Capítulo XXXIII -
Élan me conduziu à sala de espera. Mantive a calma. Não poderia ser algo tão grave, não é mesmo? Pensei. Mas era inevitável não esperar o pior.
— O seu irmão mais velho pediu que eu lhe levasse até ele.
Surpreendi-me ao chegarmos na porta dos fundos e sua voz quebrar o silêncio.
— Quem? – demorei alguns segundos para assimilar que ele se referia à Eirie. — Ah claro, o meu irmão. Ele não sabe viver sem mim...
— Sei bem como é.
Élan rebateu, sorrindo cordialmente. Continuamos seguindo em um caminho por mim desconhecido.
— Como você está? – Hesitei. — Digo, depois de tudo o que aconteceu nos últimos dias?
— Por sorte eu estava trabalhando aqui quando nos atacaram. Se nosso retorno não tivesse distraído o Comando ou se nossa ação tivesse sido mais rápida...
— Ei! Vocês trabalharam bem e pouparam muitas vidas. Agora estão cuidando dos feridos e abrigando famílias inteiras. Isso sem contar que vocês foram as vítimas.
Ele desviou o olhar em outra direção e cabisbaixo, retrucou.
— Não somos as vítimas. Você não sabe o que fizemos.
Após um segundo deslizando pela superfície do macacão, encontrei um lugar onde escondê-las e suspirei, desconfiando que talvez tivesse uma noção ao que ele se referia.
— Então ... foram as vítimas, desta vez. Para ser sincera, eu sei do acordo que seus pais aceitaram antes de virem para cá e o que fizeram com aquelas crianças guers.
Élan escondeu o rosto envergonhado e rebateu em voz baixa.
— Não. Você acha que sabe.
— É realmente repugnante, mas também não posso deixar de notar que vocês foram usados por quem os enviou antes e agora, estão prestes a serem usados novamente. – Completei como uma confidência.
Ele se voltou totalmente para mim um tanto confuso.
— Eu não sei o que você quer dizer com isso.
— Obrigado por acompanhar minha irmã. Eu assumo daqui.
Ouvi a voz de Eirie vindo por trás de mim e parando ao meu lado estendeu a mão ao garoto, cumprimentando-o. Olhei para a escada, para a clarabóia e depois para eles. Élan conferiu os guilhers que Eirie colocou em sua mão e se retirou depressa, olhando para os dois lados do corredor antes de voltar.
— Você o subornou? – Interroguei e o repreendi ao mesmo tempo.
— Você acha que essas pessoas fazem algo de graça?
Meneei a cabeça e cruzei os braços. Eirie cobriu o rosto com seu cachecol e subiu as escadas, destravou e empurrou a abertura. Um vento gelado invadiu o local. Tremi mesmo estando com o uniforme para o frio. Subi e me esgueirei pela saída, recebendo neve no cabelo e no rosto.
— Antes do seu surto de moralidade, precisa ver o que tenho aqui.
Eirie mexeu nos bolsos e mostrou um objeto de formato cúbico e eu tomei de sua mão, analisando suas faces escuras, lisas e cintilantes.
— O que tem aqui?
— Você lembra do que aconteceu depois que encontramos Celia e Sérgio?
Me esforcei em buscar na memória e realmente não lembrava de nada, a não ser acordar no galpão do dormitório antes de vir para cá visitar Robertta.
— Viu, não se lembra e nem eu. Alexandra conseguiu acesso à informações sobre o que fizemos. E isso – ele apontou para o cubo em minha mão – é a prova de que eles manipularam nossas mentes. Lizlee, a resposta está aqui. Literalmente em nossas mãos.
Eirie reivindicou o cubo e eu o entreguei. Ele sacudiu o pequeno objeto, analisou e tentou abri-lo, mas desistiu após algumas tentativas frustradas. Pedi-o de volta. Sem rodeios coloquei na boca e engoli com muita naturalidade, sob o olhar espantado de Eirie. As memórias perdidas foram chegando em forma de flashes desordenados, voando como folhas em um redemoinho. Uma voz ecoou em minha cabeça pedindo para que eu mostrasse o que via. Toquei no rosto dele com uma mão e juntos começamos a assistir uma espécie de gravação do que aconteceu no período que não recordamos.
[...]
