Capítulo XXXV -

- Este lugar está ocupado?

Voltei a cabeça rapidamente para trás, vendo Brandon, em pé, dirigir um olhar calmo e carismático para mim, muito diferente do que vi lá fora, quando seus olhos eram apenas escuridão e o sangue em suas veias, mais parecido com piche naquele momento, pulsava como se o seu coração pudesse bombeá-lo três vezes mais rápido e forte do que o normal pelas suas veias.

- O quer de mim? - perguntei, desconfiada me preparando para levantar, percebendo que perdi Alarik de vista.

- Aquele homem com quem esteve a falar...

- Alarik!? - questionei.

- Não confie nele.

Brandon puxou a cadeira e sentou ao meu lado. Seus dedos tamborilaram sobre a superfície metálica da mesa por algum tempo antes de, decidir se ia ou não, voltar a falar comigo. Fiquei observando isto e então pigarreei.

- Se essa era a sua preocupação, saiba que não confiarei. Mas saiba também que não é porque um garoto que, eu nem sequer conheço, me disse para não fazê-lo.

- Era apenas um conselho. - Ele sorriu de lado, levantando as mãos. - E não, não estou preocupado. Na verdade estou interessado.

Aquela escolha de palavras me deixou confusa e intrigada.

- Eu sei que não está! - Confrontei, mudando a postura na cadeira em inclinação para sua direção. Brandon me encarou com o cenho franzido. - Ouvi dizer que você tem uma queda pela Robertta.

- Fique tranquila, não é esse o tipo de interesse que tenho em você.

- Então você não nega?

Arqueei uma sobrancelha, o garoto não esboçou muito ânimo em responder. Percebendo isso, engatei em outra pergunta.

- Então rapaz, qual o seu interesse em mim?

- Sua mãe levou uma coisa consigo depois de ser banida da Ordem.

Engoli em seco. É claro que em algum momento a Ordem descobriria onde eu estava e mandaria alguém vir me buscar. Só não imaginava que seria tão rápido.

- Você é bem direto. Mas eu posso afirmar que minha mãe não é uma ladra.

- Arabella Hollunya, a feiticeira-rebelde? A que se apaixonou por um não-guer sabendo que era proibido? Sua mãe enfrentou as consequências de sua escolha e isso é louvável. Mas, propositalmente ou não, ela acabou levando um mecanismo de controle para portais entre mundos e dimensões.

Meus olhos vagaram pelo refeitório, ganhando tempo. Alexandra estava encostada na parede ao lado de uma das saídas. Seus braços cruzados sobre um uniforme-armadura, bem ajustado ao corpo, feito de metal reluzente e polido na parte de cima e nos braços, contrastando com a saia longa de tecido encorpado na cor preta. Com certeza era muito diferente e mais chamativo do que aquele que o Comando havia disponibilizado quando chegamos. Ela notou que a olhávamos e veio, com passos decididos e postura altiva, até nós.

- Nossa teoria é que se este artefato cair em mãos erradas não teremos nem chance de lutar contra a extinção da raça.

Desviei os olhos para ele. Os fechei e respeirei.

- Eu perguntaria "como descobriu sobre mim e meus pais", mas isso seria tolice. Então, em que posso ajudar?

- Fui eu! - Sinalizou a feiticeira, ao que Brandon e eu olhamos ao mesmo tempo. - "Siér vëra racherye irrah" é um feitiço antigo de acesso à mente. Não foi minha intenção, mas em meio às lembranças eu vi seu pai e o reconheci. Me desculpe.

A menção ao meu pai, a esta altura apenas me fazia ficar triste por sentir que sabia pouco sobre ele e não necessariamente por sua morte, o que era estranho em muitos sentidos.

- Isso está fora do seu alcance agora e não pode ser mudado. Vamos ao que interessa. - A feição do jovem soldado tomou um ar mais sério. - Diga a ela o que mais você descobriu, Alexandra.

- Você possui uma rara habilidade que pertenceu a poucas feiticeiras durante toda a história, que é, de certa forma e até onde sabemos, a de acessar dimensões e mundos diferentes paralelos à nossa existência.

