Capítulo XXXIX -
Dois dias se seguiram. Uma nova tempestade de neve atingiu a região e os aquecedores não dariam conta da demanda por muito tempo. Robertta, Honn e eu fomos convocadas na sala de reuniões do Comando e instruídas a utilizar nossos poderes para o que fosse necessário ao bem estar dos abrigados. Mas é claro, enviaram representantes que reconheci observando pela cor da braçadeira. Era estupidez pensar que eles viriam até nós em pessoa. Os dois dias antes da operação "sem nome" foram agitados. Nos requisitavam por todos cantos para fornecer água para beber e para lavar janelas, louças e roupas; para produzir energia; para aquecer os quartos; pediam fogo para cozinhar e até para lançarmos objetos de um lugar ao outro pelo ar, dentre outros trabalhos esquisitos que, principalmente nos eram dados pelos soldados de Azkaere. Eles tinham um prazer nisso ou talvez houvesse alguma espécie de glória oculta em nos ver usando nossos poderes para servir e não para, de alguma forma, fazer com que nos servissem.
No dia marcado todos estavam no local de partida na hora exata com tudo aquilo que foi solicitado a cada um. Inclusive, como o prometido, Brandon e Alexandra nos esperavam sentados na traseira de um dos veículos da Azkaere que serviam para o deslocamento de soldados. O feiticeiro havia pegado do outro galpão que tinha saída para os túneis que levavam à Azkaere e ao outro lado da Contenção. Já aqui, os túneis estavam iluminados graças ao trabalho que Kell, Élan e Marruan realizaram durante a madrugada do dia anterior instalando lâmpadas e à Honn, que habilmente desviara toda a eletricidade que suportou, armazenando-a em si para servir como uma caixa de energia ambulante. Uma vez que estávamos posicionados, mantivemos silêncio absoluto, pois, apesar de afastada a entrada do túnel, não sabíamos exatamente até onde se estendia o comprometimento dos homens que faziam a ronda noturna com seu dever.
Eu caminhava a uma velocidade constante. Estava confiante, mas não o suficiente para deixar que isso me atrapalhasse de algum modo, quando escutei os passos apressados de Honn, significava que eu estava indo rápido demais, acho. Não reconheci a aproximação dela pelo som, é claro, e sim por uma estranha, porém fraca, corrente elétrica que passou dela para mim quando a garota estava chegando mais perto.
- Lizlee, sobre a bifurcação... quantas são e para onde cada uma levava? Precisamos manter uma minúscula margem de erro. As variáveis são...
- Havia uma bifurcação. Direita e esquerda. O túnel mais longo leva diretamente à Tempestuosa, como Alexandra já deixou bem claro.
Honn ficou um momento parada, com a testa franzida digerindo minha reação irritadiça e finalmente gesticulou com as mãos.
- Só estou repassando.
- Esses últimos dias me estressaram. - Suspirei. - Desculpa.
Robertta, muito indignada, passou me empurrando e entrando na conversa.
- Esses dias estressaram a todas nós. Vocês acreditam que um grupo de soldados desgraçados da patente mais baixa possível me fizeram encher duas banheiras com água e esquentá-la para que seu comandante tomasse banho? Mas a pior parte é que ainda voltaram dizendo que "não estava na temperatura correta".
Kell e os irmãos dela já estavam rindo do relato quando Brandon fez uma cara muito séria e a alfinetou.
- Realmente, nós da Azkaere, somos muito exigentes.
- Para atingir o padrão de exigência da Azkaere, que tal vocês mesmos prepararem seus banhos daqui pra frente?
Robertta deu de ombros mas não sem antes olha-lo de cima a baixo com desprezo. Ele, por outro lado, parecia se divertir com as demonstrações de desafeto dela. Os Gregor sempre tentavam disfarçar, mas eu podia sentir o que havia ali. Sem contar que Robertta tinha um modo muito específico de demonstrar que gostava das pessoas e tudo começava com não ser receptiva. Mas o real problema ali deveriam ser as imposições colocadas pela Ordem de Lanóvia a respeito das restringidas relações de seus membros com os demais.
