Capítulo XXX -
Ciente de que poderia ter novamente ido parar no lugar errado, escondi o colar nos bolsos - protegendo-o de possíveis novas situações desagradáveis. Respirei profundamente e expirei, devagar. Era a hora da verdade. Mas antes que eu viesse a sabê-la e sem que precisasse fazer grande esforço, senti um aroma, deliciosamente diferente, inundar minhas narinas. Comida. Impulsionada pelo instinto, abri os olhos. Todos no recinto estavam parados olhando para mim. Percebi pelo cheiro, pelos utensílios e pessoas com aventais, que eu estava em uma cozinha. Pisquei algumas vezes, pensando no que fazer e com toda a minha desenvoltura em sair de situações embaraçosas, apenas os cumprimentei com um sorriso e um "bom dia", para depois sair correndo pela primeira porta que encontrasse. Mas é claro, não sem antes trombar em um armário e derrubar algumas panelas dependuras corretamente em uma sequência, da maior para a menor, em seus devidos lugares. Senti que minhas bochechas foram enrubescendo de vergonha. Tentei pedir desculpas e todavia, foi em vão. Retirei-me o mais depressa que pude.
Deixando aquela enorme cozinha cheia de gente e tomando o corredor à esquerda, minha visão periférica pareceu reconhecer uma pessoa. Parei para observar e constatei que não estava enganada. A figura conhecida fez um sorriso brotar em meus lábios. Era Maya. Ela também me viu ao longe e acenou. Tentei caminhar até ela para abraçá-la, quando senti uma mão fria me segurar pelos ombros e jogar um tecido escuro sobre a minha cabeça. Relutei e empurrei, quem quer que fosse, contra a parede. Retirei o tecido e o joguei ao chão, meus braços já escorriam feixes de água, preparando-se para atacar ao meu comando. Saltei para trás em posição e só então, respirei aliviada ao notar que era Philip.
- Meu Deus, você queria me matar de susto?
- Pelas decisões que você toma, não é de susto que vai morrer.
Ele retrucou num tom de sermão. Revirei os olhos e cruzei os braços em seguida. E jogando o pano novamente sobre a minha cabeça, ele indagou.
- O que você veio fazer aqui?
- Preciso encontrar Eirie. E parece que vim ao lugar certo. - Inclinei um pouco a cabeça e observei a movimentação.
- Tem uma festa e não me convidaram?
Completei com ironia e certa arrogância.
- Você está em Monigram! O motivo mais amigável para o qual o Regente aceitaria sua presença aqui no Palácio, seria pra te servirem num banquete como o prato principal.
Fingi que não me importei com a afirmação, mas um calafrio percorreu minha espinha e tomou outras direções, ganhando todo meu corpo. Seria medo? Se fosse, eu não tinha tempo pra descobrir. Phil não olhou para mim desde que o disse e continuou andando como se eu nem estivesse ali, cumprimentando diversas pessoas sem perder a postura ereta. Eu engolia aquele sentimento ruim que perpassava minha pele e revirava meu estômago, enquanto me encolhia debaixo do pano. O simples pensamento de ser descoberta já era capaz de fazer com que minhas pernas caminhassem no automático, empurrando-me para frente a qualquer custo. Elas tremiam só de imaginar dar de cara com o regente pelos corredores.
Phil conduziu-me até uma sala vazia com, belos e bem polidos, móveis de madeira; as estantes estavam repletas de livros e objetos com formas abstratas - que talvez tivessem algum significado para seus donos; as vidraças deixavam entrar os últimos raios do sol poente que ainda aqueciam a sala e possibilitava-lhe que ostentasse seu luxo e beleza. O garoto trancou a porta logo atrás de si e me puxou para seus braços, envolvendo-me com seu corpo como se quisesse me proteger. Surpresa com aquele repentino gesto, - mas não tanto, já que ele vinha de Phil - encostei minha cabeça em seu peito e correspondi ao ato.
- Eu senti muito a sua falta! - Sua voz saiu afável, seguida por um beijo que ele depositou entre aquele tecido surrado que me cobria a cabeça e a pele desnuda de minha testa.
- O que aconteceu? Você está tão... grande. - Segurei nas mangas de seu uniforme bem engomado e apertei seus braços por baixo do tecido.
- E você está mais forte do que eu me lembrava. Onde aprendeu aquilo que fez lá fora?