De repente, nós andávamos nas vielas da Zona 5. Estava escuro e nevava, portanto ninguém se atreveria a sair na rua. Nós erámos os únicos suficientemente idiotas para isso.
— Sério isso? Você comeu o cubo? – Eirie perguntou.
— Eu estava com fome. – Respondi, dando de ombros.
Avistei duas figuras estranhas com uniformes completamente pretos e um capuz cobrindo seus rostos misturando-os às sombras da noite. Eles vinham diretamente para nós, porém, não se importavam com nossa presença. Entendi do que se tratava quando eles atravessaram nossos corpos como se fossem feitos de fumaça e seguiram o caminho. Nos entreolhamos assustados.
— Vamos.
— Eles, somos nós. – Eirie gesticulou para mim. Fiquei boquiaberta.
Observamos nossas versões sombrias dando saltos no ar, transpondo muros rumo ao topo das casas e dos telhados de umas pulando para as outras. As vielas estreitas, estavam tranquilas, bem diferente dos dias habituais em que os Atravessadores enchiam esse local com seus contrabandos e conversas sobre negociações ou especulações. Mas o vento gelado que soprava do oeste ainda era igual. Os flocos de neve indo para lá e para cá, queimando nossas faces de frio, não pareciam abalar a obstinação de alguns Atravessadores, carregando os transportadores prestes a partir através dos portões da Contenção com o contrabando, nem muito menos a de nossos "eus", que tão somente observávamos de longe.
— O que vocês estão fazendo aqui? – Pergunto mais para mim mesma. Eirie me olha, posso notar com a visão periférica.
— Estão nos testando.
Não consigo tirar os olhos da cena. Não consigo tirar os olhos deles... de nós...
A ação foi rápida. Talvez não tenha durado mais do que quinze minutos. Saltamos de nosso esconderijo e invadimos os caminhões de transporte por cima. Ao ouvirem o estrondo da queda quando aterrisamos na parte de cima, começaram a perguntar uns aos outros o que havia acontecido. Aproveitamos enquanto eles procuravam enxergar com suas lanternas e os atacamos.
Eirie, tendo duas katanas afiadas e reluzentes, caiu sobre um deles e girou as armas ao mesmo tempo, separando sua cabeça de seu corpo num corte rápido. Eu, corri até a traseira do caminhão e pulei. Logo em seguida explodi as trancas, chutei as portas e arranquei a capa, atirando-a no chão. O vento a carregou para trás como folha de papel. Minhas mãos inflamaram-se em chamas crepitantes que foram tomando conta de todo o meu braço, percorrendo minha pele até os ombros.
Conseguíamos escutar o estalar das lâminas de aço – vindos do outro lado do caminhão – e os gritos de dor misturando-se à súplicas por misericórdia, enquanto eu incendiava a parte de dentro. Um pequeno grupo saltou do outro transporte ao ouvir o desespero de seus colegas e se depararam conosco. Meu eu, que se encontrava lá embaixo, foi atacado pelas costas, sendo arremessado para o interior do caminhão.
— Eu os conheço. São da Regência do fogo. – Eirie, daqui de cima, reconheceu os soldados da guarda pela cor de suas fardas e emblemas.
Eirie, lá de baixo, colocou as katanas de volta nas bainhas e pegou seu arco, depois alcançou a aljava em suas costas, posicionou-se e pressionou a flecha contra a corda, depois soltou-a e deixou que cumprisse seu destino, atingindo o peito de um dos guardas. O baque do corpo contra o chão, fez com que os outros sete voltassem sua atenção para o arqueiro a tempo somente de assistir mais um deles ser atingido e cair.
A outra Lizlee retornou voando – literalmente. As mãos se fechando em punho, acabaram ganhando contornos de terra sólida e ela partiu para cima dos homens, que unidos, criaram um grande escudo de fogo. Outros que não se encarregavam da defesa, começaram a atirarar bolas flamejantes e quentes, das quais ela foi desviando e rebatendo até conseguir encontrar espaço para uma investida – o que a fez dar de frente com o escudo – com apenas modificando-se em fogo, ela absorveu a defesa e com a mão de pedra, desferiu um soco no nariz do primeiro guarda em sua frente.