Pensando daquela maneira, passei algum tempo andando um pouco atrás dele, analisando-o. Intencionalmente ou não eu sempre analisava as pessoas. E Brandon, sem o uniforme e a disciplina imposta a um soldado, se parecia mais com o pequeno Ignel, só que em uma versão maior, mais cansada e ferida. As roupas que vestia agora deixavam a mostra algumas cicatrizes disformes e retorcidas contornando todo o seu pescoço. À precária iluminação do túnel que nos engolia à medida que aprofundavamos nele, ora elas se apresentavam claras em sua pele, ora sombriamente esquisitas como se tivessem sido feitas pelas garras de um animal selvagem.
- Chegamos!
Alexandra nos alertou e desligou o carro descendo rapidamente. Desviei os olhos antes que ele percebesse como eu encarava seu pescoço, podendo ficar constrangido.
- Lembrem-se: usem seus poderes mas não sobrecarreguem ou...
- Vamos pirar e estrangular o coleguinha do lado.
Robertta retrucou irônica e lançou um olhar para Brandon que deu um sorrisinho de lado. Alexandra percebeu e pigarreou, repreendendo o irmão.
— Sim, alguma coisa desse tipo.
Ele desviou o olhar para o chão — Élan, Kell e Lizlee, me sigam! — chamou o jovem feiticeiro.
- Honn, Marruan e Robertta, ficam comigo! - foi a vez de Alexandra sinalizar a direção para onde seu grupo iria.
- Espera aí. O seu grupo tem duas guers-matriz e...
- Uma e meia, na verdade. - Alexandra cortou Kell, prevendo onde chegaria se desse corda. - Não devemos contar com os poderes de Robertta.
- O que?
- Isso mesmo que você escutou, garota. Sabem o que fazer, então façam.
- A senhora é quem manda.
Kell imitou uma saudação como a que víamos todos os dias os soldados de Azkaere fazerem e saiu. O outro grupo entrou no veículo e nós seguimos a pé.
- Tem certeza que consegue? — Virei de lado, Élan vinha me acompanhando. — Trabalhou muito nos últimos dias com soldados folgados e aqui no túnel.
- Obrigada pela preocupação, Élan, eu estou bem. Mas será que sua irmã consegue?
- Ela dá um jeito.
Olhei para Kell se distanciando de nós. Olhei para trás, onde estava Brandon. Élan se virou de costas para o túnel e de frente para mim tapando quase que completamente a minha visão do outro garoto.
- Todos nós vamos dar um jeito. Sempre damos.
Apesar da leveza, senti convicção em suas palavras. Afinal de contas era preciso confiarmos uns nos outros para que isso desse certo.
- Sem distrações! - Brandon nos advertiu e em seguida deu uma ordem. - Um, vá ajudar o Dois com os equipamentos.
Élan não se opôs a ordem e saiu correndo pelo túnel. Esperei perdê-lo de vista para me dirigir a Brandon.
- Somos números agora?
- Não consegui pensar em como me referir a vocês. Três.
- Acho que nossos nomes eram boas opções. - Respondi no mesmo tom de descontração.
- Mas assim não teria a menor graça.
Ficamos em silêncio por um minuto que pareceu muito longo aliás. O sorriso ainda em nossos lábios. Depois de um tempo ficou desconcertante. Como se houvesse uma obrigação em manter o diálogo.
- Você nunca liderou uma missão não é mesmo?
- Sou apenas um soldado.
E mais silêncio. Novamente apenas os passos sobre os trilhos, de vez em quando umas pedrinhas mais pontiagudas incomodavam meus pés, mas eu não precisava mais tatear as paredes como da primeira vez que andei aqui tropeçando a cada dois passos.
- Ainda vão querer que eu faça o que me pediu? - Soltei sem pensar muito.
Ele me olhou. Eu olhei para ele. A surpresa estampada em sua expressão.
- Claro. E você?
- Se eu quero fazer? - Indaguei, confusa.
- Não. Quer que eu localize sua tutora?
- Quero.
Ele balançou a cabeça afirmativamente e voltou a olhar para o caminho. Fiquei me punindo mentalmente por ter deixado escapar o quanto aquilo era importante para mim. O quanto Moggie era.
- Posso confessar uma coisa?
- Só se me deixar confessar outra.