Ele tinha aquele sorriso brincalhão nos lábios.
- Eirie me ensinou algumas coisinhas.
- Tomara que ele não tenha pegado muito pesado com você.
Ele me olhou, como se analisasse meu corpo em busca de alguma coisa.
- Ele podia ter pegado, eu aguentava. Mas não pegou. - Lamentei.
- Eu sei que aguentava. Mas não era bem disso que eu estava falando... - Phil desviou o olhar pro outro lado e eu percebi que tinha alguma coisa errada.
- O que foi?
- É que você não deveria estar aqui. - Ele suspirou e começou a andar pela sala.
- Uma pessoa está correndo risco de vida e eu sei que Eirie pode ajudar.
O encarei com a expressão apreensiva. Eu estava longe demais de Robertta e não poderia medir o quão doente o veneno a deixara. Phil parecia preocupado agora.
- Você é mais corajosa do que eu imaginava. Voltar aqui depois de tudo o que aconteceu...
Antes de sair da Zona 6, tudo o que eu queria era poder salvar a vida de Robertta, mas agora... agora as lembranças de ter sido encarcerada bem aqui, neste Palácio, voltaram em uma torrente. Afastei esse pensamento, pelo menos por enquanto eu já tinha com o que me preocupar.
- Bem, o problema é que eu não posso te levar até ele. O Regente reduziu as visitas somente aos membros do Conselho e pessoas autorizadas, ou seja, eu. De resto ele ordenou isolamento.
- Isolamento? Mas e o Regente? Ele não o visita?
Questionei. Deveria ser uma chatice ficar isolado. Fiquei imaginando Eirie andando de um lado para o outro, ansioso como sempre e dando um jeito de pular os muros. O garoto simplesmente se cansava rapidamente de praticamente tudo.
- Ele não tem tempo pra visitas que não sejam diplomáticas. Então, quase nunca acontece.
- Estranho, não é? Apesar desse lugar ser enorme... quer dizer, eles ainda moram na mesma casa.
Phil apenas confirmou com a cabeça. Creio que nem prestou muita atenção ao que eu disse e em seguida, abriu um sorriso perspicaz como que se lembrasse de algo, sinalizando com a mão direita. Fui até ele, que já se ocupava de abrir uma passagem - que com certeza não passava pelo corredor pelo qual viemos - por onde tivemos que nos embrenhar antes de desembocar em outro corredor. Era um lugar empoeirado e escuro o suficiente para que eu precisasse iluminar com minhas chamas pra enxergar um palmo à frente.
Caminhamos por alguns minutos até que o garoto empurrasse outra porta e saíssemos em uma espécie de jardim de inverno, que estaria vazio se não fosse por nós. Lá, Phil parou de caminhar e virou-se para mim, instruindo-me cuidadosamente sobre as medidas de preucação que deveria tomar de acordo com a responsabilidade que parecia pesar em seu ombro. Deu-me o tecido escuro para cobrir minha identidade e eu o coloquei bem depressa. Sinceramente, não soube distinguir se se importava mais comigo, com Eirie ou consigo mesmo. Entretanto, o jovem mostrou como conhecia de cor a horário de maior movimentação de todas as alas desse lugar - se eu fosse alguém de caráter duvidável, poderia facilmente ter me aproveitado dessas informações. Ele também demonstrou ter conhecimento íntimo dos esconderijos espalhados pelo Palácio, ao indicar-me algumas rotas de fuga; o que me fez pensar sobre em que circunstâncias ele tomou ciência desses lugares.
Após mais alguns minutos andando pelo Palácio, chegamos a um último corredor. Este era muito mais reservado do que os outros e acho que sei por quê. Ao fim, havia uma porta guardada fortemente; ali deveriam ser os aposentos de Eirie ou os do filho do Regente. Ou do próprio Regente. Mas Phil não me levaria ao covil do tirano. Eu confiava nele. Observei, pela sua postura inquieta, que se tratava do primeiro.
- Onde vai com esta garota?
Um dos guardas perguntou, se dirigindo ao garoto com uniforme um pouco diferente daqueles dos demais guardas. Certamente esse detalhe se devia ao fato dele ser uma espécie de guarda-costas e não guarda comum.
- Não devo satisfações a alguém como você. - Cortou-o com ríspidez. - Além disso, não queremos deixar nosso senhor esperando.
