Pulo da Meia-noite

Corria ofegante pela floresta adentro, não conseguia ver nada, estava sendo guiado pelo graveto enfeitiçado, numa versão sombria do pica-pau procurando petróleo.

Felipe avisou a Lucas que as criaturas da noite tinham um tipo, agora ele podia finalmente sustentar seu argumento já que o bonitão havia sido sequestrado pela quinta vez desde que começaram com esse negócio de perseguir um coven de bruxas.

Tudo bem que nas duas primeiras vezes, foi Felipe quem o usou como isca sem avisar, certo, isso não foi muito legal, mas funcionou, entretanto agora não era um dos casos, de fato quanto mais se aprofundavam e conheciam esse mundo, mais eram conhecidos e algumas vezes até esperados, como se elas o tivessem marcado, como se agora, eles não atraíssem somente aquelas bruxas, mas todas as lendas de seu folclore, que agora, eles sabiam, não eram somente lendas.

Felipe tinha de dar crédito a comunicação do mal, eles tinham uma rede e tanto, será que combinavam os rituais e sacrifícios por um grupo de whatsapp? Balançou a cabeça, não tinha tempo para divagar quando seu amigo estava sendo arrastado por uma criatura maligna, nojenta, com oito pernas e metade do corpo de uma mulher.

Muitas vezes não sabiam se o que entravam em seu caminho durante a caça aquele coven eram monstros, demônios, criaturas mitológicas ou experiências genéticas malsucedidas, por que, caramba, era cada coisa que encontravam por aí, que Felipe estava começando a questionar sua realidade.

Sua manga direita foi agarrada por um galho, o fazendo dar um tranco antes de parar por estar muito rápido, olhou mais de perto, não era somente um galho, ele estava sujo com algo pegajoso e grudento que deu trabalho para Felipe se soltar, parecia uma teia de aranha super vitaminada.

Pegou na mochila um frasco para retirar uma amostra, seria legal entregar a Débora, não que ele quisesse vê-la nem nada, eles não podiam contar exatamente o que faziam para ela, mas de vez em quando pediam ajuda com uma amostra ou outra e por ser a única cientista que conheciam, ela ajudava muito identificando amostras de solo, animais, isso ajudava eles a seguir o rastro identificando locais, claro que sempre que a viam, Felipe não deixava de tentar flertar com ela, o que podia fazer? Não se encontrava muitas garotas legais por aí, não no seu ramo.

Agora de volta a ação, certo, Lucas, mulher aranha, salvar melhor amigo, bora lá, só mais um dia comum de trabalho.

***

"Cala a boca Felipe, essas criaturas não tem 'um tipo', isso é ridículo."

Lucas gesticulava enquanto se enchia de torta de uma pequena lanchonete de beira de estrada, estavam dirigindo no meio do nada já havia alguns dias.

"Ah sim, falou o senhor fortão com uma pegada militar que as garotas adoram."

Como que para reforçar seu argumento, a garçonete, de uma idade entre os quarenta anos, voltou rebolando e sorrindo para a mesa deles, mais para Lucas claro, elas nunca queriam o magrelo inteligente com olheiras por passar a noite lendo livros de rituais e feitiços.

"Então rapazes? Estão satisfeitos, o que acharam da nossa torta? Posso servir mais se quiserem."

Disse tudo enquanto inclinava o decote para Lucas e apoiava uma mão em seu ombro, quase como uma carícia.

Colocando mais uma garfada na boca, meio que sem vontade, pois sua torta estava quase inteira ainda, Felipe sorriu para Lucas com uma sobrancelha levantada, Lucas o fuzilou com o olhar e engolindo em seco respondeu.

"Não obrigado, estamos bem."

"Certo, podem chamar se precisarem de qualquer coisa."

Piscou antes de sair para Lucas que quase engasgou com a torta, pegando sua garrafa de refrigerante sem marca e bebendo um gole.

"Eu disse."

Felipe sorria zombeteiro.

"Cala a boca."

***

Agora Lucas teria de admitir finalmente, já que a garçonete que deu em cima dele se tornou essa criatura grotesca que o arrastou para floresta, assim como já havia feito várias outras vezes com diversos homens.

Aos poucos desacelerou o passo, estava chegando perto, o graveto em formato de Y tremia em sua mão tão rápido que quase o deixou cair, ao invés disso o quebrou, antes de jogar no chão, já tinha servido ao propósito.

Foi chegando devagar perto da clareira, era pequena e circular, e toda coberta pelas copas das árvores, Felipe não conseguia ver o céu iluminado pelas estrelas.