- Primeiro as damas.
Ele deu de ombros e esperou. O observei de soslaio e revelei a verdade.
- Acho que estava certo sobre Alarik. Vou tomar mais cuidado com ele.
- Ele são os olhos de Roddein na Guarda.
Meu coração errou uma batida. Roddein. Maya e Peter queriam que eu conhecesse Roddein e agora Alarik com esse comportamento estranho? Há algo de errado.
— Apostei com Alexandra que você não aceitaria essa missão. Ela acredita muito em suas capacidades. Complementou.
- Vamos nos concentrar nesta noite. "Sem distrações", lembra?
Brandon concordou e retomou a caminhada concentrado e com uma expressão séria. Fiz o mesmo.
Alcançamos a saída sem problema algum. Demos a volta e subimos em direção a floresta, pois graças a Eirie e Phil, eu sabia que havia uma cúpula magnética dos Guardiões instalada na região e fui capaz de estabelecer um perímetro em torno dela. E era para lá que estávamos indo. Conforme a informação que recebemos, as unidades cúpulas estarão pouco guarnecidas esta noite pois os Guardiões receberão representantes da Regência da terra no Palácio de Monigram para tentar negociar uma trégua. As tensões entre as Casas da tríade-guardiã e as pressões externas por causa dos movimentos rebeldes obrigaram-os a aumentar ao máximo a segurança em torno do Guardião-Supremo.
O grupo guiado por Alexandra desceria perto de Tempestuosa e dependiam do sucesso da nossa ação na cúpula. Ao chegarmos lá, posicionados do lado de fora, ficamos à espreita agachados na floresta com nossos olhos bem abertos. Deveríamos chegar até a cúpula, entrar e desarmá-la, - o que deixaria a área sem cobertura de vigilância deles - pegar um veículo grande e ir embora. A clareira em torno da cúpula estava limpa. Eles deveriam estar reunidos na parte de dentro. Nos aproximamos por trás onde havia uma escada acoplada na parede metálica que se estendia até o topo da abóbada. Élan e Kell subiriam até último andar visando a pequena abertura que ele apresentava, que seria seu ponto de entrada. Acreditávamos que lá se localizava o núcleo ou gerador que emitia as ondas capazes de captar matrizes elementais. Naquele exato momento eles sabiam que havia um guer-matriz ali, porque a cúpula captou. Eu era como ímã. Enquanto eles subiam, Brandon e eu caminhamos sem pressa até a entrada. Meu coração batendo alto.
- Não vou deixar que te peguem.
Brandon disse e segurou minha mão. Eu permaneceria segurando até o fim só pra ter certeza que ele não me deixaria a mercê deles, mas tive que soltar quando apontamos na entrada e todos lá dentro já estavam em formação. Eram muitos. O pátio estava coberto deles com seus uniformes-armadura de metal reluzente e escudos polidos estampando o brasão com as cores e a águia imponente da Casa Erleyan. Soldados do Guardião-Supremo, concluí. Do fundo, surgiu uma voz masculina, forte e imperativa, dando a ordem de ataque. Alguns escudos foram se dobrando ao meio vez após outra até desaparecerem, outros se desintegrando e outros ainda se retorcendo de dentro para fora e vice-versa até se transformarem em espadas.
Brandon ergueu as duas mãos para a frente, elevou a voz e disse apenas: "Guardiões de Aço! Ajoelhem-se!". No mesmo instante, todos eles, se ajoelharam simultaneamente com um estrondo.
- Três! Vá ver como estão indo Um e Dois. - Olhei para ele por puro reflexo. - Guardiões de Aço! Abram caminho.
Os homens se dividiram, metade indo para a direita e a outra para a esquerda. Suas expressões eram o único indício de que eles sabiam que não estavam agindo por vontade própria. Passei no meio deles devagar. Agora havia fúria estampada em seus rostos. E se algum saísse do lugar e fosse pra cima de mim? Brandon seria conseguiria impedir? Agora eles sabiam que eu era o receptáculo. A matriz estava em mim. E logo quando tinham a oportunidade de colocar suas mãos nela - em mim - não podiam sequer mover o dedo mindinho. Eles tinham motivos para estar furiosos.
