Capítulo XXXII -

[...]

E terminando de contar, com detalhes, tudo o que havia acontecido em sua ausência, me recostei na poltrona, fechei os olhos e suspirei, prolongando o tempo de refletir se havia algo ainda que dizer-lhe.

- E porque você não fugiu?

Movimentei a cabeça o mais devagar que podia, experimentando um pouco da revolução de sentimentos aquele questionamento causara em mim. Percebi que, mesmo depois de todas as vezes que anulei minhas vontades para manter a segurança de outros, esperando ouvir pelo menos um "muito obrigada por não nos abandonar" ou algo do tipo, ali estava eu... esperando reconhecimento por minha atitude. Mas, pelo contrário, tudo que recebi foi um tapa na cara. "Cuidado com as palavras. Elas refletem o tipo de coisa que você faria quando perdesse o controle. Escolha-as bem.", meu pai disse uma vez e agora elas ecoavam em minha cabeça. Eu conseguia sentir até o cheiro do whisky impregnando em suas roupas. Nós havíamos acabado de discutir mais uma vez, por que ele chegou em casa de madrugada, completamente sujo e embriagado. Fiquei com raiva dele. Disse tudo o que devia e o que não devia também. Para mim tudo aquilo que ele dizia não passava de resmungos de um bêbado e nunca havia parado para pensar nelas até ter, em minha frente, um exemplo vivo do que achava que elas significavam.

- Para onde eu fugiria a esta altura? - respondi com uma pergunta.

- Ora, não sei. Para sua casa, talvez. Ou para algum lugar onde ficasse segura.

Gargalhei, seca. Incomodado com minha reação, Eirie consertou a postura na cama para me olhar direito.

- Qual é a graça?

- Minha casa sou eu! E no momento, sou o lugar mais seguro do mundo.

Desviei o olhar sem ter tempo de notar a expressão que o garoto esboçara e recebi seu silêncio.

- Pois bem, só vim aqui avisar que talvez venham te interrogar e seria bom que nada soubessem sobre sua ligação com as Regências e muito menos sobre Otávio. Não coloque tudo a perder.

Exclamei após algum tempo, enquanto me ocupava em observar o soro, que descia pelo cano e penetrava nele por via intravenosa, estava sendo administrado. Dei uns petelecos.

- Que venham! Estarei preparado. - exclamou, decidido e estufando o peito.

- Eles vão destrinchar você. E se tudo der errado, provavelmente, irão me destrinchar também.

Constatei, ficando ligeiramente incomodada com os meus próprios, e literais, pensamentos. Os espantei rapidamente. Inclinei-me um pouco até estar olhando em seus olhos.

- Não deixe seu heroísmo, ego ou descontrole destruir tudo dessa vez. Caso não consiga, apenas fique calado e me chame. Agora eu preciso encontrar o Otávio e me certificar de que ele não gritou aos sete ventos que é "Filho do Regente".

Me dirigi a saída, no entanto, fui barrada na porta pela repentina aparição de Alexandra.

- Se o garoto tivesse falado tal coisa, nós já deveríamos estar fugindo. Não é mesmo, Eirie?

Com um dois passos largos para trás, afastei-me da saída e retornei ao pé do leito. Olhei para Eirie esperando confirmação sem desviar a atenção de Alexandra.

- Não. Philip deve ter avisado que eu executava Eikos. Eles não acreditariam se lhes fosse solicitada uma negociação.

- O que é "Eikos"? - Interroguei, falando entre os dentes. Alexandra cruzos braços e apontou Eirie com a cabeça. Olhei para ele.

- Eikos era irmão mais novo do Regente. Hoje esse nome é de uma manobra de retirada, geralmente envolvendo a fuga de membros da família regencial. Recebeu esse nome por que na invasão de Groëta, a antiga sede da Regência, ele conseguiu retirar todos os membros de sua família, salvando-os e dando continuidade à Dinastia Zvatrze. Infelizmente Eikos morreu no processo e não pôde presenciar a ascensão da Regência após esses acontecimentos.