Encarei Alexandra e depois Brandon. O que diziam era tão bizarro que comecei a rir. Não era necessariamente engraçado, apenas difícil de acreditar que em meio a tantas feiticeiras e feiticeiros, com variadas habilidades, que se destacavam em tantas áreas, datando de sei lá quantas eras, mesmo os que distantemente me vieram a memória pois os conhecia apenas através dos breves estudos que realizei, logo eu fizesse parte de uma pequena parcela com habilidade rara.

- Tudo bem. Vocês querem que eu vá em outra dimensão procurar isso... esse... essa coisa?

Gesticulei com as mãos sem entender muito bem do que se tratava, tentando de alguma maneira constituir uma imagem.

- Pêndulo, é o nome do mecanismo. E não é em outra dimensão, é só no outro lado.

- Brandon, deixa. - Alexandra sinalizou negativamente ao irmão. -Lizlee, peço que guarde segredo sobre essa conversa. Logo você receberá um chamado e explicaremos tudo, agora estamos sob muitos olhares.

Sua expressão mudou. Acho que se referia ao fato de estarmos cercados por rebeldes e soldados, nenhum ponto de fuga claro e diversos obstáculos, potenciais problemas. Ela sabia fazer uma análise da situação melhor do que nós dois.

- Eu não sei se posso ajudar vocês. Isso vai muito além...

Eirie chegou se apoiando no ombro de Brandon, olhando diretamente para mim.

- Parece que estão se conhecendo melhor.

Tinha bebido, não havia como negar. O cheiro de álcool estava impregnado até em sua roupa, onde provavelmente havia derramado depois de beber ao ponto de errar a própria boca.

- Sua armadura está me deixando cego, Ale... de tão radiante que você está.

Os reflexos de Alexandra impediram Eirie de cair no chão, depois que ele, deixando se apoiar em Brandon, tentou uma aproximação dela e se desequilibrou.

- Talvez você devesse parar de beber. - Sugeri.

- Talvez você devesse parar de fingir que se importa com quanto eu bebo... afinal, - ele levantou a mão, como se pedisse atenção de todos - eu fiz mal a você e me desejar o mal em troca é o que você deveria fazer. Seria o certo, não é?

Os irmãos olharam para mim, pareciam já ter passado por aquela situação vezes antes. Esperavam que eu dissesse algo.

- Vou levá-lo até o dormitório.

Falei um pouco mais alto e as pessoas ao redor riram, resmungaram ou simplesmente agradeceram por eu não deixar que o bêbado atrapalhasse sua noite. Passei um de seus braços sobre o meu ombro e o ergui, praticamente o arrastando até a saída.

- Isso não é certo! Você me deve uma explicação.

Eirie riu e resmungou isso algumas vezes seguidas, embolando as palavras. Fiquei quieta em todas elas. Até ele perguntar: - Porque você simplesmente não me odeia ou me ignora?

- Eu tentei a segunda alternativa, até você chegar bêbado e me fazer te arrastar pelo corredor até o dormitório. - Respondi ríspida, perdendo a paciência.

- Eu não te obriguei.

Ele realmente não tinha feito isso, eu quem me ofereci para trazê-lo. Isso fazia com que me sentisse uma idiota e mostrava que eu não conseguia odiá-lo, o que era bom e ao mesmo tempo ruim, pois Eirie tinha me feito coisas ruins. Eu sabia que não precisava pagar na mesma moeda, embora, eventualmente desejasse isso.

Por exemplo, esse momento seria uma ótima oportunidade caso eu quisesse já que ele estava vulnerável. Mas eu não era assim. Por mais que o pensamento rondasse de vez em quando, eu continha meus atos.

- Todos os dias, tento me convencer que não preciso usar meus poderes pois sinto que perco o controle sobre mim mesma cada vez que os utilizo. E eu preciso ter o controle ou tudo o que sinto não seria destrutivo somente pra mim. E o mundo não precisa de mais gente destrutiva como você.

- Ninguém é capaz de conter o poder, nós apenas damos direção a eles. Mas isso não responde a minha pergunta.

Chegamos no dormitório em silêncio, pois fiquei refletindo naquelas palavras durante o resto do caminho. Relevando apenas a parte que ele insistia por uma resposta que eu não queria dar. Parecia certo na teoria, mas bem mais complexo na prática essa história de dar direção. Joguei Eirie sobre a cama, ao que rapidamente ele respondeu com uma risada sonora.

- Esta não é a minha cama.