Apressei-me no final e subi pelo elevador até o último andar. Quando a porta abriu, fiquei paralisada. No centro da sala havia uma espécie de esfera de energia que era ligada por um cabo até o teto da cúpula. Eu nunca tinha visto nada parecido. Eu podia sentir a eletricidade irradiando, sendo liberada pelo cabo.
- Lizlee!
Virei o rosto desviando a atenção da esfera.
- Como estão indo? - Perguntei me aproximando de Kell.
- Consegui cortar a comunicação. Por outro lado, eu já lidei com um sistema parecido com este. Essa esfera de energia emite campos eletromagnéticos para as outras cúpulas e é assim que conseguem localizar matrizes. Foi assim que nos encontrou no abrigo subterrâneo.
Suspirei frustrada ouvindo a resposta de Kell. Nós quatro no mesmo local.
— Por favor, me diga que tem uma parte boa nisso tudo.
- Acho que elas estão ligadas uma à outra com um código de destruição automática. Se explodirmos uma, todas as outras vão pros ares.
- Então o plano de só impedir que ela envie os pulsos...
Arqueei uma sobrancelha em questionamento.
- Eles foram espertos. Esse sistema foi programado de modo que se autodesligaria se tentássemos isso e as demais cúpulas continuariam operando. Mas se sobrecarregarmos esse pequeno reator e ele explodir...
- Poderemos passar despercebidos até Tempestuosa. - Estava quase dando um sorriso quando voltei atrás. - Eles já sabem, a cúpula captou minha matriz, deve ter enviado pulsos para as outras e...
- Eles só podem agir com autorização do Guardião-Supremo e eles não se falaram pois eu cortei a comunicação.
- Mas a cúpula cobre um raio de quilômetros... eles sabiam que estávamos nos deslocando muito antes... devem ter tido tempo.
Comecei a andar de um lado para o outro. Minha garganta estava seca. Eu precisava pensar, mas aquela esfera de energia tão perto de mim, fazendo meu peito queimar e minhas veias saltarem debaixo da pele, não deixava o raciocínio fluir normalmente.
- Lizlee, eles zombaram de nós ressaltando o quanto fomos estúpidos enviando somente uma guer-matriz para combate. Eu não seria capaz de reproduzir o que disseram. Enfim, eles negaram os reforços oferecidos e garantiram que a levariam pela manhã até o Guardião-Supremo. Eu só cortei a comunicação porque eles foram uns babacas falando sobre você. Então, quando explodirmos esse reator e o efeito cascata começar, os Guardiões em Monigram não poderão fazer nada, pois já estaremos em Tempestuosa tomando de volta aquilo que tiraram de nós. Talvez percebam com prazo o suficiente para estarmos voltando para casa.
Enquanto ele falava somente acompanhei, a minha cabeça dava voltas. Ele poderia estar certo, mas...
- Eles irão deixar as cerimônias e a falsa compaixão. Todas as pessoas no abrigo estarão em perigo.
- Já estaremos atravessando a Contenção.
Kell rebateu sem deixar margem para resposta. Ele me encarou. Ficou quieto. Prometi a mim mesma, era hora de tomar as rédeas da situação.
- Kell, eu achei.
Élan entrou correndo na sala. Kell lançou um olhar para mim ao que assenti. Kell juntou o equipamento rapidamente mas antes de entrar no elevador colocou uma mão em meu ombro por um momento sem dizer uma palavra. E eles se foram.
Antes de começar, observei minhas veias. Eu podia sentir como a energia fluía dentro da esfera. Podia sentir como o meu sangue fluía na presença daquele núcleo energizado. E assim se passaram mais alguns minutos. Toquei a base metálica dele com as mãos queimando a uma temperatura que era a maior que consegui no momento. Os circuitos começaram a estourar em faíscas e fumaça. Tudo foi sendo tomado pelo fogo com muita facilidade. Lá fora escutei um som agudo. Uma buzina. Eles estavam prontos para fugir dali.
Era a minha vez.