- E também não presenciou sua queda. - Exclamou Alexandra.

- Nós não caímos. - Ele rebateu num tom grave, convicto.

- "Regência" é apenas um termo substitutivo, e um pouco menos manchado, para um novo "regime autoritarista". Então eu espero que a sua regência tenha caído, sim. E que caiam as demais também.

As palavras de Alexandra surtiram qualquer impacto que calou a voz do garoto, mas a sua pele se alaranjava como brasa quase explodindo em chamas. Eles se olhavam fixamente como se um fosse comer o outro.

Alexandra simpatizava com os rebeldes.

- Querem que eu me junte a eles e eu me senti coagida...

Exclamei e interrompi aquele constrangedor momento de expectadora que presenciava o possível fim de uma amizade.

- E você vai?

- É lógico que não. - Eirie respondeu antes que eu o fizesse. - Não podemos lutar em lados opostos.

- Porque? Você tem medo de que os rebeldes vençam?

Ele saltou na cama, enfurecido com a provocação da garota e retrucou.

- O problema é que eles não vão vencer. Eles não tem nem chance. Eles estão em menor número, não tem recursos suficientes para financiar uma guerra e mesmo se tivessem... eles não tem poderes.

No olhar de Alexandra havia um ar de triunfo. As mãos atrás das costas. Com apenas três passos lentos e firmes ela veio até ele, baixou o rosto até bem próximo ao dele e respondeu:

- Pois saiba, que eles tem o apoio das Regências de Água e de Ar, que não se submeterão mais à tirania dos seus senhores! - Ao fim da sentença, ela apontava o dedo indicador contra o peito dele.

E quando voltou-se de frente para mim, seus lábios e olhos estavam abertos e completamente escurecidos. Durante cerca de um minuto, por ambos pudemos contemplar um líquido preto escorrer. Trombei na cama e acabei caindo sentada, ainda vidrada na cena. Os pingos que alcançavam o chão se moviam sobre ele e rastejavam, aglutinando-se e formando então um envelope. Assim que acabara de transmutar-se para forma sólida, abaixei e peguei. Abri rapidamente ao ler, em letra corrida e conhecida, o nome do remetente.

- É de Philip! - Anunciei, abanando as mãos para os dois. Pigarreei e comecei a ler em voz alta, imprimindo força em cada palavra, até que, por fim, compreendesem que suas opiniões políticas eram menos importantes neste momento:

"Não posso entrar em detalhes agora, apenas peço que encontre Lizlee e Eirie. Diga a eles que não retornem. Pelo contrário, diga que se afastem o máximo que puderem de Monigram. O Palácio foi totalmente tomado pelas forças da Guarda do Forte Dourado, os manipuladores de metal, e em breve, todas as terras pertencentes à ela. Averiguei com alguns atravessadores uma informação de que a Ordem dos Guardiões planeja derrubar a Regência da Terra e assumir o poder em Régians, conquistando a independência. Poucos de nós conseguiram fugir e dos que ficaram não se tem notícias. Por isso, sugiro que eles se abriguem em Tempestuosa e assim que conseguirem, fujam para o outro lado da Contenção. Alex, cuide deles por mim."

Todos ficamos em silêncio. Eu olhava para as letras no papel que tremia em minhas mãos. Elas se misturavam diante dos meus olhos. Era bom saber que ele estava vivo. Um alívio. Mas me preocupava pensar que a propriedade de meu tio poderia ser tomada.

- Como conseguiu isso? - Eirie a interrogou, ríspido.

- E isso importa? Ela não foi interceptada e isso já basta. E... - sua voz soou mais afável quando tocou meu ombro - sinto muito por se sentir coagida. Não vamos deixar que se repita.

Alexandra deu uma piscadela para mim. O momento durou bem pouco e outra vez, lá estava o seu humor costumeiro de outrora.

- Bom, agora temos que sair daqui, pegar o poço de reclamações mirim e arrumar um lugar pra ficar.