Rapidamente a formação se recompôs e a cercaram em um formato cilíndrico de fogo, que recebeu mais alguns metros indo em direção ao céu. Porém, não contavam que a outra Lizlee atravessaria sem grandes problemas. Os soldados estavam feridos e com certeza também estavam cansados da batalha em Monigram, mas não se rendiam. Isso não parecia ser empecilho para nossas versões sombrias, que queriam sangue, quando o outro Eirie retornou na direção do caminhão de transporte, deu ré e passou por cima de três guardas que tentavam fugir.
Enquanto isso, a outra Lizlee girou seu próprio corpo, criando um eixo de deslocamento da massa de ar, que alcançou o restante deles em segundos e os lançou contra containers depositados em um outro canto das docas. Ao aterrisar no chão, aquele Eirie já havia descido e parou bem ao seu lado, oferecendo a ela uma das katanas e ficando com a outra.
Eles terminaram o serviço cortando as cabeças deles e empilhando junto com a dos seis Atravessadores que encontraram. Acompanhamos o nosso próprio retorno à Zona 6 pelo túnel subterrâneo, – o que explica a sensação de familiaridade que senti mais cedo na entrada do túnel da área dos dormitórios – até quando fomos chamados ao Comando e relatamos ter encontrado mais de 30 soldados, no entanto, nada do alvo principal – o Regente. Depois de se darem por satisfeitos, injetaram algo em nós e apagamos.
Afastei a mão da face de Eirie e dei um passo para trás. As coisas que vimos me deixaram confusa, porém, esclarecida sobre o tipo de pessoas que nos rodeavam e até onde eram capazes de ir em nome da rebelião. Eu estava certa de desconfiar.
— Nós deveríamos ir embora. – Eirie exclamou.
— Não.
— Por que? – Interrogou-me, atônito pela resposta.
— As forças rebeldes têm o apoio do lado Oeste da Contenção; os quatro guers-matriz no lugar onde querem e a Primeira Regência foi derrubada. – Eirie me observava atentamente, se esforçando em entender qual a razão de ficar. — Lembro de uma vez que me disse algo sobre jogo de poder.
— Eu não sabia que você me escutava. – Retrucou, sarcástico.
— Bom, você falou sobre como é perigoso contrariar pessoas poderosas e Eirie, acredite em mim quando digo que eles estão com o poder.
— Em outras palavras: nós perdemos.
Respirei profundamente antes de continuar, ganhando um ar triunfante de quem tinha um plano.
— Não se declararmos lealdade à causa rebelde e convencermos o Comando a pedir a proteção dos Guardiões.
— Porque diabos eles pediriam a proteção deles? – Eirie questionou mais confuso ainda.
— Ah meu querido, por que os Guardiões estão em guerra civil contra a Regência da terra mas não dispõem de um exército tão numeroso quanto o dos rebeldes, que, por sua vez, já contam com apoio de todo o oeste da Contenção. – Ele movimentava a cabeça como se dessa forma acompanhasse melhor meu raciocínio. — Se os movimentos se unirem há uma grande chance de derrubarem a Segunda Regência e os Guardiões tomarem o poder. Mas sem a proteção dos Guardiões, os rebeldes do oeste não poderão atravessar o muro e não haverá vitória alguma.
— Ok, mas e o que nós ganhamos com isso?
— A confiança dos Guardiões. E dos rebeldes também... tudo ao mesmo tempo. Eles não podem nos matar, pois nossas matrizes seriam inativadas e é claro, não arriscarão nossas vidas deixando-nos participar de batalha alguma. Não é a posição mais privilegiada do mundo, mas acho que devemos tentar.
— Espera, como você aprendeu tanto? – Perguntou, desconfiado.
— Passar horas lendo livros vale a pena, sabia? – Pisquei para ele.
— Você é esperta.
— Não. Só estou entrando no jogo e jogando com as peças deles. Mas pelo menos não terei de lutar em nenhuma guerra. Eu com certeza seria a primeira a morrer.
— Agora você me insulta. Fui um mestre tão ruim assim?
Soltei uma risada curta e emendei numa resposta.
— Não. Eu que não nasci pra ser uma guerreira.
— Ou você simplesmente ainda não descobriu que pode ser uma.
O riso cessou. Deixei que os meus olhos se mantivessem nas minhas botas cobertas de neve, até ver a mão de Eirie se estender para mim.
— Quer saber? Vem comigo. – Ele disse.
— Pra onde? – Perguntei.
— Não confia em mim?