No meio estavam diversos casulos de teias esbranquiçadas que se destacavam na escuridão, Felipe observou de longe, nenhum sinal dela, ele torcia para Lucas estar bem em um daqueles casulos.

Adentrou rápido pela clareira, não tinha tempo para ponderar, pegou uma faca e abriu o primeiro casulo, um cheiro pútrido atingiu seu nariz enquanto fluidos escorriam do casulo cortado liberando um corpo que caiu mole já que estava em decomposição.

Felipe quase engasgou, mas ignorou o enjoo e foi para o próximo, quando ia cortar sentiu um arrepio na nuca, olhou para cima, olhos pretos o encaravam com uma boca semi-humana rasgada em garras.

Não teve tempo de se defender, a criatura o agarrou o jogando no chão e ficando em cima dele, ela o prendeu com as pernas de aranha e seu corpo corpulento pesava sobre Felipe.

"Com ciúmes por que escolhi seu amigo primeiro? Não se preocupe, aquelas que me mandaram acabar com suas vidas querem os dois mortos."

Aquelas que me mandaram? Felipe pensava freneticamente, afinal, não eram somente os caçadores, tinham virado a caça, elas sabiam deles, o coven estava mandando essas criaturas para mata-los.

A máscara humana voltou por um momento, ela se inclinou e lambeu do queixo a orelha de Felipe.

"Gosto desses olhos, talvez eu deixe você durar mais só para vê-los."

"Não obrigado."

"Não?"

Sussurrou em seu ouvido como uma pergunta, Felipe sentia seu rosto pegajoso, aquilo ia demorar para sair, bem não teria de se preocupar em tirar a gosma, já que parecia que não sobreviveria mais um dia.

"Está bem então."

Se afastou um pouco de Felipe, ficando a um palmo de seu rosto, abriu a boca e da garganta emergiram presas que clicavam, fazendo um som de inseto, enquanto a máscara humana era rasgada.

Casete, agora acho que me ferrei.

Quando o rosto não era mais um rosto e sim totalmente uma criatura grotesca, Felipe se preparou para o golpe, não fecharia os olhos, não lhe daria esse prazer, ele a enfrentaria face a face, engoliu em seco, enfim veria seu irmão novamente.

Em um piscar Felipe estava livre, uma cobra gigantesca com uma couraça brilhante, quase flamejante, brilhava em fogo, agarrou a criatura aracnídea, primeiro a quebrando entre seu aperto em um estalo audível, depois começou a engolir por inteiro, Felipe ficou enjoado com a visão, mas se levantou aguardando.

Quando terminou a cobra se virou lentamente para Felipe o encarando, olhos em chamas o encaravam, ele não estava preocupado, a muito havia descoberto que aqueles olhos enlouqueciam somente aqueles que ela queria, mas aqueles que a ajudavam ela os poupava.

A cobra se aproximou, Felipe ainda podia ver o corpo da mulher aranha descer lentamente sendo ingerido, ele não se importaria em ser poupado da visão, uma língua passou por seu rosto, como se quisesse limpa-lo da baba que a outra deixara.

"Você sabe que não gosto disso."

Felipe disse um tanto sério. A cobra pareceu sorrir.

"Eu sei."

Uma voz feminina saiu da boca da cobra, enquanto ela mudava perante a visão de Felipe, ele sabia que aquilo não poderia passar de uma ilusão, que ela podia ser um homem baixinho, barbudo e gorducho se quisesse, mesmo assim, sempre o pegava desprevenido o roubando um folego quando via a bela mulher, ruiva dessa vez, em um vestido de fogo a sua frente.

"De nada aliás, vocês jovens não sabem ser educados mesmo, não é?"

Levantou a sobrancelha se aproximando de Felipe, passou as costas da mão por seu rosto.

"Obrigado."

A mulher fez um bico como uma criança birrenta.

"Poderia ser um pouquinho mais receptivo, não acha? Já que estamos sempre nos encontrando."

Ela dizia enquanto rodeava Felipe, acariciando seus ombros em uma espécie de massagem, parou à suas costas, deslizando sua mão pelo tórax de Felipe.

"Ou é você que está sempre nos seguindo."

Levantou a sobrancelha encarando a mulher pelo canto do olho, ela sorriu o abraçando, depois sussurrou.

"Talvez."

Parecendo mais séria, continuou.

"Bem, você ouviu, a mulher disse que foi mandada, elas a mandaram mata-los, vocês têm que ser mais espertos, não vão conseguir fugir para sempre, se não as pegarem, elas os pegarão. E eu não posso bancar a babá sempre."

Felipe pigarreou, sabia que não poderia irritá-la, mas tinha que acabar logo com isso.