Eirie segurou meu pulso antes que eu a acompanhasse. Puxei de volta para perto do meu corpo.

- Lizlee, me escute. Se ficarem os rebeldes os usarão. Vão negociar vocês por um novo acordo de paz ou ... ou pela rendição das Regências.

A feiticeira me puxou para longe dele.

- Não o escute. Está desesperado pra manter a continuidade da Dinastia Zvatrze no poder.

Tocando nele, fez sua voz desaparecer. Eirie levou as mãos ao pescoço e levantou, irritado. No entanto, ela ergueu sua mão e a fechou, apertando com mais força. À medida que o fazia, Eirie arranhava a pele de seu próprio pescoço provocando marcas terríveis. Seus olhos arregalados, as pupilas dilatadas, ele parecia estar desvanecendo. Apoiando-se sobre a cama para não cair ao chão. A cena era angustiante. Eu não entendia o que estava acontecendo mas tinha que impedir.

- Pare! Alexandra pare!

Meus gritos não foram suficientes. Ela estava determinada. Puxei o cobertor sobre a cama, juntei as pontas e o estiquei, segurando-o como uma mordaça gigante e envolvi todo seu rosto com ele, puxando-a para trás. Nós duas fomos ao chão. Aproveitei o tempo em que demorava para se desfazer do cobertor e subi em cima dela, segurando seus braços pouco acima da altura de sua cabeça, pelos pulsos e prendendo-a entre as pernas.

Eirie cambaleou até a saída e segurando-se na maçaneta, gritou: - Enfermeiros! Tragam um sedativo!

Por sorte - ou talvez não - havia alguém chegando bem na hora e agilizou uma equipe que prontamente conseguiu estabilizá-la. Mas antes de apagar completamente, ela cravou as unhas em meu antebraço e com os olhos e o entorno dele completamente pretos, disse:

- É assim que você quer viver? Sendo tratada como uma mercadoria?

- Eu quero viver uma vida normal. Em um mundo melhor do que este.

Os enfermeiros a levaram dali bem no momento em que o sedativo fazia efeito. Um homem esmirrado, encurvado e amarelado, se deteve por um momento antes de finalmente nos avisar:

- O senhor e a senhorita precisam vir comigo. Agora! O rapaz se sente capaz de me acompanhar até outra sala?

Eirie acenou um "sim" e o homem se recolheu tal como entrou, em silêncio. Mal ouvimos o bater da porta, o garoto já estava puxando para fora de sua veia a agulha que se ligava ao cano, que por sua vez, introduzia o soro.

- O Otávio?

- Vamos encontrá-lo. Agora, não acha melhor ganharmos tempo?

- Não! - Ele respondeu, prontamente.- Já estou suficientemente hidratado, sobrevivo ao interrogatório.

Dizendo isso o Guer-Matriz saiu e encontrou o mesmo homem de minutos atrás, no corredor, à sua espera. Observei o chão onde o envelope da carta de Philip tinha virado cinzas. Corri a acompanhar os dois para a sala de interrogatório.

Me deixava curiosa o fato de todos saberem para onde deveriam ir, mesmo que os corredores fossem, enlouquecedora e igualmente, acinzentados e em alguns pontos a iluminação fosse precária, com aparecimento de estruturas improvisadas indicando que ainda não estava preparado para receber refugiados quando ocorreu o ataque. Odeio o monocromático.

Fomos conduzidos pelo funcionário, atravessando um pavilhão que - felizmente - já ia se diferenciando da ala hospitalar, e ia ganhando novas características. Passamos pelo refeitório e, indo para uma nova área - fiquei surpresa ao ver a placa indicando perímetro escolar - e só então, o funcionário nos informou:

- Não pensaram que nossas crianças cresceriam sem alimento para o intelecto, não é? - Ele sorriu, pela primeira vez. Seus olhos brilhavam de orgulho. - Trabalhamos ao máximo para proteger nossas crianças das alienações. Não precisamos que nosso povo se preocupe se nós podemos protegê-los.