Os demais guardas abriram passagem e começaram a debochar do colega logo que passamos por eles e entramos no quarto. Eirie estava em pé, parado de frente para uma enorme vidraça que tomava grande porção da parede oposta à porta e com as costas voltadas para nós. Não nos viu entrando e isso me deu alguns instantes para respirar fundo antes de falar. Eu estava nervosa, minhas mãos suavam frio. A porta estava trancada mas eu ainda temia que a qualquer momento os guardas viessem e me levassem dali.
- Eirie! Veja quem está aqui!
Phil anunciou e ele se virou devagar e desleixadamente, como se seu corpo pesasse mais para um lado do que para o outro. As roupas eram escuras e cobriam seus braços e pernas, mas não o rosto onde haviam marcas vermelho-arroxeadas, além das olheiras profundas abaixo de seus olhos. Não contive o espanto da primeira impressão... talvez tenha sido por isso que ele receou mostrar-se imediatamente. Não queria parecer fraco. No entanto, depois de perceber seu constrangimento, tentei dar um passo em sua direção para mostrar compaixão. Ele deve ter confundido com pena, pois saiu e se afastou. Um nó se formou em minha garganta e meus olhos continuaram presos naquela direção, onde antes estava o garoto machucado e agora só existia um vazio. Até Phil se colocar entre nós.
- As coisas se complicaram lá fora, enquanto esteve longe.
Quando ganhei coragem para ir atrás de Eirie, o garoto ao meu lado colocou o braço na minha frente e me impediu.
- Por favor, tenha cuidado!
Respondi com um aceno de cabeça e me dirigi para onde o outro tinha ido. O quarto era enorme e luxuoso, e estava até bem organizado pra ser de Eirie. Quando o encontrei, esperei que houvesse um jeito certo de fazer isso. Não havia. Mas nitidamente ele precisava de ajuda. Levei uma mão até seu ombro, mas hesitei recolhendo-a. Então de olhos fechados, sentindo a respiração falhar por curtos intervalos, voltei a estender a mão que logo alcançou uma superfície quente. Abri os olhos e notei que ele estava agora de frente para mim e que eu tocava seu rosto.
Seu rosto não era a única parte machucada em seu corpo.
- Eirie, eu sinto muito...
Seus olhos em zigue-zague, evitavam fixar-se nos meus. Afastou-se e foi para o longe de mim, sem dizer nada. Apenas dirigiu-me a palavra, quando ganhou distância.
- Não sei o que veio fazer aqui, mas aconselho a ir embora. Agora!
Retrucou. Vendo que a rejeição à ideia de me olhar não era apenas uma impressão, passei para o lado dele e o segurei pelo queixo, virando seu rosto para mim.
- Quem te fez isso?
- E isso importa?
Seu olhar ainda desviando do meu, sabendo que não conseguiria mentir. Provavelmente deve ter percebido que eu não cederia sem obter respostas e suspirou, desanimado.
- Na verdade eu não sei.
- Como assim "não sabe"?
Ele não fez questão de esconder o desdém. Mantive a postura interrogativa, travei minhas unhas em seu braço e puxei a manga da blusa de frio como quem diz "desembucha logo".
- Eu não lembro. Não lembro de nada entre ter encontrado o conselheiro Baldwin naquele laboratório e acordar aqui, neste quarto. Naquela cama.
Ele apontou para ela e eu acompanhei o movimento. Nessa hora, vi que Phil já não estava no cômodo e a porta estava trancada. Quando voltei meus olhos, ele estava mexendo em um armário.
- Quer dizer que de repente você apareceu todo machucado a uma longa distância do último lugar onde esteve e simplesmente não se lembra como chegou aqui?
Eirie trancou a porta do móvel, fechou os olhos e bufou, em seguida dando as costas pra mim, retornou ao banheiro.
- Isso é um interrogatório? Porque se for, eu quero o meu advogado.
Eirie estava usando uma tática amigável para dizer que a conversa havia tido um fim. Entendi que ele não queria falar sobre o que nem ele mesmo entendia e fui me sentar em sua cama. Confesso que nunca estive sentada em uma cama tão confortável e macia.
- Fique à vontade.
Ele me pegou distraída acariciando a superfície da cama, admirando o luxo daquele quarto que tinha porte pra ser uma suíte.