"Sim, eu entendo, mas então, o que quer dessa vez?"

Ela se afastou um pouco frustrada.

"Só negócios, hum? Com você é sempre só negócios."

"Bem, você não acabou de me salvar por simples gentileza."

"Talvez eu goste mesmo de você, já pensou nisso?"

Não, Felipe não queria pensar nisso, isso causava-lhe arrepios, a mulher ficou a sua frente, com os braços em torno de seu pescoço o encarando.

"Certo, tudo bem, tem algo sim, uma informação que acho que você vai gostar."

"É mesmo, da última vez você disse o mesmo e não foi muito bem como pensei."

"Bem eu posso me enganar as vezes, mas enfim, dessa vez acho que você vai gostar mesmo, um Saci foi invocado."

Ótimo, era o que eu precisava, pensou Felipe com sarcasmo. Sacis eram invocados diversas vezes, e em muitas delas as pessoas nem sabiam o que tinham feito, eles já haviam lidado com dois deles.

"Não me olhe com essa cara, como se não fosse nada importante."

"Certo, mas é só mais um Saci, o que tem demais?"

"Não me subestime garoto."

Por um momento seus olhos estreitaram em uma expressão sombria, fogo flamejava por eles, Felipe podia ver seu interior como se estivesse hipnotizado, não ousou se mexer, nem piscar, com medo de despertar sua ira, esperou o próximo movimento. Ela sorriu.

"Uma delas o invocou."

Arregalou os olhos.

"Quer dizer...?"

"Sim, tenho certeza que ela pertence aquele coven. Sabe como não gosto de imigrantes ilegais nas minhas terras e elas já estão a tempo suficiente aqui. Por isso esse meu interesse em ajuda-los, sabe que não posso encontrar as malditas sozinha... elas têm algo que me repele."

Ela tinha uma expressão sombria, Felipe descobriu que ela odiava tanto aquelas bruxas, quanto ele mesmo.

"Certo, eu... nós temos que ir para onde exatamente?"

"Não muito longe, em uma cidadezinha chamada Doresópolis, elas parecem gostar desse estado."

"Ah, ok, obrigado por tudo."

Ela sorriu se aproximando ainda mais, deslizando suas mãos pelo peito de Felipe, ele sentia o calor passar através das roupas.

"Eu ganho só isso? Um simples 'obrigado' e nada mais?"

Não cairia nessa, ela era esperta, mas Felipe já aprendera a lidar com ela.

"Sinto muito, por hoje é somente um 'obrigado', você sabe, eu não a chamei dessa vez, por mais que esteja grato por ter aparecido."

Revirou os olhos suspirando.

"Tudo bem dessa vez passa, quem sabe da próxima, não é?"

Sorriu se aproximando do seu rosto, Felipe sentiu os lábios roçarem sua bochecha em um beijo quente que arrepiou sua pele, ele tinha de ser grato por ela parecer gostar dele, se não já estaria morto há muito tempo.

"Melhor ir, estou muito longe de casa, como deve saber, e tem um grupo em especial de lenhadores que quero pegar ainda hoje, até mais jovem caçador, ainda nos veremos por aí, pode ter certeza."

Enquanto se afastava, a forma da cobra voltava enquanto a da mulher sumia diante de seus olhos, por essas e outras que Felipe não confiava em arranjar uma namorada.

***

Argh, como podia sempre cair nessas enrascadas? Lucas se perguntava enquanto era envolvido pela teia pegajosa, talvez Felipe estivesse certo e essas criaturas tinham um "tipo", na maioria das vezes era sempre Felipe que os salvava, segundo ele força bruta não era lá muito útil já que "Só magia, derrota magia." Perfeito, mas algumas vezes a força de Lucas era útil, assim como naquele momento.

A mulher aranha não pareceu o prender muito bem, tinha pressa em colocá-lo lá e sair, Lucas ficou com os ouvidos atentos, esperando, até que ouviu Felipe chegar, mas antes que pudesse chamar pelo amigo ele pareceu ser pego pela criatura, Lucas podia ver os vultos através das teias mal intricadas, ele começou a rasgar seu caminho para fora, tinha de ser rápido para ajudar Felipe.

Assim que se libertou uma enorme serpente pegou a mulher aranha e a enrolou e depois engoliu, droga ela de novo, Lucas não ousou se mexer, somente Felipe sabia lidar com ela e também, ela parecia não gostar de Lucas, então ele ficaria em silêncio e confiaria que o amigo sairia dessa.

