Capítulo XXVI -


— Pensei que tivesse exagerado na dose e te matado sem querer. Ainda bem que acordou, eu estava prestes a começar a orar para as Divindades te trazerem de volta.

— Será mesmo?

A voz da doutora que antes era um misto de desdém, descontração e seriedade em que eu só conseguia distinguir a nuance mais séria por previamente conhecer seu lado cético. Mesmo assim, havia um certo nervosismo transparecendo ali. Seria pela minha desconfiança de suas intenções ou por ter sido pega?

Meu estômago revirou e eu me lancei com velocidade para a beirada da cama, vomitando no chão. A minha cabeça também girava sem sair do lugar e latejava um pouco. O meu corpo estava mole, parecia até que estava doente. Porém e apesar do meu estado, eu queria saber que motivos esta mulher teria para me sedar, mas primeiro tinha que colocar ordem nos meus pensamentos. Haviam tantas perguntas sem resposta que eu nem sabia quais priorizar.

— Por que fez isso?

— Eu queria ajudar você. Apesar de que agora provavelmente não vá soar dessa forma.

— Como deveria soar? — Senti minhas bochechas esquentarem com a irritação. 

Fiz um movimento como se pretendesse me levantar e vi a mulher prontamente se dispor a afagar os travesseiros para que eu pudesse consertar a postura e ficar confortável. Aquele mínimo esforço me fez notar que os efeitos da sedação ainda não haviam passado totalmente. Era uma sensação estranha aquela que se abateu sobre mim embora também me parecesse, de alguma forma, bastante familiar.

— Lizlee... — A mulher se aproximou, desviando da poça de vômito que eu havia deixado ali. Fiz um sinal para que ela parasse onde estava.

— Eu tive um sonho estranho durante o tempo em que estive desacordada. Nesse sonho a minha mãe era uma feiticeira e a Ordem de Lanóvia veio até nossa casa me levar à força. Meus pais e a Moggie tentaram impedir e foram mortos. Quando vi tudo isso acontecer, uma luz muito forte foi liberada de dentro de mim e vaporizou tudo ao redor.

Quando resolvi que aquela posição me dava mais dor nas costas do que me deixava confortável e que além disso o gosto de vômito na minha boca estava terrível e nojento, me sentei na beirada da cama deixando os meus pés tocarem no chão frio, me obrigando a encolhê-los de volta. Desviei da poça de vômito, fazendo careta ao passar por ela.

— Receio que exista alguma verdade nesse sonho.

Parei imediatamente os meus passos e ergui a cabeça mirando o meu próprio reflexo no espelho que estava posicionado bem à minha frente.

— A sua mãe era a segunda filha de Aubrey Hollunya. Mas por ser a mais velha entre as filhas, era a sucessora de sua Casa. Mas acabou sendo banida por desafiar o Conselho e infringir as leis de Lanóvia ao se relacionar com o seu pai, um Não-Guer. Por isso, sua descendência foi amaldiçoada.

Estava pálida e fiquei ainda mais quando escutei o que aquela mulher disse. Eu estava me lembrando de tudo. Não havia sido um sonho, ela mesma havia me contado aquilo antes de se aproximar de mim com uma facilidade impressionante e me apagar. Eu sequer reagi. Talvez eu estivesse certa em desconfiar da tal esterilização. Teria ela colocado alguma droga naquele tubo?

— Achei que fosse um efeito dessa coisa que você me injetou. Aliás, o que deu em você?

Interroguei seca e ríspida, voltando à realidade, afinal de contas, quem ela achava que era? Observei, pelo reflexo do espelho, que seus ombros caíram. Deveria ter percebido o erro que cometeu e que agora eu dificilmente voltaria a acreditar nela.

