Capítulo XXV -

A mulher de cabelos platinados em um tom perolado puro, quase cintilante, preso em um coque desalinhado quase se desfazendo, meneou a cabeça e apontou para a saída da caixa metálica enquanto eu tinha meus olhos completamente fixos na escuridão do suposto cômodo a minha frente. Seria uma armadilha? Afinal, segundo as crianças com que conversamos, aquela seria uma das funcionárias que ajudavam nos procedimentos experimentais. Ainda que não pudesse enxergar o que havia do lado de fora, já que as luzes estavam apagadas, notei Honn sinalizando que eu poderia sair.

— Você não vai entrar? — Questionou a mais velha após mais alguns instantes de completa imobilidade.

— Não tenho certeza. — Minha resposta saiu em um sussurro.

— Imagino que pense se tratar de uma armadilha, portanto, permita que eu vá na frente.

Meus olhos se arregalaram quando ela pareceu ler meus pensamentos, mas no momento em que os pés daquela que chamavam de doutora Charper alcançaram a parte de fora da caixa, todas as luzes se acenderam e minha visão foi preenchida por diversas máquinas e equipamentos tecnológicos desconhecidos, assim como a minha audição foi tomada pelos sons diversos que elas emitiam, como se tudo ali apenas estivesse esperando por nós para começar a funcionar. De fato, era apenas um laboratório.

Não havia decoração no local que sugerisse um tom mais pessoal, mesmo assim era possível notar que a doutora Charper passava muito tempo por ali – a julgar por uma mesinha e uma cadeira ambas voltadas para uma parede branca onde ainda se encontravam restos de algum tipo de comida de fatia triangular em um prato e um copo grande com líquido escuro quase no fim.

O cômodo não estava sujo, embora visualmente estivesse um caos com papéis espalhados sobre as mesas, pranchetas, livros, uma espécie de esquema tridimensional inacabado e peças de aparelhos eletrônicos desmontados bem como ferramentas. Parecia que a mulher pretendia construir alguma coisa e não soubesse exatamente como fazer isso. Ao lado de todas essas coisas também havia os únicos elementos que poderiam dizer algo sobre ela: um cinzeiro com um cigarro com a ponta recém apagada e uma garrafa de algum tipo de bebida aparentemente alcoólica.

Não pude deixar de notar que, definitivamente, jamais havia visto um lugar como aquele na capital Leeland ou em todo o restante do Grande Lizma – mesmo em departamentos do Governo Cupular onde as coisas eram particularmente mais desenvolvidas. Eu estava bastante distraída com as novidades existentes no laboratório e com a quantidade de objetos se movimentanto para todos os lados e simultaneamente piscando, girando, apitando ou tudo ao mesmo tempo, que nem dei atenção a uma outra voz feminina ao meu redor, afinal deduzi que ela viesse de Honn. No entanto, ao assimilar a entonação robotizada e o modo frio com que a doutora Charper dava instruções, percebi que se tratava de uma máquina executando sua função. 

— Preparando procedimento. — Avisou a voz robótica.

A mulher segurou em minha mão, que por instinto puxei de volta para junto do corpo e fiquei a encarando com desconfiança. Ela rapidamente pareceu compreender o que estava acontecendo.

— Ah, me perdoe. Deveria ter explicado que você precisa entrar neste tubo para realizar uma esterilização.

— O que é isso? — Dei alguns passos para trás, na direção da porta da caixa metálica, pronta para fugir se fosse necessário. 

— É só uma limpeza. Garanto que você já passou por coisas mais dolorosas. — Ela respondeu sorrindo como se isso fosse amenizar minha desconfiança. Estava enganada, então: — Mostrarei como funciona, se isso for deixá-la mais tranquila.

Ao ouvir suas últimas palavras, abandonei a postura do susto inicial – lembrando do que Eirie havia me dito uma vez sobre nunca mostrar intimidação – cruzei os braços e fiz um sinal com a cabeça para que ela fosse em frente. A mulher soltou um risinho curto e analasado como se não acreditasse um só instante na minha coragem. Virei o rosto para o outro lado, com certeza enrubescida, quando a vi retirando suas roupas e ficando apenas com as peças íntimas colocando as demais em um compartimento separado.

Khayla, proceder com a esterilização.

Demorei até o segundo comando para entender que "Khayla" seria a voz robótica que executava as ordens da doutora. No entanto, só realmente acreditei que se tratava de uma simples "limpeza", depois que terminou o procedimento e ela saiu do tubo pegando um macacão branco embalado à vácuo que retirou de outro compartimento e o vestiu. Mesmo assim restara um resquício de desconfiança sobre tudo o que poderiam fazer comigo uma vez que estivesse lá dentro, principalmente depois daquele pesadelo.