Depois de engolir a mulher, Lucas ainda via o corpo passando por dentro da grande cobra flamejante, ela ficou cara a cara com Felipe, sua linga bifurcada passou pelo rosto de Felipe, Lucas fez uma careta, depois um sibilo alto parecia vir de dentro da garganta da cobra como se conversasse com Felipe, aos poucos a cobra o rodeava e enrolava ao seu redor, quase carinhosamente, Lucas esperou tenso, a qualquer momento ela poderia esmaga-lo e Lucas não poderia fazer nada. Ele ouvia o amigo responder ao sibilo como se entendesse tudo, como se estivessem em uma longa conversa.

Por fim, pelo que pareceu uma eternidade ela o deixou, seu corpo desenrolou de sua volta e adentrou na floresta escura.

Felipe ficou parado como se estivesse congelado. Lucas se aproximou tocando em seu ombro.

"Cara, você está bem?"

Ele o olhou como se não o visse, depois seus olhos piscaram como se para se acostumar com a escuridão ao seu redor.

"Eu... Lucas, você está bem, conseguiu sair."

"É, força bruta as vezes é útil quando se tem que sair de um casulo de uma mulher aranha doida."

"É, talvez."

"Mas, cara, ela de novo? Você não a chamou ou...?"

"Claro que não, sabe que não brinco com isso. Acho que ela está nos observando."

"Isso é bom o ruim? Por que está longe de ser legal ver uma cobra gigante se enrolar em você."

"Você realmente não a vê, não é?"

Lucas sentia pelo amigo, que desde a primeira vez que a encontraram ele viu uma bela mulher vestida como fogo que Felipe descreveu para Lucas, mas este por sua vez somente via a cobra gigantesca.

"Sinto muito, mas não, eu só vejo a serpente."

"Bem... isso não importa, vamos temos trabalho a fazer."

"E o que foi isso que acabamos de fazer?"

"Você diz ser capturados e quase morrer?"

Lucas bufou irritado.

"Dessa vez temos trabalho de verdade, um Saci para pegar e um coven para encontrar."

Lucas entendeu, parece que a cobra havia dado uma boa pista para eles, afinal não foi tão ruim a sua visita, talvez Lucas devesse se acostumar com essas criaturas de lendas e mitos, pois as vezes, elas eram úteis para salvar suas cabeças.

"Certo, vamos pegar esse Saci então."

***

A estrada estava escura, em muitas cidades do interior de Minas Gerais não havia luz nas estradas, somente as que vinha dos carros, Felipe remexia em sua mochila verificando os itens que precisariam repor, enquanto Lucas dirigia atento a tudo, olhou de relance para fora do seu vidro e viu um vulto branco na beira da estrada, ignorou como se não tivesse visto, não iriam se meter com assombrações de estradas novamente, já haviam tido experiências o suficiente, ficou feliz por Felipe estar distraído e não ver.

Um frasco caiu da mochila no tapete do carro.

"Isso é pra Deb? Você sabe que eu acho, você deveria falar com ela, não só flertar de brincadeira."

"Até parece que é fácil assim."

"Bem, talvez seja."

Lucas queria que o amigo vivesse um pouco também, não só que ficasse obcecado em perseguir um coven de bruxas do mal, não fazia bem para ele, nem para Lucas, pensou em Beatriz e em como ficou arrasada com o cancelamento do casamento, ele não poderia explicar para ela o que estava acontecendo, não com eles cada vez mais presos até o pescoço em rituais e caça de criaturas sombrias.

Mesmo que Felipe não pudesse ter um relacionamento sério, seria bom estar com alguém pelo menos por algumas horas, para tirar a mente de toda aquela bagunça. Suspirou.

"Eu sei que não podemos contar à ninguém, que estamos presos nessa vida, pelo menos por enquanto, mas não significa que você tem que se isolar totalmente e não ter contato com ninguém."

Silencio.

"Não é tão fácil para mim estar com alguém, eu só não sei o que fazer, flertar e brincar tudo bem, mas depois eu fico perdido, e quando isso acontece, a minha reação natural é me esconder."

"Acredite, todos nós nos escondemos ou temos algo a esconder, só tenta tá legal, não estou falando de achar o amor da sua vida, só pra tentar se distrair um pouco."

"Como você..."

"Nem ouse terminar essa frase."

Os dois riram sonoramente, esses pequenos momentos descontraídos eram, o que talvez, fazia tudo valer a pena, que compensava aquela busca maluca, Lucas sonhava que no fim eles poderiam ter uma vida tranquila com suas famílias, algum dia...

"Hey, viu a placa? Parece que chegamos, o que acha?"

"É isso aí, bem-vindo à Doresópolis. Nome escantador."

"Ache uma rua deserta para estacionar, vamos passar a noite no carro, amanhã inventamos alguma história, eu realmente estou precisando relaxar um pouco."