- Não, obrigada! Se eu ficar "à vontade" posso até esquecer o que vim fazer aqui.
- Mas e então, o que você queria me dizer?
Perguntou e foi se dirigindo ao banho, ligando o chuveiro.
- Mudou de ideia?
- Não. Mas se estou certo, você não vai embora mesmo.
Ouvi o barulho da água caindo, mas não vi como empecilho para que prosseguisse, já sabia que apesar da distância e do barulho da água, ele possuía uma audição apurada e era bem capaz de escutar tudo dali onde estava. Caso ele fingisse o contrário, eu poderia simplesmente desmenti-lo.
- Sabe o laboratório que encontramos? - Ele respondeu com um resmungo.
- De algum modo conseguiram replicar o vírus com sucesso e agora existem outros como nós. Melhor... outras. - O silêncio dele me incentivou a continuar.
- O problema é que, uma delas foi envenenada com flecha-dourada e eu não consegui expulsar o veneno. Agora a vida dela está em risco e você é o único que conseguiria...
- Matá-la? - Ouvi-o retrucar. - Porque eu me lembro de quase ter matado você da primeira vez que tentei.
Engoli em seco. Fiquei calada por um instante.
- Primeira vez?
- Não se faça de desentendida. Eu era o único guer-matriz até você aparecer. É claro que eu não poderia testar aquela técnica em mim mesmo.
Tudo bem afinal, apesar de tudo, eu estava viva. Dessa vez, seria mais fácil. Robertta sobreviveria... porque eu sobrevivi.
- Ahn...vocês não se conhecem. Talvez seja mais fácil a matriz dela não rejeitar a tentativa de conexão.
Me joguei na cama e olhei pro teto. Aquele colchão parecia ser uma nuvem se comparada aos outros em que dormi ultimamente. Soltei uma interjeição de deleite pelo quão deliciosa era a sensação. Mesmo assim, não me senti capaz de descansar e esquecer que haviam outras variáveis a considerar, como por exemplo, o fato de ser procurada pela Regência e estar invandindo uma propriedade dela ou o de estar procurando a ajuda de uma pessoa que já me fez prisioneira.
- Lamento, mas eu não posso sair daqui. Já você, deveria. - Dei um salto e me coloquei sentada na beira da cama. - E faça isso antes que descubram que entrou no meu quarto.
- Ora. Já foi difícil entrar aqui, agora sair sem ter o que vim buscar? Não. Aliás, tem um exército inteiro ali fora.
- Exatamente, um exército inteiro. Privilégio de ser alguém tão importante.
Cruzei as pernas e também os braços, aconchegando-me mais ainda em cima da cama. Suas tentativas de me afugentar não funcionariam.
- Porém, e se eu te contar que podemos sair daqui sem que ninguém perceba?
- Eu não acreditaria.
Dei de ombros e puxei o colar do bolso. Quando voltei minha atenção ao garoto, percebi que ele saía do banho enrolado em uma toalha e desviei o olhar.
- Pode se virar, por favor? - Conclui por conta própria, que o rapaz só estava sendo irônico. Mesmo assim, sua risada debochada acabou deixando isso bem claro. - É brincadeira. Pode olhar se quiser.
- Você é patético, sabia?
Mal havia terminado de completar a frase quando ouvimos batidas na porta. Nos entreolhamos, perdidos. A julgar pela voz masculina - que não era a de Phil - perguntando se poderia entrar, era um delator em potencial e eu não poderia ser vista aqui. Começamos a nos comunicar com os olhos e cabeça. Eirie fez um movimento indicando a cama e eu me escondi nas cobertas. Logo em seguida, ele se deitou também e nos tampou com pressa. O homem que o procurava, girou a maçaneta com cuidado e colocou, primeiramente, somente a cabeça para dentro dos aposentos e depois o resto do corpo.
- Senhor, desculpe a intromissão.
Eirie destampou-se até a altura do abdômen nu, só pra dar mais veracidade ao desastroso pretexto que daria a seguir.
- Não vê que estou ocupado?
- Eu percebi, senhor. Mas perdão, é só que...
Senti a mão de Eirie forçando a minha cabeça na direção do colchão, o que acabara prendendo minha respiração; dei um soco em sua coxa o repreendendo por isso.
- Ai! Calma aí, linda. Eu preciso disso.