— Desde o início dos experimentos eu pude notar duas coisas. A primeira era que as crianças passavam a demonstrar mudanças bruscas no comportamento, incluindo psicose, agressividade, automutilação, entre outros. No fim, as que não conseguiam passar dessa fase, acabavam morrendo ou se matando. A segunda, era que quando os experimentos funcionaram em Sthan, Robertta e Honn, havia um padrão: sempre que expostos a situações de pressão e estresse, eles acabavam "apagando". Sério, eles simplesmente desmaiavam. A conclusão a que cheguei é que essa é uma resposta do sistema de defesa da Matriz Elemental para protegê-la do risco externo.

— E por isso você resolveu que tinha o direito de me dar sedativo?

Cerrei os punhos contra o material metálico da pia do banheiro para não socar o espelho, Charper parecia estar realmente muito engajada em fingir que não me escutava. Um calor subiu por meu corpo e eu fechei os olhos, respirando fundo diversas vezes e tentando me controlar. Quando reabri os olhos, a minha imagem refletida no espelho então começou a se mover abrindo um sorriso para mim. Balancei a cabeça com pressa e aquela alucinação desapareceu.

— ... Mas as pesquisas que realizamos apontaram que um Guer-Matriz é altamente suscetível a comportamentos hostis quando submetidos à situações ameaçadoras. De certa forma era o que o Projeto Regenciadores pretendia, mas só até perceberem que também se tornaram alvos para os Guer-Matriz e precisariam desenvolver algum mecanismo para poder controlar e direcionar toda essa hostilidade apenas contra quem quisessem.

Em algum momento de seu discurso, senti suas mãos macias pousando em meu ombro e me conduzindo a uma cadeira, forçando meus ombros para baixo e me obrigando a sentar. Depois, ela pegou um objeto pequeno, arredondado e cilíndrico e segurou meu braço. Finalmente tive tempo de reação e me afastei dela. Um sorriso torto surgiu em seu rosto. Eu estava duvidando de sua sanidade. 

— Lizlee, será que você ainda não entendeu que eu apenas fiz aquilo para te poupar? Parte da sua Matriz se deteriora toda a vez que passa por esse processo e seu núcleo fica mais próximo de colapsar.

A doutora Charper encaixou o objeto e ele praticamente engoliu meu dedo indicador e coletou uma amostra de sangue. Assim tendo feito, ela retomou a explicação.

— Eu entendo que os assuntos que envolvem os seus pais podem ser um pouco sensíveis para você. Não quis te assustar ou sobrecarregar com informações, então induzi a sedação que é bem menos danosa.

Ficamos em silêncio por um período bem mais longo do que o confortável. O vento frio do inverno invadia o quarto e balançava as cortinas que dançavam como ninfas pelo ar, fazendo com que o lugar parecesse tranquilo e confortável – quase como se não estivéssemos mais no complexo do Projeto Regenciadores. Naquele momento só consegui pensar que eu não queria que minha Matriz colapsasse, afinal de contas, já tinha uma noção do que poderia acontecer e toda a história de provocar o fim dos aureos tempos da Era Guer.

— Digamos que eu resolvesse acreditar no que diz, precisa admitir que seu comportamento foi estranho e inadequado.

— Sim, claro que foi. Eu admito. Mas qual seria a alternativa? Te desacordar com socos?

Bem, realmente, pensando por esse lado...

Ela me olhava com olhos tão caridosos e ternos, praticamente implorando para que eu tivesse entendido seu lado da história. De certa forma eu entendia, mas ainda sim iria ficar bem mais alerta na presença dela. Mais uma vez o silêncio pesou. Charper ainda me encarava e ainda era muito estranho encarar de volta a mulher misteriosa que tanto aparecia nos meus sonhos. Mas eu estava acordada, certo?

— Tem comida aqui?

Ela me encarou, mas não parecia nem um pouco surpresa com a pergunta e pelo menos isso serviu para fazê-la se mover para um pouco longe de mim. Ela andou, parou, estalou os dedos e se voltou para o outro lado onde havia um armário, pegou várias coisas no armário e acabou por derrubar tudo. Fui obrigada a salvá-la de si mesma, antes mesmo que não sobrasse nada inteiro para sanar minha fome.