Khayla, por favor, prepare um novo procedimento.

Solicitou a mulher enquanto mantinha o olhar sobre mim, como se temesse me perder de vista. Como se a sua Khayla, que controlava remotamente um procedimento como aquele, não pudesse também trancar todas as saídas daquela sala se ela mandasse.

— Já está sendo preparado, doutora Charper.

— Ah, e não se esqueça de reduzir à 0% o nível de transparência do vidro do tubo de esterilização.

— Considere feito. — Soou a resposta.

Fiquei confusa por um momento com uma questão mas não tive tempo de questionar uma vez que estava sendo conduzida até lá e ouvia a instrução da doutora.

— Senhorita, sei que pode ser desconfortável, mas terei que pedir para tirar completamente as suas vestimentas e depois as deposite no compartimento que se abrirá à sua esquerda. Como veio do meio externo, eu... espero que compreenda.

Coberta de vergonha por ter que me despir – pelo menos tendo o consolo de que nada poderia ser visto do lado de fora – permaneci em uma marca até o tubo de vidro descer do teto me deixando levemente incomodada outra vez. Após sinalizar para ela, do lado de fora a ouvi conversar com a Khayla para iniciar o procedimento. Umas luzes se acenderam sequencialmente de alto à baixo no tubo até que jatos de uma fumaça atingiram meu corpo inteiro. Por último, ouvi a voz robotizada informar: "Esterilização Completada".

O outro compartimento se abriu e saquei a embalagem de dentro, vestindo o macacão branco, peça única de alto à baixo, e as botas e luvas também brancas como as que a doutora Charper usava agora. Quando as portas do tubo se abriram, eu saí tão depressa para me livrar daquela sensação claustrofóbica que acabei esbarrando com Honn. A garota me segurou, apertou firmemente meus braços e me olhou como se estivesse me julgando, mas depois percebi que não havia um pingo de julgamento em sua atitude.

— Você está bem? — Não ouvi bem a pergunta, estava atordoada o suficiente. Ela prosseguiu. — A primeira vez é mesmo muito estranha.

Os olhos da jovem que ainda me segurava se voltaram para a doutora Charper e logo me senti livre do aperto de suas mãos pesadas e ásperas demais para a garota que ela aparentava ser. Mas também, não há muito tempo eu havia visto uma faceta completamente transtornada dela e que também destoava completamente da figura quieta e resignada que nos acompanhava durante o restante do tempo em que estivemos no mesmo espaço – a ponto de quase me fazer esquecer que ela estava ali. Isso me fez querer dizer algo, porém não consegui já que a mais velha a interrogou antes que eu pudesse.

— Honn, onde estão Robertta e Sthan?

— Robertta está no Centro de Treinamento. — Ela engoliu em seco, mordeu os lábios e só voltou a falar depois de algum tempo. — O Sthan... ele não...

Sua voz falhou. Seus olhos miraram o chão. A doutora lhe poupou da resposta e pediu para que se juntasse à Robertta ou fosse descansar. Fiquei em silêncio somente até ter certeza que a garota havia saído por outra porta e não pela caixa metálica por onde entramos.

— Ele está morto, não está?

A resposta a minha indagação veio em forma de um suspiro cansado e um desviar de olhos. O silêncio permaneceu no ar por um tempo, mas eu não precisava realmente de uma resposta.

— Mesmo depois de tanto tempo, o sentimento de culpa por cada perda ainda é o mesmo da primeira. Não consigo enxergar o que fazem aqui como progresso científico. Só consigo me arrepender de ter contribuído.

— Mas continua trabalhando com eles. Não me parece o tipo de coisa que alguém que se arrepende faria.

— Eu sei que é difícil entender que exista um motivo para eu continuar aqui e, sinceramente, não tenho a menor intenção de me justificar...

Acompanhei seus dedos se movimentando freneticamente em uma nova tela de caracteres luminosos azulados que se abriu diante de nossos olhos e no instante seguinte uma parede de vidro se revelou – no lugar daquela para onde estava virada a mesa com uma refeição esquecida – com uma bela vista de um lago ao longe no horizonte. Caminhei até lá onde há pouco não havia nada de paisagem. A mulher, segurando e balançando uma caixa em formato octagonal em minha direção, chamou minha atenção novamente ao questionar.