Depositei as duas mãos sobre o núcleo - pela parte de fora. Concentrei-me na eletricidade contida ali dentro pois o plano era sincronizar o núcleo com a matriz elemental de maneira que conseguiria controlá-lo. Para isso reuni as partículas com toda a pressão possível. Poderia dar muito errado e eu morreria eletrocutada ou, muito certo e eu viveria. Acho que estava meio a meio. A buzina continuou tocando. Várias vezes. De repente, senti uma onda de choques de baixa voltagem circulando meus dedos das mãos como em uma dança do caos, subindo pelos meus braços, passando por meu pescoço e pipocando em minhas bochechas diante dos meus olhos. Eu estava, finalmente, no controle.
Tirei as mãos da esfera ainda mantendo a posição delas. Dei dois passos para trás me afastando e liberei a pressão que exercia sobre o núcleo. Ele expandiu e explodiu. Raios dançando ao redor de mim. Brilhando muito forte com luz e fogo. O chão se desfez sob meus pés e o teto, sob minha cabeça. Tudo ao redor ruiu e os pedaços literalmente voaram. E Kell estava certo afinal, porque os outros núcleos das cúpulas escondidas pela noite na floresta, brilharam como fogos de artifício em sequência.
Eu ainda sentia meu corpo, o que significava que ainda tinha um. Ainda estava ali. Viva. Inteira. Ou quase isso. Provavelmente meus ossos estavam quebrados. A eletricidade chicoteou mais uma vez minhas bochechas e foi quando percebi que não só elas estavam tomadas e sim todo o meu corpo que parecia ter sido completamente energizado. Balancei a mão e ela atirou raios para cima, fiz outro movimento - dessa vez para baixo - e eles voltaram, partindo uma estrutura metálica que me cobria até o quadril. Levantei um pouco atordoada. Sentei primeiro. "Ainda aguento algumas pancadas", pensei.
Saltei por cima dos escombros, que ainda pegavam fogo, indo para a floresta. Precisei usar as árvores para me manter de pé. Meu próprio corpo iluminando o caminho. "Vamos, ainda há muito o que fazer", dizia a mim mesma como incentivo.
Lizlee! Lizlee!
Ouvi chamarem meu nome.
- Brandon? - Chamei de volta. Segundos depois gritaram de volta, uma resposta. - Kell? Sigam o sinal.
Atirei outro raio para o alto. E ouvi um deles dizendo "Por ali". Estavam perto. Minhas pernas vacilaram, caí no chão. O primeiro que avistei foi Brandon. Ele hesitou ao me ver com aquela aparência.
- Eu a encontrei. - O jovem feiticeiro falou - Consegue ficar em pé?
- Sim.
Brandon estendeu sua mão e me puxou assim que a segurei. Me apoiei em seu braço para andar até encontrarmos Élan e Kell perto da estrada de terra que cortava por trás da extinta cúpula. Eles tiveram a mesma reação de susto ao me ver chegando. Fechei os olhos e parei, obrigando Brandon a parar também.
- Tudo bem?
Não respondi. Simplesmente convoquei a eletricidade para dentro de mim. Estremeci. Comecei a sentir frio. Aos poucos voltei a parecer mais uma garota normal do que uma que acabara de explodir uma cúpula.
- É bom tê-la de volta. - Élan me abraçou, entusiasmado e aliviado.
[...]
Com exceção de Élan comentando como ficou impressionado com as explosões e com Brandon fazendo todos os soldados dormirem ao mesmo tempo, ficamos quietos até poucos quilômetros de Tempestuosa quando tivemos que passar para a parte de trás do caminhão. Imagino que naquela altura - considerando as habilidades de uma feiticeira e duas guers-matriz - os quatro já teriam passado pelo posto de vigilância da Zona e estariam posicionados na distribuidora apenas esperando que nos juntássemos a eles para a segunda parte do plano.
Sobre o posto de vigilância da Zona pelo menos eu estava certa a julgar pelos escombros que encontramos quando passamos em frente ao local onde ele deveria estar. Brandon manteve uma velocidade constante e o semblante calmo. Até porque, ele precisava parecer apenas mais um guardião entediado, perdendo outra noite de sono cumprindo ordens na madrugada. Passamos pela inspeção com um empurrão, já que os seguranças pouco ligaram para a parte de trás do caminhão, mas cismou com Brandon alegando que o conhecia de algum lugar. Ele usava as vestimentas de um guardião-baixo e estava dirigindo um caminhão com brasão da Ordem que mesclava as cores das Casas da tríade-guardiã, então, juntamente com as respostas que Brandon lhe deu, ele nos deixou entrar. Quando finalmente o caminhão estacionou com a traseira voltada para o armazém, respirei aliviada. Uma vez que olhei o lugar, consegui avistar silhuetas caminhando no telhado de outro bloco igual a este em que estávamos.
