III

Outro anoitecer e ele, por costume, foi para o mesmo local de sempre.

Ela não tardou em aparecer, mas permaneceu em silêncio, somente o observando, até que John não aguentou mais.

*Isso não é justo!

*O que não é justo?

*O que aconteceu com você.

*Isso acontece todos os dias, amores vêm e vão.

*Mas alguns amores permanecem para sempre, eternamente em nossos corações...

*É o seu caso, meu amor?

*É o meu caso. Noite após noite.

*Achei que só gostava do café.

Ele a olhou, sério.

*Não brinque com isso. Agora eu sei porque está aqui.

*Por que, John?

*Para se vingar de mim. Eu a fiz sofrer muito, só cuidava dos meus negócios, negligenciei você. Como eu pude? Eu mereço sofrer...

*Ninguém merece, meu amor.

*Eu mereço sim! Você morreu, eu nem me despedi direito.

*Você me amou muito. E confessou que ainda me ama. O que mais eu iria querer?

*Eu a queria aqui comigo.

*Não podemos ter tudo.

*Eu queria tudo, estar ao seu lado para sempre, como estava nos meus planos.

*E por acaso você não está aqui comigo, noite após noite?

*Você sabe que não. Você é somente uma bela invenção da minha mente.

*Então eu sou uma fantasia sua?

*Sim, uma lembrança, de um amor que existiu.

*De um amor que ainda existe...

*Pode ser, mas ainda só é uma recordação.

*Sei! E por acaso, uma lembrança faria isso?

Ela se aproximou e o beijou na boca. E ele retribuiu. Depois que Alice se afastou, ele tocou seu próprio lábio.

*E aí, parece uma simples lembrança para você?

John ficou com medo de responder, mas o fez assim mesmo.

*Não, foi bem real! Mas como isso é possível?

*E isso tem importância?

*É claro que tem!

*E o que mais tem importância, John?

*Saber porque você está aqui.

*Isso é fácil! É para lhe fazer feliz.

*Não pode ser só por isso.

*Por que não?

*Porque eu a fiz sofrer. Você deveria me pagar na mesma moeda.

*Olha você sendo repetitivo. Já lhe disse, você não me fez sofrer. Era dedicado ao trabalho, eu reclamava muito, porque queria ter mais tempo com você.

*Eu fui egoísta!

*Não, meu amor, não! Você fazia tudo por nós, sempre o fez.

*Então me diga de verdade por que está aqui?

*Porque eu ainda o amo.

*E por que mais?

*Para lhe fazer recordar do amor que sentimos um pelo outro.

*E por que? Qual a finalidade disso?

*Para que você pare de passar todas as noites sofrendo nesta cafeteria.

*Isso é inevitável.

*Está bem! Para que deixe de sofrer sozinho nesta cafeteria...

*Até quando vai aparecer para ficar comigo?

*Até você parar de sofrer.

*Então vai ser pela eternidade.

*Se for preciso, mas não acredito que seja por tanto tempo assim. Basta você recordar.

*Certo! O que preciso recordar, Alice?

*Dos momentos bons que vivemos.

*Não foram tantos...

*Foram sim, dezenas deles.

*Não sei, não me recordo.

*A gente tem dificuldade em lembrar das coisas boas. Tende a reprisar facilmente o sofrimento.

*Então me ajude, Alice!

*Claro. Lembra quando me pediu em namoro?

*Eu não lhe pedi em namoro.

*É claro que pediu. Veio todo tímido, no último ano do colégio. Eu estava com a roupa de líder de torcida...

John fez uma careta, depois sorriu.

*É verdade! Você era a garota mais linda da escola. Eu disse para os meus amigos que ia lhe pedir em namoro. Eles não acreditaram. Eu fui e você aceitou.

*Não foi um momento feliz?

*Foi sim! Muito.

*E de quando nos casamos, três verões depois.

*As nossas famílias reunidas, os amigos, a lua de mel... Como pude esquecer destas coisas?

*Você estava ocupado demais?

*Trabalhando?

*Não, John. Ocupado em sofrer.

*É verdade!

*Agora é a sua vez. Me conte outra lembrança do nosso amor. Uma muito importante.

*A casa que a gente construiu junto?

*Isso é importante, mas tenho algo melhor em mente.

*Deixe-me ver. Se não é nossa casa, nem o conversível. Alguma viagem que fizemos?

*Sim, foram tantas e maravilhosas. Inesquecíveis, eu diria, mas ainda tem algo mais importante...

*Espera, eu não...

John se calou de repente e tomou a mão dela entre as suas.

*Aí, meu Deus, como posso deixar de lembrar. Nossa filha...

Alice estava chorando, sem se conter.

*Nossa filha! - ela repetiu.

*O maior fruto do nosso amor, querida.

*Como ela está?

*Eu não sei. Faz muito tempo que não a vejo. Que saudade agora me deu dela.

*Mary seguiu os seus passos.

*Que arquiteta ela se transformou. Trabalhou comigo por muitos anos.

*E por que ela mudou de emprego?

*Eu não me lembro, Alice. Faz tanto tempo...

*Concordo! Faz muito tempo.

*Eu devia visitá-la. Por que não vem comigo?