— Você quer pizza? — Eu não fazia ideia do que era aquilo, portanto neguei, embora o cheiro que emanou da embalagem ao ser aberta fosse bastante agradável. — Então, o que eu dizia?

— Você dizia que se arrependia de ter contribuído com o Projeto Regenciadores...

Tentei fazê-la retornar ao assunto sem ainda aceitar o que quer que fosse "pizza", mesmo depois dela ter insistido. Não pude deixar de notar como as pessoas costumavam tentar mudar de assunto usando diferentes métodos.

— Sim, é verdade. Eu sabia que as crianças poderiam sofrer com os experimentos, mas ninguém quis me escutar. E como os primeiros experimentos dessa linha de pesquisa tiveram sucesso logo com o "Paciente Zero", isso os levou a acreditar que era seguro replicar os resultados com apenas uma pequena margem de erro. Acabei descobrindo da pior forma que realmente estava certa, mas de nenhuma forma isso me orgulhou. Muitos fatores foram negligenciados, tivemos muitas perdas até que uma nova abordagem, com risco bem menor de danos colaterais, começou a ser introduzida: a que eu desenvolvi.

Em outro tela, imagens, fotos, arquivos, gráficos, nomes e origem de todas as crianças que foram feitas de cobaia pelo Projeto Regenciadores e seus dados relacionados às informações de suas chegadas, exames preliminares e progressões complicadas, começaram a se sobrepor tela após tela enquanto ela explicava.

— Não importa que tenham se diminuído os danos, vocês expuseram todas ao risco. Não existe nenhuma ética no que vocês fizeram.

— Não existe ética no nosso Novo Mundo. O único resquício dela que ainda resistia acabou no momento em que descobriram como modificar ou estimular o genoma humano para desenvolver as habilidades Guers.

Arregalei os olhos e senti meu corpo estremecer por inteiro. As palavras dela ficariam ecoando nos meus pensamentos por mais tempo do que deveriam. Eu mesma não desconfiava disso há tempos?

— Você sabe que a história que se conta nos vilarejos de Una Royal é diferente dessa? — Ela se voltou para mim, intrigada. — Existe uma crença de que as chamadas "Divindades Maiores da Natureza" teriam nos escolhido para originar uma raça com habilidades para, de alguma forma, reiniciar o planeta ou algo assim...

— Já ouvi algo a respeito. Mas o que acha mais plausível? — A doutora Charper tinha agora uma doçura na voz, como se quisesse me convencer de seu ponto de vista. — Há muitos milênios a humanidade é regida pelas crenças divinas e religiosas. Devem ter percebido que a narrativa parece ser bem melhor controlada quando a maioria acredita em forças ocultas e divinas e não em fatos e na ciência.

Um silêncio prevaleceu por alguns minutos. O que ela dizia fazia muito sentido, mas o que explicaria a voz na minha cabeça ou as visões, sonhos e aparições? O olhar dela se perdia no horizonte e rapidamente deixei que o meu também seguisse esse rumo, entretanto, não estava ali para isso e sim por respostas e pelas crianças.

— Então, se não foram as Divindades, o que realmente aconteceu?

— Senhorita, isso tudo teve início muito antes da Terceira Guerra Mundial, quando diversos conflitos regionalizados ocorriam. A cada nova ruptura, parecia mais claro que em algum momento o caos se generalizaria. Pensando nisso, vários países começaram a formar alianças e até mesmo desenvolver estratégias para quando isso acontecesse. Em uma dessas alianças estabelecidas, havia um departamento especializado em engenharia genética, com uma equipe composta por profissionais de diferentes áreas que trabalhavam em uma pesquisa cujo o objetivo era conseguir uma recombinação genética capaz de "melhorar" as habilidades humanas para inclusive resistir à ataques de agentes químicos e biológicos. No entanto, vários testes sem sucesso determinaram o fim deste programa e o afastamento do idealizador do projeto inicial, que ficou obcecado em comprovar sua teoria.

Neste ponto ela deu uma pausa e começou a caminhar pelo laboratório, eu a segui sem me conter. O modo ríspido com o qual ela praticamente cuspiu as palavras a seguir, juntamente com o gesticular de cabeça em negação, me deixou ver o desprezo que sentia pelo nome.

— Derekhan Zvatrze. Ele foi o responsável por tudo isso.

Quando minimamente comecei a lembrar de onde o sobrenome Zvatrze me soava familiar, ela retornou.