"Pode deixar que o primeiro turno é meu."

"Valeu cara."

Felipe pulou para o banco de trás, e se acomodou no espaço apertado, podia ser magro e meio esguio, mas ainda era bem alto, então tinha de se espremer, mas estava tão exausto que não demorou a pegar no sono, nem percebeu quando Lucas encontrou um lugar e parou desligando o carro, pelo menos nessa noite esperava apagar sem sonhos ou pesadelos.

***

"Vamos lá, Doresópolis, população: 1.440, pelo menos é o que diz no Google, ocupa a quinta posição das menores cidades de Minas. Ela fica a 249 km de Belo Horizonte, pertence a região Oeste de Minas Gerais. A cidade faz divisa com os municípios de Bambuí, Piumhi, Pains, Iguatama. Já pensou na história, logo vai amanhecer."

"Quase lá, só estou um pouco cansado ainda. Mas acho que o melhor a fazer é ir falar direto com o padre."

"Assim como da última vez em que você quase foi morto em um exorcismo, por que ele achou que você estava possuído? Bem, se que sabe cara, vai em frente, te dou cobertura."

Lucas ria enquanto Felipe fechava a cara em uma careta de desaprovação, de fato, aquele último padre foi um desastre, não seria legal repetir a dose, de forma alguma. Suspirou. Estavam há um bom tempo na estrada sem um descanso decente, depois dessa, teriam, que fazer uma pausa.

"Ok, certo, é melhor você ir dar uma sondada na cidade, no centro comercial, ver se descobre algo."

Lucas levantou uma sobrancelha e disse com sarcasmo.

"Traduzindo: vá até o centro da cidade para ver se chama a atenção de alguma criatura sobrenatural, já que elas tem um tipo."

Felipe deu de ombros, o que poderia dizer? Lucas revirando os olhos decidiu.

"Certo, quer saber? Vamos trocar dessa vez, eu encaro o padre, você investiga a cidade, já estou a tempo o suficiente com você pra decorar a ladainha que você usa pra enrolar os outros."

Saindo antes que Felipe pudesse protestar, Lucas foi em direção a igreja que ficava no centro de um jardim formando um desenho de círculo com um quadrado dentro. Observando sua expressão cansada na janela do carro, Felipe respirou fundo, trancou o carro e foi para o centro da cidade, era hora de trabalhar.

***

"Como eu odeio Sacis. Você é um péssimo amigo, sabia. Te falei pra me lembrar que nunca mais me meteria com eles"

Na primeira vez que foram atrás de um Saci, a peste da criatura fez Lucas andar sonambulo pela cidade e dormir na fonte, detalhe, completamente nu, quando amanheceu eles tiveram que fugir da cidade antes que fossem presos por atentado ao pudor, agora Lucas tentava se mover depois de ter sido coberto de melado e penas de galinha, que fediam, como se tivessem acabado de ser arrancadas.

"Bem, dessa vez você não pode reclamar, eu estou, sem dúvida pior que você, qual cheiro você acha que vai demorar mais pra sair?"

Falava sem abrir os olhos, pois estava completamente sujo de esterco, quase soterrado, somente com a cabeça para fora com a parte que conseguiu limpar, como puderam ver, esse Saci era muito mais poderoso do que qualquer outro que já lidaram, era esperto, astuto, antecipava seus paços antes que eles pudessem andar, parece que ter sido invocado por uma bruxa fazia diferença.

Felipe sabia que tudo tinha sido fácil demais, o padre concordou em abençoar os objetos estranhos e disse que já estava acostumado com certos pedidos, até confidenciou que seria bom ele dizer para algumas senhoras paróquia que tinha dois caçadores de Saci que pegariam a peste e os incidentes parariam de acontecer.

Claro que o padre disse brincando, realmente não acreditava, mas desde que tivesse ajudado com os objetos, já era suficiente.

Infelizmente a primeira tentativa de pegar o Saci foi mais do que mal sucedida, eles foram simplesmente ridicularizados, pensaram que tinham feito uma boa armadilha de Saci e no fim foram eles os capturados.

Enquanto tentavam sair de suas poças, o vento trazia um riso abafado, que somente quem prestava atenção ouvia, aquele desgraçado ria de suas façanhas com orgulho, talvez o fato dele gostar de ficar para assistir fosse ajuda-los a capturar a criatura, Felipe já colocava o cérebro para pensar em um novo plano.

"Merda de coisa grudenta, vem, deixa que eu te puxo."

Estendendo a mãe, Lucas pegou a de Felipe e puxou o amigo para fora da montanha de esterco, Felipe passou a mão nos olhos fechados tentando tirar o excesso.