- Parecia ser, a julgar pelo estado em que está.

Retruquei e ele riu de novo. O som ressoou pelo galpão vazio, pouco iluminado.

- Você não sabe nada sobre mim. Eu sou muito organizado e... - no meio da frase ele pegou uma mecha do meu cabelo e fungou - o seu cabelo tem um cheiro bom.

- É esta então?

Joguei Eirie, que rolou para o lado e me puxou em seguida. Tentei sair de cima, todavia ele me segurou, dizendo bem alto:

- Me desculpe por ter te beijado antes... eu fui um babaca e não estou dizendo isso por ter bebido. - Ele bufou - Bem, talvez seja... mas só um pouco. Na verdade você merece um pedido de desculpas e eu estou fazendo isso antes que... antes que eu acorde amanhã e desista de pedir.

- Desculpas aceitas. Pronto! Agora vá dormir. Bati em seu peito. - Você fica muito tagarela quando bebe.

- Você sóbria é 10 vezes mais tagarela.

Ele resmungou. Aquilo me fez rir por um bom tempo. Eirie soltou meus pulsos e bocejou. Rolei de cima dele para seu lado na cama. Ficamos um bom tempo em silêncio, até pensei que ele tivesse finalmente pegado no sono quando sua voz soou baixa e sonolenta.

- Não quero que me odeie, mas também não posso impedir.

Deslizei os dedos e, vagarosamente a mão pela superfície do cobertor disposto sobre a cama, até tocar os dedos dele, onde entrelacei os meus. Eirie pendeu a cabeça em minha direção, seus olhos brilhavam como se estivesse prestes a chorar.

- Meu pai sempre disse que o amor que minha mãe e irmã dirigiam a mim e o que eu devolvia a elas, me enfraquecia. E que elas não compreendiam a que eu estava destinado e, assim justificou o motivo de nos afastar. Por mais de quatrocentos anos, estive sozinho e tudo o que fiz foi sentir ódio. Ódio do maldito momento em que nasci. Ódio das pessoas mesmo que não me fizessem nada. E embora tenha te odiado quando a conheci, só porque você era mais forte e promissora, isso nunca foi sobre você. Era sobre mim e sobre como eu não fui forte para superar a dor desse vazio que sinto ao invés de preenchê-lo com ódio. Você sabe, desse jeito, como tem tentado fazer mesmo depois do mal que te causei.

Com algum custo Eirie se estabilizou sobre o próprio cotovelo. Fiz o mesmo e ficamos frente a frente. Ele recuperara um pouco de seu costumeiro ar brincalhão e completou.

- Parece que você encontrou minha fraqueza. Devo me preocupar?

- E se eu disser "não, mas num futuro distante, quem sabe?" - Respondi com um sorriso.

- Eu diria que você sabe como explorar as fraquezas de um homem.

O sorriso se apagou em meus lábios. Sabia o significado daquelas palavras e sabia como aquilo complicaria tudo se eu deixasse ir em frente.

- Boa noite, Eirie.

Eu pretendia retornar para minha casa e talvez esclarecer as pendências com meu tio; tinha planos de levar adiante os negócios do meu pai, seu legado. Afinal, apesar de ter deixado a desejar no papel de pai, Charles ajudara muitas pessoas com seu trabalho e eu admirava muito isso.

E também, eu não tinha garantia alguma do que Eirie dizia estar sentindo. Há meses atrás nossa relação era estável, o que prejudicou meu treinamento - que aliás nem concluímos. Eu saí de Vila Royal atrás de respostas sobre o que estava me tornando e terminei presa numa trama de guerra e destruição, que gira em torno de uma ganância desenfreada sem sentido para mim. Qualquer outro tipo de distração não poderia ser permitida.

[...]

- Fiz o que deveria ter feito ao sair do dormitório. Estou certa disso.

- Sim, você fez. - Honn piscou, nada discreta.

- Acho que você não entendeu...

- Entendi que Eirie está apaixonado e você finge que não liga, mas liga sim. Eu tenho mais de 400 anos de idade e digo com tranquilidade.

Ainda era difícil me ligar no fato de que essas pessoas tinham mais de 400 anos, principalmente quando olhava os mais novos, pessoas que em tese deveriam ter a minha idade.

- Vocês duas aí não tem inspeção às 9:00 horas?

