Cicatrizes Profundas
O calor turvava seus olhos fazendo tudo tremular como uma miragem, sentia sua pele borbulhar, começando a descolar da carne, um sorriso se rasgava em seus lábios derretidos e o olhar de vingança era profundo contra aqueles que a queimavam.
Os homens ao redor olhavam com horror para a fogueira que a consumia, a criatura parecia rir de seu fim, rir da face da morte, sua forma a cada segundo ficando ainda mais grotesca.
As chamas, antes vermelhas, de repente queimaram em verde, todos exclamaram se afastando enquanto as chamas subiam até o alto, até nada poder ser visto, e como em um sugar de vento, elas se extinguiram, apagando completamente, deixando para trás somente o corpo morto preso à estaca.
***
A magia não é má, não é boa, a magia está conectada aos desejos e vontades de um ser, se este se inclinar para o bem ou para o mal, de nada a magia tem de culpa, entretanto, a magia assusta a quem não a conhece, a quem não foi tocado e abençoado por ela, e tudo que o homem teme, o homem destrói.
As "queimadas" começaram de uma forma tão inesperada que em um primeiro momento, não foi assimilada pela população, como em um delírio coletivo, as pessoas eram obrigadas a assistir mulheres derreterem em grandes fogueiras quando acusadas de bruxaria.
Bruxaria. Para um tempo onde o conhecimento era limitado, conservador, temeroso, onde a ignorância era a benção das massas, qualquer ato julgado como bruxaria, era condenado.
A danação não vinha exatamente para todos, é claro, o homem era puro, imagem santa e glorificada, enquanto a mulher era traiçoeira, vista como proliferadora do mal, vista como a pecadora original que tirou o homem do paraíso, a esta, nunca seria perdoada, como veio a descobrir a jovem Eileen.
Ainda jovem, sua mãe a ensinou, tinha de a ensinar a ver, identificar o que era bom e o que era ruim, Eileen aprendeu sim, magia, mas não aquela à qual veio a ser condenada no final, pelo menos, não no começo. Todo começo era puro.
Eileen aprendeu com a mãe a valorizar a terra, a além de tirar seu sustento, reivindicar força vital de suas entranhas, a magia da mãe de Eileen era para cura, era para o amor, mas o amor não a salvou, seu pai ao descobrir denunciou a própria esposa acusando-a de bruxaria ao ter lhe curado de uma enfermidade que o médico da aldeia disse que ele iria morrer.
Sua mãe nada mais fez que usar o conhecimento que tinha da natureza para salvar o homem que amava, para salvar o pai de sua filha, sabia que duas mulheres não poderiam sobreviver sozinhas naquela aldeia e não podia permitir que o mal dos homens afligisse a filha, infelizmente, não pode afastar o mal de si mesma, sendo afogada, amarrada a margem de um rio e tendo seu corpo jogado nas águas.
Eileen viu o corpo da mãe se contorcer e se lembrou de suas últimas palavras "filha, escute bem, não culpe seu pai pela ignorância, os homens, muitas vezes, não sabem o que fazem, não sabem sobrepor o pensamento ao medo. Lembre-se, nunca deixo o medo se sobressair, nunca deixe-o dominar sua mente, seja forte, seja corajosa, seja tudo aquilo que julgam que nós não podemos ser, e sobretudo, se proteja, mesmo que tal proteção a leve se esconder nas sombras da ignorância, não tenha o meu mesmo fim", sua mãe beijou sua testa e saiu da casa em direção aqueles que a condenaram, altiva, sem medo, Eileen tinha orgulho da mãe que a gerou.
Após o fim trágico de sua mãe, Eileen ainda tentou perdoar a ignorância do homem, tentou viver apesar dela, tentou a todo custo, mas no fim, foi fisgada por ele, se apaixonando.
O amor, no entanto, era proibido, sendo ele casado, e mesmo que ele que tivesse mentido desde o começo para ela, foi ela a condenada por adultério e fadada a uma vida de fuga e miséria, e ainda pior, carregando a criança em seu ventre daquele que a enganou e se aproveitou de sua carne.
Mesmo sendo desiludida, Eileen ainda tentou, tentou com todas as forças se manter fiel aos ensinamentos da mãe, mas quando em uma única noite se viu perder tudo, tendo sido denunciada e sua pequena cabana queimada com sua filha dentro, que ela ainda podia ouvir gritar em meio as chamas, deixou cicatrizes profundas, muito mais do que aquelas que poderiam afligir sua carne, essas cicatrizes estavam marcadas em sua alma.
Ela não teve escolha e procurou aquelas que praticavam a magia por vingança, a magia de sangue, perversa contra todos os abusos do homem, ela as procurou, aquele coven sangrento e acolheu seus ensinamentos ao mesmo tempo em que era acolhida por aquele meio de vingança e dor.
***
Sentiu seu corpo ser retirado da estaca, esperando pacientemente, não se moveu ou mostrou sinal algum de vida, foi arrastada pela floresta, viu seus captores cavarem sua cova e esperou, até a terra a atingir e suplantar, até estar completamente enterrada e através disso, recuperar sua força pouco a pouco, sabendo que quando se levantasse, sua vingança cairia sobre todos aqueles que a machucaram, todos aqueles que a atormentaram e acusaram, todos os homens que a maldisseram e a condenaram.
***
O que Eileen aprendeu sob a tutela do coven sangrento a ajudou a sobreviver nos anos que seguiram da caça às bruxas, a ajudou a escolher um caminho, estava decidida a deixar aquela terra, apesar da vingança que ainda realizaria, ela decidiu buscar por algo novo, tendo sido corrompida, ela desejava dominar ainda mais e mais homens e consumir tudo deles, suas esperanças, seus anseios... seus desejos.
Havia um navio, um navio que seguiria para um novo mundo, um mundo cheio de novas descobertas, Eileen seguiria para esse novo mundo, com novos desejos, mas antes que pudesse realizar seu desejo, foi capturada, arrastada e queimada.
Mas as chamas não extinguiram sua vida, não, elas só mudaram sua carne, avivaram seus desejos, a fizeram ainda mais forte, como aço sendo moldado em uma forja, assim que foi queimada e enterrada, ela se vingou, perseguindo-os e matando-os, um por um, na calada da noite, deixando sua marca em suas portas, para saberem que foi ela que o fez, para saberem a quem temer e culpar, para saberem que sua vingança foi cumprida sobre todos e por fim, para saberem que suas fogueiras, não queimariam seus espíritos.
Ainda com sangue nas mãos e olhos vermelhos, uma única ideia permanecia em sua mente, o navio, ainda poderia pegar o navio e ainda poderia seguir para outro mundo, um mundo em que pudesse se esconder e se adaptar, a carne que tinha, a máscara enrugada não seria um problema, não mais, com ela levaria o conhecimento de seu coven, com as benções das suas irmãs, espalharia sua palavra pelo novo mundo, e assumiria a forma que quisesse, a forma que desejasse, a forma que eles desejariam e matariam para ter.
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