"Você acha que vão aceitar a gente entrar num hotel assim?"

Perguntava Lucas já sabendo a resposta.

"Com certeza, deve ter muita gente que entra lambuzada de esterco e melado, vai em frente."

Lucas o olhou com aquela cara de "tem uma ideia melhor?", coçando a cabeça, Felipe parecia pensar, tentando enxergar alguma coisa.

"Acho que vi uma bica por ali, vamos, meu nariz não aguenta mais esse cheiro."

Caminharam pela pequena floresta que ficava na parte de trás da cidade, um pouco isolada, até encontrarem a fonte de água e conseguirem se limpar, pelo menos um pouco, teriam de tomar um banho urgente e depois continuariam com a caça.

***

Os dois rapazes pareciam desesperados por aventuras assim como duas crianças, estavam cada vez mais se afundando em um mundo que talvez não fossem gostar do que encontrariam, mas ah, a vingança sempre era tão doce e tentadora, eles pensavam que estavam as caçando, mas eram eles que seriam vigiados.

Fazia muito tempo que estava longe do coven, não participava ativamente dos rituais por alguns motivos particulares que fizeram as outras a banirem, mas quando dois mortais insignificantes destruíam e ridicularizavam sua antiga mentora, você tinha de agir, nem que fosse somente para se provar, pois mesmo não concordando inteiramente com seu estilo de vida diferente das outras e diferente daquilo que lhe ensinaram, a mentora a ajudou, então seria questão de honra vinga-la.

Tudo bem que não se interessava em fazer esses mortais sofrerem mortes horríveis, mas eles teriam de pagar, aos poucos, sem contar que tinha de desvia-los da rota em direção ao coven, eles não poderiam encontrar o centro, seria ruim para os dois lados.

Foi assim que decidiu atraí-los até a sua cidade, gostava daquela pacata cidade escondida de tudo, gostava de ter sua privacidade, mesmo que certas vizinhas fossem fuxiqueiras e tentavam se intrometer em seus assuntos, mas ela sabia muito bem lidar com elas.

O vento começou a acelerar, mais e mais, balançando suas saias com força, um redemoinho se formava ao seu lado, sorriu ótimo, pensou, ele já voltava com notícias e ávido para receber novas ordens, claro, pois quanto mais rápido fosse executar a tarefa, mais rápido ela o libertaria, afinal, não poderia confiar que ele seguiria suas ordens se ela o deixasse completamente livre.

Assim que apareceu a sua frente, na sua forma tangível, perguntou enquanto se mantinha ereto mesmo tendo somente uma perna.

"Minha senhora, o que mais lhe devo para ter minha liberdade?"

"Não se preocupe que não vai demorar muito, será ridiculamente fácil."

Seu sorriso era inocente, sua aparência era amigável, e de fato, poderia não ser a pior entre elas, mas também, não era a melhor.

***

"Você é um completo inútil!"

Felipe gritou enquanto batia a porta do carro ao entrar.

"Eu sou o inútil?!"

Lucas gritou de volta, eles estavam fazendo uma pequena cena perto da igreja.

"Eu sempre tenho que te salvar de tudo, você mais parece uma criança indefesa!"

"Olha quem fala, você só está vivo até agora por que tem ajuda das suas amiguinhas não é mesmo?!"

"Vai se ferrar Lucas, pode se virar sozinho a partir de agora!"

Jogou a mochila pela janela com os equipamentos dentro e uma peneira amarrada, acelerou e saiu cantando pneu com o carro. Lucas ainda gritou enquanto o carro seguia rua abaixo.

"E eu vou sim! Pode apostar que vou lidar com tudo sozinho!"

Pegou a mochila com força e saiu pisando forte em direção ao salão ao lado da igreja, o padre tinha deixado os dois usarem para dormir, entrou no salão e bateu a porta, deixando as pouca testemunhas da discussão um pouco atônitas, sem entender o que havia acontecido.

***

Felipe tentava segurar o riso enquanto dirigia apressado, a pequena encenação tinha sido melhor do que imaginava, estava torcendo para morderem a isca, escondeu o carro perto da entrada da cidade, pegou o que precisava e voltou correndo por uma trilha meio escondida que descobriu ter sido aberta para peregrinos seguirem direto à igreja, o que iria vir bem a calhar.

A noite estava escura, com o luar encoberto pelas nuvens que pareciam trazer chuva, ventava bastante também naquele dia, fazendo as árvores se sacudirem com violência, mas a muito Felipe não tinha medo de andar em uma mata agourenta, já tinha visto coisas piores para temer a floresta, na verdade se sentia até reconfortado quando sentia a energia boa que emanava das árvores.