— Sempre que retornar de um desligamento, sua Matriz precisa ser reabastecida. Ela já consome a maior parte da energia do seu organismo normalmente, mas pode chegar a consumir o dobro nesses casos.

Enchi minhas mãos e a boca com tudo que consegui. É claro que tentei continuar ouvindo o que ela dizia, mas estava faminta e não queria nada além de discutir comigo mesma o que deveria comer primeiro. Ela certamente me observava ser o mais deselegante possível e eu não me importava nem um pouco.

— Gostaria de escutar os métodos, experimentos e os resultados da nossa pesquisa?

A doutora Charper interrogou de uma maneira tão entusiasmada, que eu tive que cortá-la antes que realmente começasse a explanar sobre o assunto. Ela parecia mesmo uma mulher solitária que não tinha muito com quem conversar. Sua alegria se desmanchou um pouco quando me olhou e não consegui esconder minha expressão.

— Espera, me ocorreu uma questão: não são os Regentes e sim os Rebeldes que estão criando mais Guers-Matriz para equilibrar o conflito? — Perguntei finalmente após me sentir satisfeita.

— Sim, mas não só eles. Os Movimentos Anti-Regências tem apoio de gente poderosa e influente.

Adelia levantou apressadamente e foi colocando o jaleco como se estivesse se preparando para deixar os aposentos.

— Mas eles colocaram os três em risco enviando eles a campo.

Os poderosos chefões queriam testar do que suas criações eram capazes...

Quando ela foi até a porta, levantei com pressa e questionei.

— Onde você vai?

— Está quase na hora. Você não desistiu, não é?

Ela apontou o relógio que ficava na parede acima da porta de saída. Faltavam dezenove minutos para a hora marcada até o início da execução do nosso plano. Era o tempo que eu ainda tinha para me preparar. Sem tirar os olhos dos ponteiros do relógio, apenas fiz um movimento de cabeça em concordância e ela saiu.


Cinco minutos depois, já me faltavam unhas para roer e por baixo delas já se via uma fina camada de sangue. A doutora Charper tinha ido até o Centro de Treinamento repassar, com exatidão cronometrada, o passo a passo para executar a retirada e evitar que tudo fosse por água à baixo. Enquanto isso, eu fiquei para sofrer por antecipação e esperar. Somente esperar. Esperar até chegar a minha vez.

Mais dois minutos se passaram e infelizmente como eu nunca fui tão paciente assim, resolvi já ir me dirigindo até lá. Quando abri a porta do quarto da doutora, fui obrigada a retornar rapidamente. Uma escolta composta por guardas armados e com uniforme do Projeto Regenciadores, vinha em direção ao alojamento dos funcionários formando um escudo em torno de Honn e Robertta. Esperei que o som dos diversos passos em marcha se afastassem e fui atrás, mantendo uma distância razoavelmente segura, porém garantindo que não os perderia de vista.

Os acompanhei até certo ponto, onde eles viraram para outro corredor e mudaram de direção.  Mantive-me escondida até que todos eles passassem e quando finalmente cheguei àquela bifurcação pela qual haviam acabado de se dirigir, estavam todos se posicionando dentro de uma caixa metálica e por uma fração de segundo me observaram com surpresa.

A última coisa de que me lembro foi o olhar de Honn, que mesmo enxergando o desastre que se desenrolaria, ainda conservavam o último resquício de calmaria antes de tudo desandar. Naquele instante, todos apontaram para mim. E no instante seguinte, me vi em meio a uma estrondosa e ensurdecedora chuva de tiros no hall.

Corri de volta para me proteger usando a parede. Os tiros acertavam as paredes e ricocheteavam. O som reverberava pelos corredores e ecoava até longe. Eu não posso ceder a pressão e ao medo, pensei. Através do poder da minha Matriz, invoquei duas correntes de ar vindas uma por cada canto do hall e as lancei com velocidade. Ao atingirem os alvos, alguns foram jogados de volta ao elevador e outros conseguiram se manter de pé com alguma dificuldade – provavelmente por sua capacidade de também reger o elemento.