— Mesmo depois que toda a equipe se desfez e o programa foi encerrado, este homem decidiu continuar. E com a ajuda de uma ex-membro de sua equipe, trabalhou por anos para corrigir a teoria inicial. Até que, mesmo depois de todos esses ocorridos, Derekhan convocou parte da antiga equipe para recomeçar e por conseguir mostrar resultados em sua pesquisa, o programa foi reaberto e investimentos começaram a ser feitos. Não muito depois disso, o conflito mundial estourou e aquilo que deveria levar anos para ser testado em humanos, precisou pular todas as etapas de segurança a pedido dos próprios governos envolvidos – que agora não eram mais os mesmos que o haviam escorraçado.

Durante o tempo de sua explicação, acompanhei seu deslocamento para um novo espaço, mesmo sem que ela tenha precisado pedir que eu fizesse. Este mais parecia um alojamento, provavelmente era onde Honn, Robertta e Sthan ficaram enquanto seus amigos acreditavam que estavam sendo torturados. Chegando à uma porta de vidro, que se abriu sozinha quando nos aproximamos, entrei e observei o ambiente ao meu redor. Era uma estufa enorme e a natureza era viva, colorida e exuberante, embora estivesse úmido e bem mais quente do que me lembrava estar lá fora onde nevava quando Eirie e eu chegamos naquela instalação. A passos curtos e cada vez mais admirada, caminhei até onde estava Adelia, que já se encontrava bem na frente.

— Obviamente as primeiras cobaias eram presos políticos ou qualquer um que se opusesse aos governos dos países envolvidos e pudessem ser descartados em caso de falhas. No entanto, os testes provaram que nem todos evoluíam nas etapas do experimento e que não havia nenhum tipo de controle sobre as capacidades que o grupo modificado acabou desenvolvendo. Ignorando completamente esse fato, os governantes ordenaram que todos os soldados da aliança fossem submetidos ao procedimento, mesmo com o risco de não sobreviverem – pois naquele momento ainda não havia sido precisamente confirmado o fator de determinação para o sucesso do experimento. Depois dos exércitos, iniciaram-se as campanhas para os testes em civis.

— Eu me lembro de ler que as pessoas que manifestaram habilidades começaram a ser perseguidas mais tarde. E então precisaram fugir, encontraram esse lugar e o chamaram de Una Royal.  

A doutora Charper confirmou com um balançar de sua cabeça.

— Pensando bem, de fato não mentiram sobre tudo. Há quanto tempo a natureza realizava sua vagarosa seleção para que fôssemos capazes de sobreviver nesse mundo hostil?

Olhei para ela, seus olhos vagaram para o teto da estufa e se fecharam por um longo tempo como se desconsiderasse a minha presença ao seu lado. Uma vez após a outra, a doutora respirou e expirou. Lentamente. De repente ela retomou a fala, me pegando de surpresa.

— Com o tempo, senhorita, poucos seres realmente pensantes, como eu, se rebelaram contra a ideologia de supremacia Guer a que os Regentes querem submeter os Não-Guers para eliminá-los por fim. 

— Você é uma rebelde? Então o que faz em um lugar em que o intuito é criar um exército de Guers-Matriz?

Eu acho que acabei soando um pouco rude, mas no fundo não me importava com a forma como ela interpretaria isso. Só pensava nas crianças mortas aqui e na hipocrisia que era toda essa situação. A mulher virou somente a cabeça em direção à porta verificando se mais alguém poderia estar ali.

— Eu sou uma agente infiltrada em nome de uma célula rebelde para coletar informações. Essa era a minha missão e apenas essa. E por mais que tenha lutado contra meus sentimentos, não pude evitar me apegar às crianças. Elas não tinham quem as protegesse.

Agora nós tínhamos um ponto em comum: as crianças – e eu nem era muito mais velha do que a mais velha que havia naquele grupo.

-— No início eu tentei me manter focada na missão, no entanto, ao ver a forma como as crianças eram tratadas, tive que intervir. Isso fez com que me olhassem meio torto pelos corredores e comentassem pelas minhas costas. Eu não me importava, continuava indo em favor das crianças o quanto podia e recebia represálias dos outros funcionários. Mas a gota d'água veio há pouco tempo quando descobri um crime terrível e repulsivo. Como era alguém importante, mesmo depois que eu o denunciei, os chefes alegaram não haver provas suficientes. Então, arranjei provas e inclusive testemunhas. Não houve nenhuma punição. Na verdade, houve. Houve punição, para as vítimas.

