cabeça contra a dela por um breve momento de silêncio compartilhado.
━ Obrigado ━ ele sussurrou.
Lenora e Soluço trocaram um último olhar antes de se separarem. Ambos fizeram uma promessa de que ficariam bem, apesar da incerteza que pairava entre eles. Lenora se afastou em direção à lateral da casa, onde uma janela aberta a aguardava, enquanto Soluço caminhava pela porta da frente com passos firmes, mas pesados.
Ela se moveu rapidamente, subindo pela janela com agilidade. O ar noturno era frio e úmido, e o silêncio da vila parecia mais profundo do que o habitual. Com um impulso, Lenora alcançou o telhado e se puxou para cima, as botas firmemente plantadas contra a madeira.
Enquanto ajustava a armadura, ela hesitou, deixando a viseira do capacete levantada. Algo naquela noite parecia... errado. Um pressentimento sombrio a percorreu, como se estivesse prestes a perder algo muito importante. Era uma sensação que ela não conseguia explicar, mas que a aterrorizava profundamente.
Respirando fundo para afastar o desconforto, Lenora abaixou a viseira, permitindo que a máscara de coragem assumisse o controle. Ela era a líder agora, e não podia permitir que seus temores transparecessem.
Com cuidado, ela rastejou pelo telhado até encontrar uma posição vantajosa, onde pudesse observar o que estava acontecendo abaixo. A estrutura do telhado fornecia cobertura suficiente para que ela ficasse oculta, mas ainda tinha uma visão clara de tudo à sua frente.
Poucos metros de distância, Lenora avistou Leo, que já estava posicionado, misturando-se quase perfeitamente com a escuridão ao redor. Sob a luz trêmula das tochas, ele parecia mais um dragão espreitando do que um viking.
Ele virou a cabeça em sua direção e acenou levemente, seus olhos brilhando com determinação. Lenora retribuiu o gesto, sentindo um breve alívio ao saber que não estava sozinha naquela missão.
Lá embaixo, os primeiros sons começaram a surgir. Movimentos furtivos, leves estalos de galhos quebrados e o farfalhar de tecido contra o vento. Lenora franziu a testa, ajustando sua posição para garantir que pudesse ver claramente.
O coração dela martelava no peito, mas sua respiração se manteve constante. A adrenalina que corria em suas veias era familiar, mas havia um peso adicional naquela noite, algo que ela não podia ignorar.
Na penumbra, Lenora esperou, os olhos fixos na cena que se desenrolava abaixo, enquanto cada fibra de seu ser se preparava para o que estava por vir.
A tensão estava no ar, pesada e sufocante, enquanto Lenora observava tudo de seu ponto estratégico, escondida nas sombras do telhado. Ela sabia que o perigo estava perto, que a qualquer momento Grimmel poderia aparecer, mas não tinha ideia de que ele fosse tão audacioso. Quando o som do rangido da porta que indicava a entrada de Soluço ecoou pela casa, ela sentiu um calafrio percorrer sua espinha. Tudo parecia estar indo conforme o planejado, mas uma sensação crescente de desconforto e insegurança a fazia questionar se tudo estava sob controle.
Ela ajustou sua posição, tensa, ouvindo atentamente os sons ao redor, quando o barulho de poeira caindo a fez esticar os sentidos. O ar parecia mais espesso, mais denso. Ela não podia negar, algo estava errado. Soluço estava ali, aparentemente tranquilo, mas o nervosismo de Lenora era palpável. Cada movimento, cada som, a fazia questionar a segurança da vila.
Ao seu lado, Leo parecia igualmente tenso, mas seu foco estava em Soluço, não na crescente apreensão no ambiente. O segundo conjunto de poeira que caiu fez Lenora virar-se rapidamente, pronta para repreender o irmão, mas ao vê-lo parado, confuso, seu estômago apertou. Algo não estava certo. De repente, a sensação horrível voltou a crescer na garganta de Lenora. Ela virou a cabeça novamente, seus olhos buscando o que quer que estivesse causando essa sensação.
Foi então que ela ouviu. Um som longo e baixo, como algo arranhando a madeira do telhado, tão sutil que poderia ter sido ignorado, mas não por ela. Ela ficou imóvel, tentando identificar o som. Mas nada mais aconteceu. O silêncio pairou, pesado, como se todos os sons do mundo tivessem sido engolidos pela escuridão. Lenora sentiu sua respiração se prender, mas não cedeu à ansiedade. Ela permaneceu focada, seus olhos percorrendo cada canto da sala abaixo, até que o som de vinho sendo servido interrompeu o silêncio.
O movimento de Soluço, saltando de repente de seu lugar, fez Lenora se enrijecer, o instinto de luta e fuga ativado instantaneamente. Ela observou o rosto de Soluço, que agora estava tenso e alerto, e o som de sua espada flamejante cortando o ar a fez sentir uma onda de proteção, mas também de preocupação. O brilho da lâmina iluminou o quarto, e foi então que ela viu. Lá, nas sombras, uma figura que nenhum deles havia notado antes. Ele estava tão discretamente presente que parecia ter se materializado do próprio ar. O homem era alto, magro, coberto de couro negro, e seu rosto, envelhecido e tenso, parecia um espectro.
O silêncio foi quebrado por sua voz, fina e cantarolante. Ele falou com uma calma desconcertante, como se estivesse em casa, como se estivesse sempre ali.
━ Oh, espero que você não se importe se eu me servir ━ disse Grimmel, o cruel, com um sorriso enigmático no rosto, enquanto tomava um gole de sua bebida com desprezo.
A presença de Grimmel era quase palpável, como uma sombra que se estendia sobre todos eles. Ele havia aparecido de uma forma que ninguém poderia ter antecipado, e o medo que Lenora sentia era profundo. O caçador de dragões estava ali, no centro da casa de Soluço, com um olhar calmo e cruel, pronto para jogar o jogo que tanto desejava. Lenora sabia que o perigo havia chegado. E agora, mais do que nunca, ela e todos ao seu redor teriam que lutar com tudo o que tinham para proteger o que mais amavam.
Feliz Natal 🎅🏻
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