- Oh meu Deus! Sim. Preciso ir pra inspeção. Obrigada, Elfriede.

Honn acenou para a mulher, passou sua braçadeira do lado esquerdo para o direito e depois amarrou o cabelo que chegava a altura de seus ombros. Caminhamos até o pátio central, onde os jovens se reuniam para a inspeção. Este procedimento servia pra identificar e controlar possíveis efeitos colaterais da exposição ao tratamento que sofreram no Projeto Regenciadores. Encontramos Robertta logo que chegamos no local.

- Não sabia que você também passaria por inspeção hoje.

- Não vou. - Respondi.

- Deveria. Não só você como o seu colega que é um perigo para a segurança de nossos irmãos da causa. - Seu tom era de um escárnio estampado.

- Não sei do que está falando.

Foquei na chegada de funcionários enviados para separar as pessoas em grupos e conduzir a inspeção.

- Seu amigo quase incendiou o galpão esta noite. Ainda bem que conseguiram contê-lo antes que o pior acontecesse...

Na hora não sei bem o que me deu, só me dei conta quando avancei para cima de Robertta com força, empurrando-a contra a parede e gritando.

- O que fizeram com ele? Fala!

Minhas mãos se congelavam, ficando transparentes à medida que eu torcia o tecido o macacão da garota. Os olhos dela se arregalaram, mas não se deixou intimidar.

- Quer parar lá também? Eu posso dar um jeito nisso.

- Lizlee, não faça isso. Devemos proteger umas às outras e não causar discórdia. - Honn pediu.

- Não vou te dar o gostinho de me ver atrás das grades.

Joguei a garota para o lado, deixando que caísse de joelhos. Balancei as mãos que por algum motivo não estavam descongelando.

- Esconda isso! - Honn sussurrou e indicou que as colocasse no bolso. Assim o fiz.

- Onde eu encontraria alguém que foi detido?

Questionei enquanto ela já ia se afastando com Robertta. Honn levantou os ombros, demonstrando que não sabia.

- Eu sei onde ele pode estar.

Dei um salto de susto e então percebi que era Zorr quem dissera aquilo, vindo por trás de mim.

- Você sabe o que aconteceu?

- Ele tem pesadelos. E também conversa enquanto dorme. Fala sobre você, às vezes. Mas dessa vez... - o garoto fez um sinal para que eu chegasse perto dele - os braços dele estavam queimando e depois tudo o que ele encostou também pegou fogo.

Conheço bem os pesadelos que Eirie costuma enfrentar, mas não estava familiarizada com esta reação a eles. Aquilo me deixou incomodada, algo de errado aqui.

- Sabe me levar até o local?

- Claro, eu decorei a planta daqui quando Kell perdeu uma delas. Não sabia se seria útil, mas parece que sim.

Zorr respondeu bem animado. O que esperar de uma criança, que com certeza preferiria fugir das inspeções, ansiosa para viver um momento de aventuras depois de uma sucessão de eventos traumáticos?

Enfim, assim como ele, que precisava de um lar de verdade, as crianças desse lugar mereciam isso e não poderiam ter enquanto o acordo com a Guarda de Azkaere não estava firmado. Até lá, pessoas como Zorr, que estava doente e precisava de remédios e do tratamento, padeciam na esperança de um dia serem livres.

Chegando ao outro lado da Contenção isso seria possível, mas o acordo precisava ser firmado. Tudo dependia disso. Zorr estava esperançoso quanto à aliança e também triste por ter de deixar seus pais aqui neste solo. No caminho ele me contou como se lembrava de sua família e do mundo antigo, quando viviam na Albânia, antes de serem exilados e se juntarem aos fugitivos. Era uma história triste a dele. Este lugar estava cheio delas e de pessoas que mereciam um futuro. Infelizmente, a caçada promovida pelas Regências parecia estar longe de acabar. O Comando - talvez nem todos os líderes - sabiam disso e se aproveitavam como os Regentes se aproveitavam dos guers... empilhando suas mentiras e promessas de "fazer justiça", sem que o povo soubesse da verdade e do que seus líderes eram capazes.

- Zorr!

Escutamos uma voz feminina ecoando pelo corredor. Estaquei. Não reconhecia de quem era. Zorr me olhou de soslaio.


























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