- Todos se alienam sobre pelo menos um aspecto da vida. Ou algo assim.

Encarei Eirie, interrogativa. O homem também havia ficado confuso, mas depois de formular a próxima frase, prosseguiu.

- Entrem!

Paramos e fomos liberados pelos guardas na guarita. Eirie, desconfiado, demorou a reagir àquela ordem. Vendo isso o homem abriu o portão pesado, empurrando para um lado e me deu passagem, agradeci por sua gentileza. Peguei a mão de Eirie, que não relutou ao solavanco que dei nele para que obedecesse. Rapidamente realizei uma busca pelo pátio e reconheci algumas crianças em meio aos alunos uniformizados, outras não pareciam ser daqui. Otávio me reconheceu ao longe e veio até nós, indignado.

- Onde vocês estavam? Vejam essas roupas, esse lugar e essas crianças... eu quero voltar para o...

Sobressaltei-me e puxei-o depressa, tampando sua boca, falando em voz alta.

- Não volte a repetir isso, escutou? Não há mais um lar para nós... naquele lugar.

- Lizlee está certa. Nossos pais estão mortos. Eu cuidarei de você, meu irmão. Entendido?

Ele nos encarou sem entender nada. Eirie o puxou para um abraço muito apertado. Eu sorri.

- O amor entre irmãos é muito lindo.

O funcionário concordou com a cabeça.

- Vocês são todos irmãos?

- Sim. - Eirie e eu respondemos em consonância.

- Não. - Otávio contradisse.

- Eu sou adotada! - Fiz minha voz sobressair. Até outros ao redor devem ter escutado. - Sabe, ele nunca aceitou muito bem. Mas nós somos irmãos, sim.

Depois disso, o funcionário nos avisou que esperaria por 5 minutos para que pudéssemos nos despedir e se afastou rapidamente, como se fugisse. De repente, ouvimos alguns gritos e assimilei de onde vinham. As gêmeas Gisele e Griella, estavam atravessando o pátio. Elas usavam perucas em tons diferentes de castanho e o uniforme escolar - um macacão azul marinho, parecido com o que vimos Honn usando, exceto pela braçadeira vermelha em uma das mangas. Dei outra olhada e todos os outros tinham essa braçadeira.

- Lizinha! - As duas cumprimentaram-me em sincronia, muito animadas. Forcei um sorriso.

- É muito bom vê-la novamente. - Griella disse.

- Tivemos muito medo de que não voltassemos a vê-la ... sobretudo, depois do ataque.

Gisele exclamou e em seu olhar pesou uma sombra. Essa sombra logo se dissipou quando perceberam Eirie logo ali e começaram a consertar as perucas e suas roupas.

- Ah, olá. Eu sou Gisele. - E estendeu a mão para ele.

- Não dê atenção à minha irmã. - A outra se intrometeu, empurrando a primeira. - Eu sou Griella.

- Sinto muito por este terrível acontecimento.

Notei que não conseguiria disputar a atenção com isso e dei um cutucão em Eirie.

- Ah... eu sou Eirie. - Ele apertou as mãos das duas. - Mas... o Comando já tem alguma resposta sobre isso?

- Sobre isso o que? - suspiraram juntas, em uníssono e eu lamentei não ter encontrado outra pessoa antes das duas.

- Sobre o ataque.

- Ah... não sabemos. - Responderam, também juntas.

- Gisele e eu sabemos apenas o necessário para nossa divisão. Ou seria subdivisão?

Elas se entreolharam, confusas. O mesmo ocorreu entre mim e Eirie, que agora tinha uma terrível expressão indefinida - o que era, por vezes, pior do que quando se expressava abertamente.

- Espera, o que é isso? Indaguei.

- É um sistema de organização. - Gisele disse. - A nossa é a divisão comum, pois somos apenas civis. Existem ainda a divisão média, daqueles que trabalham para o comando e para o funcionamento de todo esse lugar. E por último, a divisão superior, composta pelos altos membros do comando e envolvidos nos assuntos diretos deles.