Minhas bochechas coraram. Eu conhecia aquele tom malicioso em sua voz. Era a cereja do bolo. Denunciava que estava se aproveitando da situação e zombando daquele homem, ao mesmo tempo.
- Desculpe senhor. E ...divirtam-se!
- Vá e diga aos demais membros do Conselho que eu estou muitíssimo ocupado. E não voltem mais aqui!
Ele ordenou ao homem e que servisse para os demais. Ouvi a porta batendo e respirei aliviada. Eirie levantou a coberta e me encarou lá debaixo.
- Oi.
Ele disse. Revirei-me na cama chegando bem perto dele. Acariciei seus braços fortes até parar em sua nuca e colocando minhas mãos nela, simulando o movimento de um beijo, deixei que minhas mãos liberassem gelo sobre a extensão de sua pele.
- Nunca mais me use dessa forma e nesse contexto. Aliás, apenas... não me use!
- Qual forma e qual contexto? Será que não é a sua imaginação ou seus desejos reprimidos querendo imprimir conotação sexual numa situação tão inocente?
Não sei como ele ainda tinha a audácia de rebater. Apertei mais as minhas mãos em sua pele congelada. O verde dos seus olhos se intensificou e ele não reclamava de dor ou incômodo, parecia estar esperando eu demonstrar o quanto fiquei irritada com a situação ou do que era capaz. Eu pensava "não me teste, garoto", mas no fundo não pretendia machucá-lo mais. Segurei por mais algum tempo e o soltei.
- O que te faz pensar que eu quero você? - Escondi o rosto com as mãos, recuperando a paciência que ainda me restava e tendo como trilha sonora, o som de sua tosse.
- Eu não disse isso.
Ele ainda tossia mas fazia questão de me provocar. Conviver com Eirie era um verdadeiro teste à minha sanidade.
- Ele nem te viu, fica tranquila. - O garoto sentou-se na ponta da cama e acariciou as minhas costas.
- É eu sei, mas mesmo que tivesse visto. Me incomoda o fato de que neste momento ele pode estar espalhando para todo o Palácio, mesmo quando isso não é da conta de ninguém. É como se não tivéssemos vidas próprias e ser vigiado constantemente fosse algo normal.
Imediatamente, Phil entrou pela porta e lançou um olhar assustado para nós dois.
- O Palácio está sob código kha-25121. Liz, Eirie...
- Tire ela daqui!
Escutei Eirie dizer, mas me neguei a sair. Com suas mãos em minhas costas, o garoto praticamente me empurrou para Phil. Já era sufocante o suficiente ter de me esconder de todo mundo, onde quer que eu fosse. Eu estava farta de viver assim. Com muita pressa, ele se vestiu e pegou algumas armas brancas.
- Eirie, siga o protocolo. - Phil aconselhou.
- Alguém me explica o que significa o código kha-sei lá o que?
Toda aquela linguagem específica deles me deixava confusa, no entanto, era notável o clima de preocupação que se instalou ali.
- Significa que o Palácio está sendo atacado. Leve-a para um lugar seguro e nos encontramos depois.
Eles falavam como se eu nem estivesse mais ali. Phil seguiu as instruções e foi me conduzindo para a saída com todo o seu instinto protetor.
- Depois? Não podemos nos separar de novo. - Supliquei aos dois.
- Ela está certa. Eirie, vá com ela.
- Para onde? - Como ninguém me respondia, então quase gritei.
- Você precisa parar de fazer perguntas!
O tom que Eirie usava ia se alterando e aumentando de volume a cada palavra que pronunciava.
- Phil, veja do que se trata e assim que puder nos encontre na fortaleza, em Tempestuosa.
- Não, nós temos que ir para Arruinada. - Rebati.
- Arruinada é uma zona de conflito. Não está aberto a discussões!
O encarei, impaciente. Creio que ambos estivéssemos com os nervos à flor da pele. Fui caminhando de encontro ao garoto, apontando o dedo e jogando a verdade em sua cara.
- Nos últimos meses eu segui você por todo o lugar em que passamos. Agora, eu digo, que nós vamos para Arruinada e que salvaremos a vida de Robertta. E não está aberto a discussões!