Eu não tinha muitas alternativas e sabia que não escaparíamos de um confronto direto, que era o que eu queria evitar desde o princípio por estar em menor número. Então precisaria improvisar. Respirei fundo e caminhei de encontro a eles de queixo erguido, postura altiva como se estivesse desdenhando deles, mãos e braços crepitando em chamas. Sim, eu notei a surpresa em suas expressões congeladas o constatar que eu também era uma Guer-Matriz. Infelizmente, só essa demonstração não os abalaria. Eles não recuaram, estavam em vantagem e novamente levantaram suas armas e suas régias contra mim, se preparando para o ataque.

Avancei em direção aos projéteis enquanto, simultaneamente, dentro do elevador, Robertta colocava as duas mãos em suas paredes e manipulava o metal forçando-o de modo a se desprender do mecanismo que o mantinha estabilizado e se soltar. Alguns guardas que ainda estavam lá dentro, caíram junto delas. Não pude impedir o ímpeto de gritar, mesmo que elas não ouvissem por causa do barulho provocado pela velocidade e atrito da caixa de metal durante uma queda livre e descontrolada.

Em pouco tempo, a raiva e a tristeza se misturaram em uma coisa só e me impulsionaram. Agora eles eram ainda menos numerosos do que quando apareceram e eu – apesar de estar sozinha – ainda tinha a vantagem de dispor de diferentes elementos, enquanto eles, apesar de terem armas, manipulavam somente água e ar. Decidi mudar de estratégia, pois eram também mais rápidos e mais bem treinados.

Absorvendo seus ataques, fui recuando como se muito afetada por seus golpes e os trazendo comigo. Quando chegamos ao fim do hall, eu tinha água o suficiente para enviar uma onda e os pegar desprevindos. Eles foram atingidos com tamanha força, que seus corpos se prensaram contra as parede.

Realizei o mesmo procedimento com o qual combati os manipuladores de metal liderados por Sandelize na floresta e os reuni dentro de uma bolha – a diferença é que eu tinha aprendido autocontrole o suficiente para não pretender deixar que eles morressem sufocados com a pressão que havia lá dentro. Mas os liberei a tempo de sobreviverem, porém já inconscientes.

Ao terminar com eles, os examinei minuciosamente e comprovei o estado inconsciente em que se encontravam. Me aproximava de um deles para recolher suas armas, quando escutei uma voz familiar me gritar e dei um salto para trás, alarmada.

— Espere!

Esfreguei os olhos quando avistei Honn correndo em minha direção.

— Como você... O que está acontecendo?

Robertta surgia pelo vão do local onde deveria haver uma caixa de metal quando a outra garota me respondeu.

— A Betta nos retirou pelo teto durante a queda e nos fez flutuar no ar até aqui. Foi incrível!

A garota contava, cheia de entusiamo, a aventura que viveram. Enquanto isso, Robertta possuía um ar de vitoriosa, cruzando os braços em frente ao peito.

— Eu sempre quis fazer isso! — Disse.

Sorri para elas, feliz e aliviada por ainda estarem vivas. A garota de pele escura e radiante passou por mim e foi direto aos corpos estirados no chão, observando-os.

— Você fez um estrago por aqui. Meus parabéns!

Olhando em volta, percebi as luzes estouradas dando curto e as poças de água pelo chão. Dei de ombros e rebati, parafraseando a própria Robertta.

— "Eu sempre quis fazer isso".

Recolhemos as armas e arrastamos os corpos para o quarto de Adelia – ela provavelmente nos mataria se soubesse disso, mas creio que não importaria já que estávamos de saída. Quando íamos trancá-los lá dentro, percebemos que já havia passado a hora marcada para o sistema de segurança ser desligado.