- Dentro de cada divisão, existem subdivisões. - Completou Griella. - Nos situamos na subdivisão estudantil.

As duas mostraram, orgulhosas, suas carteiras com o selo e alguns carimbos. Suas fotos estavam lá também.

- Eles são rigorosos. - Griella sussurrou, se aproximando mais de mim e as duas riram.

- Então... nos dêem licença, por favor.

Eirie fez um sinal, nos afastamos das garotas.

- Precisamos conseguir essas carteiras.

Peguei no braço dele enquanto ainda falava, já se virando.

- Você viu a braçadeira que Alexandra usava?

- Antes ou depois dela tentar me asfixiar com magia?

- Era cinza.

Ele parou e ficou pensativo. Otávio nos chamou a atenção para seu braço e para as crianças no pátio.

- E ela não é a única.

Realmente haviam várias outras com a braçadeira cinza ali. O funcionário já estava voltando para nos levar quando Eirie segurou em seus braços e o fez tremer.

- Não te disseram o que significa?

- Não. Só disseram que logo eu faria um teste.

Disfarçadamente, o Guer-Matriz passou Otávio para trás dele.

- Eu vou perguntar só uma vez. Para onde estamos indo?

- Para registrá-los em nosso sistema. O que pensaram que fosse? - O homem se manteve calmo.

Eirie me consultou com apenas um olhar e eu dei um sim ao seu questionamento.

- Podemos ir?

[...]

Na recepção do departamento de assistência, enquanto esperávamos resposta do porquê estávamos ali, conseguimos entrar com um pedido para obter as carteiras em cinco dias úteis - mas como era sábado e já estavam para fechar, deveríamos esperar até a outra semana. O homem montava guarda em pé, com as mãos para a frente, encostado na parede ao lado dos nossos assentos. Eu, que observava tudo com minha visão periférica, não acreditei quando avistei Alexandra dobrando o corredor, acompanhada de alguns guardas. Lancei-me até ela e estaquei em sua frente, erguendo a cabeça.

- O que faz aqui? Você deveria estar sedada.

- E você deveria começar a me tratar com mais respeito.

Quando ela colocou o dedo em mim e me afastou, meu sangue ferveu. Teria esfregado a cara dela na parede senão fosse Eirie me impedir.

- Olha o tanto de pessoas a nossa volta. Se controla.

O garoto virou meu rosto para ele, obrigando-me a um desvio da atenção que eu destinava à nossa traidora.

- Muito obrigada por trazê-los até aqui, sr. Secretário. Mas irei assumir a custódia desses dois, de agora, - lançou um olhar frio sobre Eirie - em diante - e o estendeu a mim.

Os guardas nos circularam, dificultando um movimento de fuga ou de ataque à Alexandra. O outro cômodo para onde ela nos conduziu, era calmo, claro, amplo e antecedia nossa passagem para dois elevadores. Os guardas foram dispensados e apenas ela ficou. Sua antiga braçadeira fora substituída por outra de cor verde.

- Como você foi capaz de nos trair dessa maneira?

Ela, calmamente se dirigiu a porta e a trancou, dando volta na chave.

- Eu não os traí. Era o meu teste e eu precisava fazer aquelas coisas para provar que eles poderiam confiar em mim. Sou uma espiã, esqueceram.

- Você não me asfixiou de mentira. - O Guer-Matriz rebateu, relembrando o que acontecera há muito pouco.

- Perdão. Eu perdi o controle. - Lamentou.

- Reparei em seus olhos. Não parecia você.

Após um breve silêncio que todos nós sentimos um clima esquisito. Alexandra tomou a palavra.

- Eles me deram um soro e eu me senti muito mal inicialmente, mas só depois lembrei ... por que já tinha lido sobre ele. O soro contém o mesmo princípio ativo da Flecha Dourada, mas por ser um derivado, não tem força suficiente para levar à morte. Em pessoas normais atua como um anestésico. Para nós, ele deturba os sentidos e em alguns casos provoca distorções, alucinações e perturbação da Matriz. Além de uma dor excruciante, como...