Ao terminar, todos se calaram e permaneceram parados. Fui a primeira a falar que precisávamos ir embora e me dirigir a porta, ameaçando abri-la. Phil pediu que eu esperasse até que ele saísse, por segurança. Me afastei e dei passagem ao rapaz, que ao abrir a porta protegeu toda a abertura com seu escudo transparente de gelo, de forma que eu ainda poderia ver através dele. O fluxo de pessoas assustadas acabou prendendo a minha atenção, algo no comportamento humano genuíno ao se deparar com situações desse tipo, tinha sua beleza. Uma moça que corria sem prestar atenção no caminho, bateu de frente com o escudo e caiu no chão. Uma vez que nos viu, ela levou o dedo indicador aos lábios e fez "shiu", tomou a bolsa novamente e voltou a fugir. E ela não era a única. Algumas pessoas se aglomeravam, outras se dispersavam para outras alas chamando por nomes de conhecidos e haviam outras ainda que temiam igualmente - ou mais - por suas coisas, do que pelos seus. Digo isso pois aliando um bom foco de visão e análise minuciosa, qualquer pessoa seria capaz de notá-las carregando seus pertences valiosos. Lembrei de algumas das lições que aprendi com Eirie. Existem pessoas boas, que realmente se importam com as outras. Existem pessoas que fingem se importar, por interesses. E existem pessoas que simplesmente não são capazes de se importar. E quem somos nós entre estes? Mas afinal, se estávamos realmente sendo alvos de um ataque, a qualquer momento alguém poderia sacar uma arma e atirar em qualquer direção. Era preciso estar atenta aos mínimos movimentos. Os guardas, por sua vez, tentavam manter a ordem, agindo o mais naturalmente de acordo com o que foram treinados. No meio disso tudo, estávamos nós três. Todos tinham algo em comum: queriam salvar suas vidas. Por motivos próprios, mas todos queriam.
- Philip, o filho do Regente!
Eirie apontou em direção ao pátio, alertando ao nosso amigo que correu pelo corredor e apanhou um menininho, que se recusava a deixar aquele lugar. Os gritos e sons de passos apressados tornaram a ganhar força, mas dessa vez eram ritmados - provavelmente, ali vinha uma tropa. Alguém pedia socorro e gritava de dor, ao longe. Phil acabou tendo de trazer o filho do Regente à força e enrolando-o com a capa que tirei e lhe entreguei, seguimos Eirie pelas passagens. Os olhos do pequeno estavam arregalados, ele se encolhia no capuz mas não parava de andar; - como se já soubesse o que fazer - até ouvirmos um estrondo e ele se jogar no chão. O garoto tremia de medo e dizia que devia encontrar sua mãe. Me ajoelhei ao lado dele e coloquei as mãos em seu ombro, buscando tranquilidade ao transmitir as palavras.
- Como você se chama?
- Otávio. - Ele disse.
- Bem, Otávio. Não sabemos onde ela está. Mas eu prometo que a encontraremos assim que der. Tudo bem se vier com a gente por enquanto?
Ele respondeu emitindo um "sim" bem fraco e baixinho. Retirei o colar do bolso e o mostrei para os rapazes.
- Onde você encontrou esse colar belka?
- Depois eu explico. Venham comigo! Isso vai nos transportar para fora daqui.
Otávio se agarrou a mim, baixei meus olhos para ver seu rosto. Suas bochechas estavam enrubescidas, ele chorava silenciosamente. Sentimos um tremor sob nossos pés. Eirie pegou o filho do Regente no colo - era um garoto de aproximadamente onze anos, magro e pequeno para a idade, poderia ser carregado facilmente.
- Tentem não pensar muito.
Pedi a eles. Philip se afastou e eu o olhei uma última vez. Atrás dele acabara de chegar um destacamento de soldados. Um deles deu ordens para protegerem o filho do Regente.
- Vão!
Phil gritou e levantou uma fortaleza de gelo e água, os impedindo de passar. Soldados atiraram fogo contra ela que começara a derreter e evaporar com a frequência de disparos. Eirie se agachou e tocou no chão com as mãos espalmadas, fazendo com que tudo ao nosso redor tremesse e as paredes ganhassem rachaduras. Otávio pulou de seu colo e quis correr, mas Eirie o segurou.
- Use o colar, agora!
Estendi o colar para que ele também segurasse e pensei em onde queria estar, assim como Lumina disse. Senti uma brisa fria batendo em meu rosto e quando abri os olhos, havia neve por todo o lugar. Esses eram, sem dúvidas, os ventos frios da Regência da Água.
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