A primeira parte do plano fora executada e logo que alguém percebesse algo fora do normal, guardas se dirigiriam ao Centro de Treinamento onde não encontrariam Honn e Robertta. Precisávamos descer as escadas como relâmpagos e nos dirigir para o complexo de celas antes que eles chegassem, o que a essa altura seria algo difícil.

Ao chegarmos no primeiro andar, ao pátio que circundava a torre central, nos vimos em uma situação complicada. Por todas as direções que se ramificavam a partir dali, alguns homens e mulheres que compunham a vigília nos cercavam e antes de chegar até nós já se muniam do que dispunham para nos impedir de fugir. Parti para cima deles com tudo o que podia, mas a cada momento chegavam mais gente, o que interromperia o seguimento do plano.

Robertta se ocupava de tentar parar as balas, demonstrando que manipulava metais, enquanto isso, lá do alto – de onde vi descer uma rajada de tiros – observei a doutora Charper portando e atirando com uma arma enorme e também Honn, que estava ao meu lado, começou a sobrevoar em volta da torre, arrancar dos guardas e entregar mais armas e munição para a mais velha do quarteto.

A garota tinha um domínio impressionante sobre a própria régia, mas não só ela como também a Robertta. Isso me intrigava, uma vez que ambas tinham poderes há tanto ou menos tempo do que eu. Enquanto estava distraída me desviando de ataques, senti um doloroso impacto em minhas costelas mas não vi de onde veio o golpe que me lançou contra a parede.

Os ataques continuaram a vir e tiros também, até que Robertta interviu desviando-os com uma das mãos e expandindo o metal dos projéteis até que explodissem usando a outra. No meio de todos os gritos, elementos cortando os ares, tiros explodindo contra corpos e sangue jorrando, era difícil assimilar algumas coisas com precisão. E foi exatamente o que aconteceu quando olhei para cima e vi Adelia sinalizando, com o dedo indicador, um movimento circular para baixo. Ela repetiu aquilo por mais algumas vezes antes de eu vê-la mexendo nos painéis daquela torre e o chão se desprender de uma parte imóvel e começar a girar.

Muitos se desestabilizaram, mas como eu já estava no chão, consegui notar uma abertura logo abaixo de nós. Me lancei por ela, rolando e caindo à alguns metros abaixo dali, num lugar escuro. Quando levantei, todas as luzes se acenderam sequencialmente e revelaram uma espécie de pista de decolagem. Como a torre era uma estrutura projetada para vôo, então deveria ser por aqui que ela decolaria.

Caminhei pela pista até o outro lado e encontrei escadas. Subi um andar e cheguei a outro pátio com uma outra torre centralizada – o que, segundo o mapa de Robertta, deveria ser a torre delta, que guardava o complexo de celas – e não havia mais ninguém além de alguns guardas, afinal, com duas "preciosas" Guers-Matriz recém criadas se rebelando, quem se importaria com as crianças descartáveis mofando nas celas?

Depois que atravessei todo o lugar, tendo cuidado para não ser vista pelos guardas que estavam distraídos contando uma história, ainda demorei uns minutos para finalmente encontrar o que procurava, já que o lugar era como um labirinto e eu não tinha tido tempo o suficiente para memorizar completamente o mapa. Os pequenos e jovens prisioneiros estavam sentados, raspando um prato de comida quando eu abri a porta utilizando um cartão da doutora Charper e entrei sorrateiramente. Era bem possível que eles nem soubessem o que estava se passando lá em cima e seria bem melhor se eles não tivessem que saber, mas esse não era um privilégio que teríamos.

Eles pareciam confusos, mas tentei explicar da forma mais resumida que poderia e esperava talvez algum temor por suas vidas no fogo cruzado, mas recebi determinação e esperança em seus olhares. É claro, havia também apreensão. Embora eu realmente acreditasse no plano, ver todos ali prontos para sair, me fez pensar que talvez eu não os visse nunca mais. E não poderia dizer se eles estavam conscientes do risco que iriam correr daquele momento em diante.