Ela estalou os dedos em busca do termo certo. Eu o dei a ela.

- Como se os seus nervos estivessem sendo arrancados do seu corpo. - Os dois me encaravam, esperando. É o que estava acontecendo com a Robertta quando chegamos.

Se meu raciocínio estivesse correto e nós três estivéssemos sintonizados naquele momento, o espanto que eu via no rosto deles era o mesmo que eles viam no meu. O espanto da possibilidade de o próprio pai de Robertta tivesse armado o envenenamento da filha, ou na melhor das hipóteses, que alguém de dentro do Comando deu a ordem.

- Com que tipo de pessoa estamos lidando aqui?

A questão ecoou e ficou suspensa, enquanto nenhum de nós se atreveu a tentar responder.

Um sinal sonoro soou. Os elevadores se abriram praticamente no mesmo segundo. Célia, mãe de Robertta, estava em um deles e Sérgio, no outro. Ambos estenderam uma mão para fora. Eu permanecia imóvel. Tinha dificuldade de olhar para aquele homem. Mas quase me vi triunfar por um segundo, vendo o semblante do líder rebelde se fechando em descontentamento. Pelo meu lado direito senti o deslocamento de Eirie e o breve instante em que minha mão esteve entrelaçada à dele. Não tive muito tempo de reação. Quando vi, ele já estava indo em direção ao elevador com Sérgio à sua espera.

Olhei para trás, Alexandra conservava-se firme na encenação. Olhei para um elevador, onde Célia sorria ternamente. Olhei para o outro, a tempo de vê-lo se fechando com Eirie lá dentro. Dei um passo até lá e parei.

Não era hora de deixar meus sentimentos tomarem conta de mim. Havia um trabalho a ser feito. Caminhei até ela e segurei em sua mão estendida a me receber.

Descendo.

[...]

- Acordem, moças! Está na hora de acordar.

Escutei uma voz, distante. E em seguida estava sendo chacoalhada em minha cama. Minha cabeça dando pontadas de dor.

- Levantem-se. Todas vocês!

- Não, Elfriede. Deixe esta moça descansar.

Virei sobre o colchão e vi Honn, se sentando na beira da minha cama.

- Descanse bem. - Ela fez carinho em meu cabelo. - Você estava certa. Se tivesse desistido, talvez Betta não estivesse aqui agora. Obrigada.

E depois de beijar o topo da minha cabeça, ela se foi. Voltei a dormir, apesar dos gritos de "Acordem!" vindos de Elfriede e pelo menos mais três pessoas diferentes, e só acordei quando dera horário do almoço.

O tic tac do relógio era a única coisa que conseguia escutar. Estava sozinha no galpão. Levantei, olhei o macacão deixado - provavelmente por Honn - em minha cama e me aprontei para a refeição. Vesti a roupa, mas deixei a braçadeira. Ignorei a cor amarela. Saí. As luzes ainda piscavam e após um período de estabilidade, tornavam a piscar. A instalação, como um todo, estava puxando muito energia, mas, energia de onde? Eu tomava nota desses detalhes, enquanto passeava por outra área, até alcançar uma parte onde havia um longo túnel. Era afastado do bloco de três andares que formava nosso alojamento. Teria ido até lá se não fosse um guarda ter se aproximado e me avisado do "perigo".

Mais tarde, com uns flashbacks do dia anterior voltando à memória, decidi ir visitar Robertta. Saber o preço que a causa havia cobrado. Encontrei Élan pelo caminho. Fomos conversando sobre sua irmã até a ala hospitalar, onde nos separamos e lá, ele me deixou só com a garota. Pensei ter chegado em má hora ao vê-la dormindo, mas antes que eu pudesse dizer qualquer coisa ou voltar, ela exclamou: - Espero que não estejam se divertindo muito sem mim.

Pisquei algumas vezes e coloquei as mãos nos bolsos.

- Pelo menos eu, não estou me divertindo.