- Espera aí!
Élan passou por mim velozmente. Entendi o porquê assim que vi apenas três pessoas retornando. Honn sorriu largamente ao nos avistar, correu passando por Élan e por mim como se fôssemos feitos de fumaça, indo direto em Kell supreendendo-o com um beijo.
- Cadê Marruan?
- Na estrada. - Robertta respondeu ao seu irmão. - Nós carregamos dois caminhões.
- E conseguimos isso no escritório. Estão cortando recursos básicos para enfraquecer a causa. As pessoas vão se sentir pressionadas a escolher sobreviver ou rebelar-se.
Alexandra me entregou uns papéis que folheei rapidamente compreendendo que os Guardiões haviam monopolizado e retido a produção e a distribuição de todos os setores para simplesmente serem os únicos a comercializar em troca da rendição voluntária dos não-guers que habitavam os vilarejos-livres. Passei alguns documentos para os outros.
- Mas vão acabar indo para os postos de trabalho escravo. - Sussurrei sem tirar os olhos dos papéis em minhas mãos trêmulas.
- Desgraçados. Fizemos bem em explodir as cúpulas. - Kell revoltado exprimiu entre os dentes amassando a folha entre os dedos.
- Cuidamos disso depois. Alexandra, onde está o carro?
- Deixei na entrada da cidade. Viemos a pé.
- Élan, leve o caminhão que já foi carregado. Kell, vamos carregar este para você. Eu vou levar outro. Alexandra...
- Não recebo ordens. Vou levar as meninas!
Ele simplesmente assentiu.
- Olha, eu também sei dirigir um caminhão. - Robertta deu um passo a frente.
- Quanto mais, melhor! - Alexandra assentiu para o irmão. - Continuem carregando. Lizlee e Honn, venham comigo.
- Para?
Honn perguntou, dando ainda uma última olhada em Kell. Acompanhei os passos rápidos e silenciosos da feiticeira já imaginando o que teríamos de fazer. Ela parecia flutuar sob o chão junto da névoa.
- Para providenciar uma passagem livre. Mas antes, volte ao escritório e entre em contato com a base. Não se identifique. Peça que preparem-se para evacuar o abrigo.
Dei um passo para trás ao ver o que a feiticeira estava entregando nas pequenas mãos de Honn. Um olho humano, ensanguentado. Ela, por sua vez, não se importou e apenas correu até um dos armazéns, saltando do chão para o telhado com um giro perfeito. Sem perder tempo, escalou até o topo e voltou a correr lá no alto. Depois escorregou até a ponta do outro lado, saltou em uma viga fina que o ligava ao próximo armazém. Senti um frio na barriga, mas ela parecia ter total controle sobre o que estava fazendo. Tornou a encaixar suas pequenas mãos entre os vãos nas telhas e escalando para a parte mais alta do telhado saltou mais uma vez alcançando uma das janelas no sótão. Estava emperrada. Ela deu a volta no sótão, escorregou pelo telhado e, se segurando na calha pelos pés, balançou o corpo e conseguiu segurar a proteção da sacada, em seguida girou o corpo e caiu na parte de dentro. Apenas quando forçou a porta, ela abriu eu a vi entrando em segurança no escritório, pude soltar o ar de apreensão que prendia.
- Alexandra?
Redirecionei a atenção ao local onde ela estava há pouco. Escutei o ruído. Élan estava saindo tranquilamente com seu caminhão, o operador dos portões e da cancela simplesmente permitiu a saída. Então observei que Alexandra surgira logo atrás do homem e se inclinou para a frente dizendo alguma coisa em seu ouvido, ao que ele concordou sem hesitar. Aproveitei e fui até o pátio entre um armazém e o outro. As costas bem rentes à parede. Coloquei apenas a cabeça para olhar e contei um grupo de guardiões circulando o prédio do escritório. Onde Honn estava. Voltei a olhar e confirmei que eram doze homens. Retornei rapidamente. Respirei. Contei até dez. Os passos firmes. O som das risadas deles. Mantive o foco. Escolhi o que usaria.