Talvez tenha sido por isso que tudo se tornou um borrão para mim, como se minha mente preferisse suprimir essas últimas memórias daquele lugar. Mas ao sair dali, a vitória tinha o sabor amargo da derrota. Compreender o verdadeiro significado da missão vinha com um preço. E ali, havia sido o sangue inocente em minhas mãos, o sangue de seis crianças que foram sepultadas por causa da ambição e da sede de poder. Queen, Baalu, Feer, Trent, Petra e Leith, foram o preço que pagamos pelo risco que eu assumi.

Eu precisava admitir que Eirie esteve certo sobre uma coisa: eu me sentia culpada por ter assumido a missão de ajudar essas crianças. Eu as coloquei em risco. Aquilo doía muito. Eu nem conhecia elas muito bem e agora tinha mais seis mortes na minha conta. Robertta tinha os irmãos dela de volta, Honn tinha seu namorado, Kell, de volta. Adelia tinha vinte crianças, adolescentes e jovens entre nove a dezessete anos, sob sua custódia temporária e cuidava dos ferimentos de todos igualmente verificando se precisavam de algo. Eu, que embora tivesse apenas ferimentos leves, sentia dor e angústia em meu peito.


Aqueles foram os quarenta e cinco minutos de viagem mais difíceis da minha vida. Não que eu viajasse muito. Ao chegarmos em Arruinada, a cidade de onde todos eles vieram, tentei assumir outra postura – até porque, sabia como eles deviam estar abalados pela morte de seus amigos e com a aproximação do retorno deviam estar caindo em si.

Depois que pousamos, desastrosamente – diga-se de passagem, eles quase se atropelavam para chegar lá fora primeiro, onde as pessoas já se aglomeravam. Todos estavam surpresos, eufóricos e espantados ao rever seus familiares e correram para abraçá-los. Os pais e parentes, por sua vez, choravam tanto que me apertava o coração e ameaçava trazer à tona todos os sentimentos que estava mantendo enterrados dentro de mim. Flashes da nossa fuga começavam a retornar na memória.

Cheguei na saída e estaquei. Lá de cima os observei, as pessoas formavam um grande rebuliço chamando as outras para ver as crianças. Os garotos e garotas abriam passagem por entre o povo, deixando alguns mais agitados e desesperados do que os outros – provavelmente os parentes. Antes que pudesse deixar a rampa e chegar ao solo, a doutora Charper pesou a mão sobre meu ombro esquerdo e inevitavelmente voltei o olhar para seu rosto. Estava sério e altivo.

— Não mantenha contato visual de forma alguma. Se alguém perceber que está encarando... — Ela suspirou e balançou a cabeça — bem, não deixe que percebam.

Ela mantinha a postura, sem em momento algum olhar para mim. Quando ia manifestar dúvidas sobre o que a mulher estava falando, a avistei descendo a rampa então tive que correr até ela.

— Não estou entendendo.

— Essas pessoas não são nada confiáveis. Precisa ter cuidado, Lizlee.

Fiquei confusa, mas já estava tentando agir assim com qualquer pessoa desconhecida. E insisti para que ela explicasse melhor, porém, como as pessoas já nos analisavam descaradamente e só faltavam nos apalpar enquanto abríamos caminhos entre elas, ficava difícil ter alguma conversa naquele momento. 

— Mas agora não é hora para conversarmos sobre isso. Vamos!

Ela me segurou pelo braço, entrelaçando o dela ao meu e nos conduzindo pela multidão. De repente, escutamos alguém nos chamar. Só eu virei o rosto. Avistei as gêmeas Gisele e Griella acenando, mas a mulher de cabelos brancos como a lua insistia em me arrastar para longe de todos. Consegui me livrar de seu domínio e segui me dirigindo até as gêmeas. A doutora Charper não se deu por satisfeita e me seguiu.