Ofegou cansado, era mais longe do que esperava, mas enfim chegou ao galpão ao lado da igreja que servia de salão para as festas da comunidade, não era muito grande, mas tinha um porão que com uma pequena abertura escondida do lado de fora, poderia ser alcançada com uma escada.

Sem ser visto, Felipe subiu a escada e se espremeu pela abertura. Aguenta aí amigão, tô chegando, pensava enquanto se embrenhava pelo sótão da igreja, que não era totalmente fechado, era como um patamar acima, com uns dois metros de largura da parede até o centro, então tinha uma visão clara do salão, onde podia ver as duas portas, uma oposta a outra.

Lucas caminhava logo abaixo, podia ouvir os paços, estava um pouco inquieto, sempre ficava assim quando executava os planos de Felipe, bem ele não poderia culpa-lo, não sabia se ele mesmo confiaria nesse plano, se não fosse seu o plano, bem, infelizmente não tinha mais o que fazer, teria de esperar e ver se daria certo.

***

Mesmo admitindo que os planos de Felipe eram bons, ok, meio doidos, eles ainda funcionavam, Lucas não conseguia deixar de ficar tenso, afinal sempre ficava com a parte de atrair as criaturas para as armadilhas, não que estivesse reclamando, claro que não era o cérebro da equipe, então ajudava sempre naquilo que podia.

Ouviu o vento ficar cada vez mais forte, as janelas tremiam, as telhas chiavam, como se um pequeno tornado estivesse envolvendo todo galpão e em poucos minutos o tiraria do chão e o levaria à Oz para andar em uma estrada de tijolos amarelos e vencer a bruxa má do oeste, não obrigada, já tinha que lidar com suas próprias bruxas.

Silêncio. O vento parou tão rápido quanto começou, o silencio era tanto que Lucas nem ousou respirar, somente esperou por aqueles momentos terríveis de antecipação.

BUMM.

A porta da parte de trás que estava fortemente trancada com grossas correntes e um grande cadeado caiu pesadamente, Lucas estremeceu ao ver uma forma se aproximar. Ele era alto, forte e com uma pele negra feito ébano que fazia o vermelho sangue da carapuça e da bermuda rasgada se destacar.

Tirou seu cachimbo da boca lentamente, não tinha pressa.

"Achou mesmo que eu ia cair nessa da peneira atrás da porta?"

Lucas olhou de soslaio para a porta da frente que, de fato, tinha uma peneira pendurada prestes a cair em quem abrisse a porta, encarou o Saci.

"Na verdade, não, desculpe."

Ele o olhou confuso por um segundo antes de Felipe pular com outra peneira em cima dele o capturando. Felipe sorriu feito um garoto que capturou algo com uma caixa e um graveto.

***

"Bem, a parte mais difícil já foi agora..."

A peneira pulou debaixo dele, Felipe fazia força para se manter sentado nela.

"Agora vem a parte complicada."

Lucas pegou a garrafa da mochila e tirou a rolha com a cruz, para se certificar que ele não fugiria, benzeu ao redor do local em que Felipe continha o Saci com a água benta que o padre lhes dera.

"Devemos trocar, eu vou conseguir segurar ele melhor."

"Tem certeza?"

Felipe estava inserto, não que duvidasse do amigo, mas estava preocupado se conseguiria conter o Saci para fazer a troca do que da capacidade do amigo de segura-lo.

"Uma troca rápida, certo?"

Lucas esticou a mão para Felipe, este assentiu e em segundos eles trocaram, infelizmente Lucas escorregou ao tentar sentar na peneira e caiu sentado com ela entre as pernas.

Peneiras continham Sacis por poucos minutos, somente o tempo certo para tirar suas carapuças, mas aquele Saci era poderoso demais e se libertaria, eles estavam perdidos agora, tinham certeza.

Quando a peneira tremeu ameaçando ser arremessada pelo salão, um gato branco pulou a segurando, assustando os dois que deram um pulo para longe da peneira, Lucas ainda se arrastando exclamou.

"Espera, Amora?"

Felipe olhava perplexo para a gata que estava deitada sobre a peneira como se estivesse ali há horas, sem se preocupar.

"Como ela chegou aqui? Você não a levou e deixou no apartamento com Beatriz?"

"Bem, levei."

Tentando se recuperar do susto, Felipe não perderia a oportunidade, pegou a garrafa e a rolha caídas no chão e se aproximou da peneira devagar, com medo de assustar a gata, mas ela nem se mexeu, só o encarou em tédio, acariciou entre suas orelhar "boa garota" e devagar colocou a mão debaixo da peneira e puxou firme, como um mágico, puxou uma grande carapuça vermelha debaixo da peneira que parecia uma simples peneira no chão.