- Os rapazes estão perdidos?
Me dirigi a eles, sem dar oportunidade de verem de onde veio o golpe, os atingi com um enorme e mais forte jato d'água que pude projetar, deixando-os ensopados. O gran finale foi o retorno da eletricidade que, como relâmpagos em minha pele, iam e voltavam, chicoteando as paredes e o chão, e por fim, os atingiram por todos os lados ao menor movimento de minhas mãos. Seus gritos de dor e desespero, os músculos retorcendo e suas peles logo começando a cheirar mal, soltando fumaça. A morte por eletrocussão não deve ser uma das melhores.
- Nunca pensei que fosse realmente capaz de agir tão friamente.
- É essa a mensagem que Roddein quer transmitir a mim?
Sorri com desdém e girei sobre os calcanhares reconhecendo Alarik antes de visualizá-lo apontando uma arma na altura da minha cabeça.
- Roddein deve estar bem desapontado com você. Por qual outro motivo teria me enviado até aqui?
Seus olhos estavam mais brancos do que nunca. Ainda carregavam a mesma estranha singularidade. O dedo no gatilho. A postura de um verdadeiro soldado, disciplinado.
- Se Roddein estivesse tão desapontado teria enviado pessoas mais qualificadas. - Escarneci.
- Eu avisei que estava se envolvendo em algo verdadeiramente perigoso. Roddein não quer ninguém em seu caminho, atrapalhando seus negócios.
Em meus lábios um sorriso vitorioso ia se abrindo. Nem parecia que tinha uma arma apontada para a minha testa.
- Roddein deve ser um deus ganancioso ou um deus fracote com medo de uma garotinha.
- Vamos descobrir em pouco tempo.
Senti a cada minuto o metal gelado contra a minha pele. Sustentei o olhar nele, mas notei que a todo o momento ele virava a cabeça em hesitação. Ele baixava a arma e parecia perturbado. Porém, na última vez, ao retornar Alarik me atirou contra a parede e ergueu novamente a arma, dessa vez com mais firmeza. De repente, um buraco se abriu na testa de Alarik. Uma ponta metálica estava atravessada em sua testa e esta começou a sangrar em seu rosto. Ele caiu de joelhos. A arma ainda engatilhada e seus dedos permanecendo no lugar. Numa tentativa final, suas mãos trêmulas a apontaram em minha direção, mas outra flecha o atingiu, agora no peito. E seu corpo balançou de um lado para o outro, em seguida, consegui escutar o impacto dos ossos da sua cabeça batendo contra o concreto. Lá de cima uma silhueta antes escondida pela escuridão foi cada vez mais se dissociando dela.
- Você está bem?
Reconheci a voz de Eirie e por um instante quis bater a cabeça dele na parede por ter sumido sem explicação. Acompanhei com os olhos ele se agachando perto de mim, baixando o capuz e o pano que cobria sua boca. Haviam gotas de água em seu cabelo preto escuro escorregando entre as mechas. Me ajoelhei indo em sua direção e segurei seu rosto com as duas mãos.
- Você disse que precisava de mim... - Exclamei demonstrando sinais de apreensão.
- Sempre precisei.
Me inclinei para ele, agora sorrindo pela resposta.
- Eu quero matar você.
E aos poucos ele também estava sorrindo. Meus lábios tão próximos dos dele que se roçavam. A ponta do nariz dele estava fria contra minhas maças do rosto quentes. E eu o beijei ardentemente como se o corpo de um homem morto não estivesse bem ali do nosso lado.
Em um momento parecia que o mundo girava em câmera lenta, igual a um livro de romance. Eu sentia que meu coração iria explodir a qualquer momento se Eirie não tivesse me afastado e, aturdido, levado uma mão à nuca.
- O que aconteceu?
Mal tomei o pequeno dardo de sua mão e ele caiu desacordado em meus braços. No instante seguinte também levei uma fisgada no braço e desmaiei sobre Eirie.
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