— Essas pessoas são perigosas demais para você se misturar. Eu não vou... — ela me agarrou pela blusa e puxou — deixar você correr esse risco.

A empurrei para longe de mim e esbravejei.

— Quem você pensa que é para se intrometer nas minhas decisões?

A mulher me encarou com a expressão carregada de perplexidade e depois de um breve instante calada avançou em minha direção segurando em meus braços e me sacudindo.

— E quem você pensa que é para achar que suas decisões são só suas?

Arregalei os olhos confusa e ela desviou o olhar para o chão, respirando profundamente e buscando recuperar a calma. O que eu também deveria ter feito, mas não tinha a mínima vontade de agir calmamente naquela hora. Quando, lentamente, seus olhos retornaram a fixarem-se em meu rosto, havia algo de diferente neles que eu não soube identificar. Talvez um pesar.

— Caso não tenha percebido, você é uma propriedade privada agora. Não importa qual Regência se torne sua aliada, as suas escolhas não te pertencem mais. E se ousar não escolher um lado, eles se livrarão de você. E se escolher um lado que não os agrade, eles também se livrarão de você.

Meu coração estava saltando no peito. Uma sensação medonha me tomou por inteiro. O vento frio que anunciava a chegada do inverno, atingiu-me, causando arrepios pela minha pele. Mas o mundo ao redor parecia um borrão confuso de cores e sons indistinguíveis. 

As gêmeas vieram ao mesmo tempo e me abraçaram. Demorei algum tempo para entender o que estava acontecendo, mas logo os sons e as cores se normalizaram – exceto pelo fato de que as palavras de Adelia não saíram da minha cabeça um segundo sequer depois de tê-las ouvido.

— Lizlee! Você não nos abandonou. Kell não acreditava que você voltaria por nós.

A mulher se afastou um pouco, mas sem tirar os olhos de mim. Ela estava contrariada, eu pude notar, pois fazia questão de demonstrar. Gisele estalou os dedos em frente ao meu rosto e riu quando não a respondi.

— Oi? Você está aí?

Sorri de volta para disfarçar.

— E aquele seu amigo?

Griella se colocou na frente da irmã e se enganchou em meu braço. Gisele fez o mesmo, do lado que estava vago. As duas olhavam diretamente para mim e pareciam interessadas na minha resposta.

— Ele teve que ir embora.

Menti. Elas ficaram visivelmente desapontadas, mas logo engataram outra pergunta. Estavam me conduzindo na direção de uma mulher mais velha com uma expressão divertida que sorria largamente. Elas afastavam as pessoas com empurrões e pouco se importavam com as reclamações. Eu me encolhia entre as duas, que eram mais altas do que eu e serviam como meu escudo.

"É uma pena!". "Ele é tão lindo!", elas diziam. Depois que uma completava a frase da outra, as duas se entreolhavam, suspiravam e riam em sincronia. Eu não sabia qual era a graça, mas também não queria gastar energia tentando entender.

— Oh! Vocês dois são... — Griella balançou a cabeça de um lado para o outro, abrindo a boca em um "o" e arregalando os olhos.

— Somos o que? — Perguntei.

— Namorados?

Engoli em seco e franzi o cenho. Mas é claro que não, pensei.

— Mas é claro que não!

Exclamei com mais ênfase do que pretendia dar. Agora os meus pensamentos não se continham e saíam sozinhos. O jeito malicioso como elas riram depois disso e voltaram a comentar sobre Eirie, me causou um certo incômodo. Parecia que elas estavam falando de comida e não de uma pessoa. Me desvencilhei delas e as escutei cochichando de longe. O assunto continuava sendo ele. Não entendi o motivo de aquilo estar me incomodando. De repente me esbarrei com a mulher que nos olhava fixamente há muito tempo e ela me abraçou como se fôssemos íntimas, apertando até que eu levantasse do chão. Ela era bem forte e, por incrível que pareça, menor do que eu.

— Gisele e Griella me disseram que foi você quem as salvou.