Ela esfregava os olhos com a manga de seu macacão branco mas era tarde, o choro já manchava sua maquiagem. Eu imaginei que, fosse o que fosse, o tal crime envolvesse Honn e o homem em quem ela atirou. As lembranças daquele momento retornaram, havia não apenas dor como também ódio nos olhos da garota quando sua reação, em meio ao pranto, foi apertar aquele gatilho e isso fez com que o nó que se formou em minha garganta incomodasse.

— Por isso decidiu me ajudar com essa ideia de fuga. Se sentiu culpada por causa das crianças.

— Já tentei fugir com elas outras vezes, não é tão fácil passar pela segurança, principalmente as alas onde ficam as cobaias que obtiveram sucesso.

— Então temos que equilibrar o jogo.

Doutora Charper me lançou um sorriso, parecendo ter compreendido o que eu queria dizer. Seus pés praticamente deslizaram para fora da estufa de volta ao laboratório, onde um jaleco parecido com o que ela usava me foi entregue. Quando dei por mim, sem dizer uma palavra, ela estava se dirigindo outra vez para a caixa metálica. Tentei acompanhar seus passos apressados no entanto quase inaudíveis até que chegamos ao Centro de Treinamento – como uma tela indicava.

Mal havíamos colocado os pés para dentro quando uma parede de terra subiu a nossa frente e simultaneamente um estrondo reverberou ao nosso redor. A parede tremeu com o impacto e água respingou em nós. Estar acostumada a manipular por instinto, me fez ficar espantada ao notar que não era eu quem manipulava a formação de terra. Ao meu lado, a cientista movimentava as duas mãos para baixo de modo que a parede desabou tão rápido como se formou.

— Pelos deuses, me desculpe. Eu agi por impul...

Uma outra garota, que eu ainda não tinha conhecido, veio correndo até a mais velha mas parou quando seu olhar recaiu sobre mim, enquanto Honn só se deu ao trabalho de virar meio de lado sem sair do lugar.

— Você deve ser a Robertta. É um prazer conhecê-la. — Dei um passo em sua direção e ela deu dois para trás. Voltei para trás também.

— Ela é uma de nós, Betta. Está aqui para nos ajudar.

Honn exclamou enquanto veio até nós sorrindo amarelo para sua amiga. Eu não havia conseguido compreender o receio de Robertta com a minha chegada ou se aquele era simplesmente o seu jeito natural de reagir ao desconhecido.

— Se vamos mesmo fugir precisamos nos livrar do sistema de segurança. — Honn exclamou depois que o silêncio ficou um pouco estranho entre nós.

— O sistema de segurança não é o problema. A quantidade de guardas é que pode ser.

Tentei relevar o fato de Robertta me olhar de cima à baixo fazendo uma cara indefinida e me ocupei de pensar numa solução à questão que a doutora Charper colocara em pauta 

— Em algumas partes o sistema de segurança ainda não foi religado. Estamos operando com energia de um núcleo alternativo.

Robertta agitou a mão esquerda e depois a mão direita moldando uma placa de água e logo começando a dar formas parecidas com labirintos. Olhei melhor para aquilo e percebi finalmente que se tratava da planta do complexo.

— A sala do comando central de segurança fica aqui. — Charper apontou na planta. — Posso ir até lá e desativar o sistema, mas logo que perceberam que algo está errado, oos corredores se encherão de guardas e todos são Guers.

Ela mordeu os lábios, podia ouvir as engrenagens em sua cabeça rodando e questionando se nós daríamos conta de tantos. Honn olhava para a planta da instalação e não esboçava sequer uma reação diante dela, parecia distante.

O que Eirie diria se estivesse aqui?

Pensei que havia apenas sussurrado, entretanto, percebendo que as três me olhavam, baixei os olhos para a planta corando de leve.

— Robertta, quais as áreas sem religamento?

— O centro de treinamento, ou seja, onde estamos. A torre de vigia Delta e a ponte sul, que no caso é a nossa única saída, já que a ponte norte está cheia de guardas.

Ela explica tentando ser sucinta. Coço a cabeça e torço o lábio de um lado para o outro.

— Se Adelia desligar toda a segurança na torre central, é provável que os vigias da torre oeste venham para o centro de treinamento, por ser o mais próximo daqui e os da norte se concentrarão na saída da ponte norte. Destacarão novos vigias para a torre. Enviarão outros para guarnecer a ponte sul e os que sobrarem terão de se dirigir para a Delta, o que nos dará uma vantagem.

A garota ainda destacou os pontos e os possíveis caminhos que percorreriam para chegar a cada local. Refleti por um instante e formulei um plano.