Ela sorriu e utilizou os braços para se equilibrar, sentando na beira da cama e sinalizando para que eu fosse até lá.

- Tenho motivos patéticos e rasos para odiar você.

Robertta exclamou após um breve instante de quietude. Franzi o cenho e a encarei.

- Nos últimos dezessete anos venho tendo pesadelos recorrentes. É mais uma espécie de visões. E em todas elas me vejo perdendo minha família, casa, amigos e você, sempre é o motivo. Nunca acreditei nelas até que você apareceu e então o meu medo se tornou real. Sabe, ganhou forma.

Ao escutar tudo isso, me coloquei de frente para ela. Queria compreender como ela teve visões comigo antes de ao menos saber da minha existência.

- Não é uma justificativa pra eu ter te tratado mal, só achei necessário explicar isso. Mas é claro que eu acho isso impossível, por que não faz sentido...

- Robertta, nós temos "superpoderes". Tudo faz sentido.

- É, você está certa. E também, eu sempre quis ter superpoderes e voar soltando raios coloridos tipo as meninas superpoderosas.

Eu não fazia ideia do que ela estava falando, no entanto, não me parecia ser ironia. Em seguida, retomou o tom sério.

- Não quero que fiquemos em lados opostos e eu tenha que te reduzir a pó no campo de batalha.

- Isso não seria bom para nenhum de nós.

Honn adentrou o quarto com um belo buquê de flores a tiracolo.

- Ai não. Flores?

- Parece que você tem um admirador secreto. - Impliquei com a garota, que fazia cara de nojo e afastava o presente.

- Como deixaram isso entrar aqui?

- Elas passaram pela inspeção e dizem que melhora a energia do ambiente.

Robertta a intimidou com um olhar. Honn pegou o buquê de volta.

- Me atualize da nossa situação enquanto eu vomito.

- Tudo bem, nada de flores.

Jogou o buquê na lixeira e retornou, puxando a caneta do bolso. Honn tomou sua prancheta em mãos e bateu o objeto na superfície dela, pensativa.

- Acho que você não vai gostar de saber que o Comando não planeja responder ao ataque, sob o pretexto de que "prioriza a acomodação e recuperação dos sobreviventes"... eu diria que estão apenas ganhando tempo para conseguir apoio... firmar aliança com os outros movimentos rebeldes, essas coisas. Por enquanto, ficaremos aqui.

"Aliança"? "Outros movimentos rebeldes"?

- E o meu pai concordou com isso? - Robertta estranhou, utilizando um tom irônico e debochado. - E o sistema de divisões e subdivisões?

- O retorno foi positivo. Além de ter sido útil para a organização, está sendo bem aceita pelas pessoas e favorece outros aspectos como a identificação, a prestação de serviços... - a garota passou várias páginas na prancheta, antes de morder os lábios - e, seu pai propôs uma nova categoria de divisão para os que chegarem das outras zonas. Estão testando-os. Com os recentes ataques, eles finalmente querem lutar conosco.

Os olhos da garota brilharam ao ouvir isso. Como ela conseguia ficar feliz em saber que pessoas estavam dispostas a iniciar uma guerra?

- E os bebês? - Questionei de repente.

- Ah... - Honn, demorou algum tempo para responder. Naquela pergunta, proferida sem pensar, certamente havia acabado de magoá-la e feito-na lembrar o aborto que sofreu. Logo me arrependi de tê-la feito. Era tarde. - Tivemos baixas...

- Não os trate como soldados. São crianças.

- Me desculpe, Robertta. É ... nós perdemos alguns. Como nas outras gestações e nascimentos que presenciamos antes, eles não resistem. A doutora Charper disse que os experimentos a que as mulheres foram submetidas durante a última grande guerra, afetam o desenvolvimento dos fetos ainda hoje.

Três batidas na porta depois e Élan irrompeu pelo quarto adentro, bastante afoito, dizendo:

- Lizlee, venha comigo.

As duas garotas me olharam sem entender e muito menos eu. O que estava acontecendo agora?




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