Falava alto também. Ela passou a mão no meu cabelo e sacou um canivete. Dei um salto para trás, assustada. As gêmeas me seguraram enquanto a mulher tirava um pedaço de uma mecha do meu cabelo.

— Eis aqui a libertadora! Aquela que foi tocada pelo fogo.

Ela ergueu a mecha vermelha no meio da multidão que gritou de volta "Viva! Viva! Viva!". Ela me abraçou de novo e depois vieram outros, querendo me abraçar e encostar em mim. Quando alguns se referiram à mim como "aquela que foi tocada pelo fogo", comecei a considerar o fato, coincidente ou não, de que quando meu pai revelou que eu sobrevivi de uma forma misteriosa ao incêndio que matou minha mãe, pela primeira vez podia imaginar culpados e os feiticeiros Hollunya envolvidos nessa história. Já a questão sobre estas pessoas saberem mais sobre mim do que eu mesma, já nem me assombrava tanto como no início, embora ainda me surpreendesse. Alguns dos garotos e garotas pediram para que eu ficasse em suas casas ou que os visitasse. Doutora Charper continuava me vigiando ao longe. Mas um ato repentino de Robertta a fez se destacar da multidão. Ela subiu em um lugar mais alto e gritou pedindo atenção.

— Ela vai ficar na nossa casa! Na Sede da 6.

Junto dela estavam ainda seus irmãos, uma mulher e um homem, seus pais, creio eu. O homem estava de cara fechada, ele era alto e forte, sua pele negra e toda desenhada com símbolos, carregava várias cicatrizes. Tentei não encarar muito, ele parecia furioso. Já a mulher, não parecia estar. Ela, uns poucos centímetros mais baixa que o homem, também negra e com seu cabelo cacheado e volumoso, tinha os mesmos traços fortes de Robertta. 

— Vamos, senhorita...? — A mãe de Robertta gesticulou e a filha respondeu.

— É Lizlee. O nome dela é Lizlee.

— Então, vamos querida?

A mulher tinha receptividade no modo de me tratar. Todos foram com ela na frente, apenas Robertta se pareou ao meu lado fazendo cara de brava e afastando as pessoas.

— Cadê a doutora Charper?

— Eu não sei. — Respondi, dura.

— Os meninos perguntaram sobre um garoto que estava com você...

Revirei os olhos e resolvi cortá-la.

— Porque todo mundo quer saber do Eirie? Eu por acaso sou obrigada a saber? — Me exaltei sem motivo aparente.

— E que culpa eu tenho se você e seu namorado brigaram? Não vem me atacar não, sua mau educada.

A garota apressou o passo e me deixou gritando e correndo atrás dela para alcançá-la.

— Primeiro, ele não é meu namorado. E segundo, nós não brigamos. E se quer saber, mau educada aqui é você.

Dei as costas para ela e continuei andando apressada para acompanhar os outros. Robertta veio logo revidando.

— Está exaltadinha, querida?Ninguém é obrigado a aturar o seu péssimo humor. Se não quer ficar aqui conosco, fique à vontade para ir embora.

Ela apontou o caminho de volta até aquele objeto de metal, estranhamente grande, por meio do qual fomos transportados até aqui. Olhei, dei de ombros e continuei andando.

— Se vai ficar, deve saber que aqui nós temos regras e você é intrusa, então não tem direito a discordar.

Chegando em frente a um local cercado por muros e cerca elétrica, os pais dela forçaram a porta para que se abrisse.

— Bem-vinda à Zona 6.

Ela gesticulou com os braços, abrindo-os em direção ao lado de dentro do muro. Depois que eu entrei e dei uma boa examinada, ela parou e só entrou depois de ter certeza de que ninguém se aproximava, fechando a porta atrás de si com vários cadeados diferentes. Não poderia dizer que era um exagero, mas também o que uma simples intrusa poderia dizer? Pelo contrário, eu queria era conseguir chamar menos atenção possível.

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