*Isso não seria possível, meu amor.

*Por que não? Mary te ama, até mais do eu.

*Eu sei disso, posso sentir o seu amor.

*Então por que ela não lhe veria também?

*Você ainda não entende, John.

*Então me ajude a entender.

*Tudo bem! Vamos voltar para nossas lembranças. Tente buscar a última recordação que tem comigo, antes que eu deixasse essa vida.

*Não quero lembrar disso.

*Mas é importante, meu amor.

*Mesmo assim eu não quero. Você não percebe o quanto isso me fez sofrer?

*Eu sei, John, mas não é fugindo da dor que conseguiremos vencê-la. Você precisa ser forte. Você precisa buscar o amor até onde ele não parece existir.

*Isso não tem lógica. Que relação existe entre o nosso amor e a sua partida?

*É isso que eu quero que você se recorde.

Ele se deu por vencido.

*Vou tentar... Uma das minhas últimas lembranças é de uma viagem que fizemos. Se não me engano, alugamos um carro em Paris.

*Isso, está chegando perto. Éramos só nós dois?

*Sim! Não, espere. Mary estava com a gente. Sim! Foi uma viagem planejada para nós três. Não! Nós quatro, puxa, tudo está tão confuso.

*John, você está indo bem. Não fomos sozinhos, ela foi junto, mas estávamos em quatro? Quem era a quarta pessoa?

*Quarta pessoa? Não sei! Não vislumbro um rosto... Espere!

John saltou do banco, visivelmente emocionado.

*Mary estava grávida. Ela tinha casado e viajamos para comemorar. O marido não pôde vir junto, compromissos de trabalho. Foi isso?

*Sim, John, foi isso, meu amor...

*Alugamos um carro numa agência de Paris. Nosso destino era um hotel nas montanhas, Mary queria esquiar. Como ela estava linda. Um futura mãe tão linda. E você também. Ninguém diria que já ia se tornar avó. Você estava...

*Diga, John. Como eu estava?

*Não quero dizer!

*Diga assim mesmo.

*Não quero, não posso, dói muito...

*Diga, John, por favor.

Ele se rendeu e soltou os braços para o lado do corpo.

*Você estava deslumbrante...

*Sim, meu amor!

*Exatamente como está agora. Belíssima, com este conjunto elegante, que compramos para a viagem. Foi nesse dia que eu a perdi.

*Lembra como?

*Mais ou menos. Subíamos a pista que levava até o hotel.

*E o que aconteceu?

*Eu acho que foi outro carro. Sim, ele veio desgovernado e nos atingiu na lateral. Perdi o controle do veículo e ele caiu numa ribanceira e capotou várias vezes.

*E depois?

*Quer que eu continue até onde? Quer mesmo me fazer sofrer novamente?

*Não, John. Quero que recorde o seu último ato de amor para comigo. Isso é muito importante.

*Eu caí para fora do carro, fui arremessado pela janela. Vi a fumaça levantando, algumas chamas no capô. Corri apavorado até o carro e tirei primeiro Mary e a encostei suavemente numa árvore. Depois voltei correndo para salvar você...

*Mas não conseguiu.

*Não, mas eu não entendo?

*O que não entende?

*Eu lembro que corri para o carro, cheguei até perto de você, depois não me lembro de mais nada. Tenho somente um branco na minha mente.

*E o que acha que aconteceu?

*A fumaça, o fogo, acho que o carro explodiu.

*Você acha?

*Não! Ele explodiu sim! E eu não pude lhe salvar.

*Mas tentou até o último instante, não foi mesmo?

*Sim! Você estava presa no cinto, o carro estava virado com as rodas para cima. Eu fiz tudo que pude, até o carro explodir.

*Seu último ato de amor.

*Meu último ato de amor...

*Sim?

*Meu último ato de amor por você, em vida...

*Sim!

John começou a chorar.

*Eu morri com você!

*Sim! Tentando me salvar.

*E a Mary?

*Ela não pode me ver...

*Verdade! Só eu posso, pois já estou aqui com você. Mas, por que neste café? Sempre me sentindo tão sozinho?

*Porque não conseguiu aceitar. Sua alma achou que seu corpo não fez o suficiente, que poderia ter me salvo.

*Mas eu não poderia! E nem lhe abandonaria.

*Que bom que recordou.

*Graças a sua ajuda, agora me sinto mais leve. Espere...

Ele colocou três colheres de açúcar no café e tomou.

*Tem razão! É bem melhor.

E sorrindo, abraçado a ela.

*E agora? Para aonde vamos?

*Vamos viver o nosso amor pela eternidade. Foi por isso que eu vim lhe buscar, mas antes, podemos visitar alguém. Elas não vão nos ver, mas sentirão nossa presença.

*Elas? Eu sou avô?

*O melhor de todos! Um herói. Salvou duas vidas naquele dia, John, meu amor...

*Olha você errada agora, Alice.

*Mas por que?

*Porque eu salvei nós quatro.

*É verdade! Nos salvou!

John, como de costume, pagou o café e foi embora com ela, o seu amor.

E a solidão que envolvia o seu espírito simplesmente se evaporou.

FIM


Total de palavras do conto: 3000

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