Jogou a carapuça à Lucas que já sabia o que fazer com ela, pegou umas madeiras e alguns pregos da mochila e foi em direção a porta da frente. Enquanto Felipe se preparava para capturar a criatura.

"Preparada garota? Bem agora já pode deixar comigo."

Como se entendesse, a gata saiu sem presa de cima da peneira, chegando a se espreguiçar antes de sair completamente, assim que saiu a peneira tremeu e voou, mas Felipe não se preocupou, por que no mesmo instante a garrafa sugou o Saci para dentro e ele fechou com a rolha, podia ver um pequeno redemoinho furioso dentro da garrafa, como se tivesse capturado uma tempestade.

"E aí, pronto?"

Felipe perguntou a Lucas que ainda estava pregando ao lado da porta.

"Quase."

Como que depois de capturar um Saci você tinha de pendurar sua carapuça atrás de uma porta, eles tiveram a ideia de arrancar algumas madeiras da parece, colocar a carapuça e pregar novamente, assim ninguém a pegaria.

Felipe sentou em um dos bancos do salão respirando fundo. Lucas sentou ao seu lado assim que terminou de pregar.

"Mais um serviço bem feito, o que acha?"

"É isso aí, cara."

Felipe não estava muito animado, ainda parecia cansado, sua força parecia ser sugada dele a cada minuto, não sabia o que estava acontecendo. Amora veio até eles e começou a roçar em suas pernas. Felipe franziu a face, um pensamento surgindo.

"Acho que já sei por que ela está aqui."

Apontou para Amora.

"Acho que ela é enfeitiçada para te seguir, e de certa forma, te proteger."

Lucas acariciava a gata.

"Acha que vai ser problema?"

Felipe sabia que com a mesma delicadeza que acariciava a gata ele poderia pegar seu pescoço e quebrar em segundos.

"Não, acho que por hora podemos ficar com ela, não me parece ter nenhuma magia maligna nela."

De fato, o amuleto que sempre levava ao pescoço para reconhecer seres enfeitiçados por bruxas de forma maligna, não queimava em sua pele, estava gelado, então isso era um bom sinal. Felipe levantou a garrafa para observar.

"Acha que ele pode nos dar uma pista do paradeiro do coven?"

Lucas perguntou.

"Acho que sim, já que parece que uma delas a invocou. Talvez eu consiga seguir um rastro a partir dele."

Lucas suspirou.

"Você acha que se mostrarmos para aquelas senhoras na cidade a garrafa, elas vão nos dar pelo menos um pedaço de bolo e cafezinho?"

"Talvez, mas se você pedir com jeitinho, elas vão dar muito mais que isso."

"Idiota."

Lucas deu um soco no seu ombro, como sempre fazia quando brincavam. Como estava exausto e passariam a noite ainda naquela cidade para sair cedo no dia seguinte, Felipe até que não achava ruim ganhar um bolo e cafezinho caseiro, fazia muito tempo que estavam comendo comida processada, de vez em quando, podiam relaxar e fazer uma boa refeição, principalmente depois de um trabalho concluído.

"Certo, está decidido, merecemos uma pequena folga, não vejo nada de mal em ficar para um café e bolo caseiro."

"É assim que se fala!"

Felipe sorriu com a animação do amigo, era bom ter esses momentos leves de vez em quando.

***

Se eles pensavam que era só isso que ela tinha a oferecer, estavam muito enganados, aquilo não era nada. A princípio usaria a gata que matou e trouxe de volta em um ritual para lhe servir, mas como espíritos de animais eram sempre imprevisíveis, a infeliz escolheu aqueles humanos patéticos para ser leal, tendo sido um enorme desperdício de tempo e energia, então agora teria de recorrer para um outro meio, talvez até mais interessante.

Utilizando tudo que aprendera sobre a magia de controle a distância, também chamada por alguns de vodu, pegou os bonecos que estavam quase completos, idênticos àqueles que queria replicar, faltando somente algo da pessoa para fazer a magia mais forte, mesmo que ainda fosse funcionar, e os colocou sobre a mesa.

Deixou o do outro rapaz de lado, cuidaria dele depois e pegou o boneco daquele que era o verdadeiro culpado, amarrou uma linha ao redor do pescoço e foi enrolando. Pronto, agora sua força vital iria escapar aos poucos, sendo absorvida pela linha, e quando estivesse totalmente carregada, ela a cortaria, assim como as parcas faziam desde o começo dos tempos.

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