— Jamais. – Rebati rapidamente.
— Viu. Você é esperta.
Nós dois rimos. Brincadeiras tem um fundo de verdade. Era tarde para correr. Ele me indicou um lugar para ficar e contou alguns passos de distância.
— O que é isso? – Interroguei.
— Uma simulação.
Ele abriu os braços. Seu cenho franziu e logo os ventos vieram pelas duas direções circulando-nos e fazendo com que neve flutuasse ao nosso redor.
— Vai parecer uma completa idiotice o que vou dizer agora, mas, você percebeu que parecemos mais fortes quando manipulados? Seja por outras pessoas ou por essa coisa dentro de nós que pode nos matar a qualquer instante...
— Não deveria ser assim. – Concluo.
— Não, não deveria. É bom se sentir poderoso, mas como saber qual é a hora de parar?
— Acho que é quando você sente prazer em ferir ou matar alguém.
Eirie esteve pensativo por alguns minutos e depois se impulsionou com o ar deixando o corpo suspenso. Era como se ele pudesse voar, sem asas. Movimentei os braços para fora e para dentro, depois para baixo e para cima e subi tão rápido quanto ele, alcançando-o logo em seguida. Ele deu um rasante, fazendo-me desconcentrar e despencar um pouco. Depois disso, o garoto começou a rir.
— Precisava ver sua cara de susto.
Fechei as duas mãos em chamas azuladas e parti para cima dele, que se defendeu bem antes e enviando uma rajada de vento que abriu uma maior distância entre nós. Abri um dos braços atraindo os flocos de neve e com o outro atraí o vento. Eu sabia que fechando os dois ao mesmo tempo, além de redireciona-los contra Eirie, acabaria dobrando a força de impacto de modo que a sua barreira não seria suficiente para contê-lo de imediato. Usando isso, aproveitei o momento e dei uma investida pegando ele em cheio, destruindo sua proteção e desferindo um soco em seu queixo, de baixo para cima. Eirie revidou com uma joelhada no abdômen que me fez encurvar de dor, depois pegou em meu queixo e apertou, tentando erguer minha cabeça. Como eletricidade, as faíscas correram em minhas mãos e se propagaram. Aquilo renovou minhas forças. Parti dando uma sequência de socos em seu estômago. De repente, quando eu estava pegando gosto por bater ao invés de apanhar, Eirie conseguiu se desvencilhar, abaixou e me agarrou pela cintura, provocando minha desestabilização. Durante a queda consegui fazer com que a terra se desprendesse e ficasse suspensa a uns cinco metros do chão. Bati contra ela e continuei rolando até a borda, onde tive que me segurar para não cair. Mas por causa da neve, minhas mãos escorregavam com facilidade. Eirie pousou em minha pedra suspensa no ar, foi até a beirada e tocou o solo coberto por uma camada de neve.
— Espero que a neve esteja fofa lá embaixo.
E em questão de segundos depois, a terra começou a rachar e esfacelar. Ele tornou a flutuar, ao contrário de mim, que caí e bati com as costas viradas para o chão. O observei pousando tranquilamnete ao meu lado direito, em meio aos meus gemidos e reclamações de dor na coluna.
— Ora, vamos. Levante.
Eirie estendeu a mão para que pudesse me levantar. Observei uma oportunidade e dei uma rasteira nele. Saltei, me apoiando sob minhas próprias pernas e debochando em seguida.
— Ora, vamos. Levante.
Apontei o tridente de fogo – que acabara de moldar no instante em que ele tentava se levantar – contra o pescoço dele, pressionando até deixar um pouco avermelhado.
— Mas só se puder, é claro.
— Isso não deveria ser de água? – Ele indagou, indicando o objeto elemental com a cabeça.
— Creio que você se enganou de personagem.
O tridente desapareceu ao meu comando. Ele sentou com um sorriso nos lábios que se apagou com um ruído mínimo.
— Ouviu isso?
Já deixei uma bola de fogo preparada para o ataque.
— Isso foi muito legal.
De repente, Honn e Robertta saíram de trás das ruínas onde se escondiam para nos espionar.
— Tenho que admitir, foi um espetáculo e tanto. Eu aplaudiria se tivesse mais forças. – Senti o sarcasmo na voz de Robertta. — Ora, não fiquem tímidos com a platéia. Lutem!
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