— As pontes são as únicas saídas... — Robertta balançou a cabeça assertivamente. — Doutora Charper, você consegue cortar também a comunicação deles?

Adelia ponderou e fez um leve movimento que entendi como sim.

— Eu vou precisar da ajuda de vocês duas para liberar o caminho até o complexo de celas, que fica perto da torre Delta, que por sorte parece ser a mais próxima da ponte sul... a nossa saída. Não podemos deixar que nos notem, porque mesmo com os nossos poderes e minutos de vantagem eles estão em maior número.

Apontei as posições de acordo com a planta da instalação, instruindo-as como se soubesse o que estava fazendo. E o pior é que elas ouviam atentamente. Embora Honn tenha verbalizado sua preocupação com a retirada, por causa das crianças menores, no fim todas concordamos com o esboço do plano.

— Alguém pensou que precisaremos de um veículo para sairmos desse lugar? Alguém sabe exatamente onde é esta localização e como retornar para casa?

Todas olhamos para Honn ao mesmo tempo. Realmente não havia sido uma preocupação até ser levantada a questão. 

— Podemos utilizar o protótipo da Torre Central. O hangar é abaixo do pátio.

— Ótimo! Doutors Charper, você prepara a decolagem depois de embaralhar a segurança e cortar a comunicação. Nós cuidamos do resto.

Bati na planta de água como se fosse uma mesa bem sólida e ela se desfez molhando nossos pés. Robertta bufou e me encarou vendo seu trabalho destruído.

— Ah, Robertta, você fez um bom trabalho com a planta.

— Planejo fugir daqui já faz muito tempo. — Ela avançou em minha direção com uma cara de quem me devoraria viva e usaria meu cabelo como fio dental. — Espero que esse seu plano funcione, porque os meus irmãos estão lá dentro. E se por um instante eu desconfiar que pretende fugir e nos deixar para trás, eu juro que acabo com você.

Eu não estava errada. Robertta queria me devorar viva. Engoli em seco a ameaça e nos separamos. A mulher de cabelos brancos perolados me conduziu até o seu quarto, garantindo que lá eu não seria encontrada. Enquanto ela arrumava algumas coisas para que eu me banhasse e comesse, fiquei a observando e refletindo sobre o que ela havia dito a respeito da minha mãe.

— Disse que conheceu a minha mãe.

De costas para mim, ela fechou a porta do armário velozmente e parou. Depois, delicadamente pousou umas toalhas sobre a cama e me fitou com ternura. Não era a primeira vez que ela agia de maneiras opostas em tão curto espaço de tempo.

— Eu conheci sua mãe, é verdade. Ela e seu pai sofreram muito pelo que sentiam um pelo outro.

Juntei as mãos sobre meu colo, enquanto olhava para meus dedos trêmulos. Não sei onde tinha tirado coragem para fazer a pergunta.

— Seus avós, tanto os paternos quanto os maternos, rejeitavam a união.

— Mas, por quê?

A cientista descalçou-se e retirou o jaleco ficando mais à vontade. Quando ela me olhou com atenção, sua hesitação desapareceu e ela soltou um suspiro.

— Porque o seu pai era um Não-Guer e a sua mãe era uma feiticeira da Casa Hollunya.

A minha cabeça deu uma volta. Eu havia ouvido corretamente? A minha mãe era uma feiticeira? Por diversas vezes tentei dizer alguma coisa, mas as palavras sumiram quando estavam prestes a sair. A minha mãe era uma Feiticeira, o meu pai um Não-Guer e eu uma Guer-Matriz. Como isso era possível? A mulher, que mais uma vez pareceu ler meus pensamentos, por fim acrescentou.

— Quando os seus pais decidiram contrariar suas famílias, toda a Ordem de Lanóvia se revoltou e amaldiçoou sua ascendência. Com seu pai expulso das propriedades Deskran e sua mãe banida de Lanóvia, eles decidiram sair de Una Royal. Digo isso porque o seu tio James e eu os ajudamos a fugir para se verem livres das perseguições que a maldição causava.  

Ela me examinou com o olhar. Aquelas palavras me deixavam enjoada. O meu pai teve dezessete anos para me contar, mas deixou que eu soubesse por uma estranha. Meus pensamentos voltavam a repetir que tudo o que eu sempre acreditei fora uma grande mentira ou no mínimo uma completa omissão. Eu quis gritar de raiva, mas me mantive calada. Calada e atônita. Será que ele achava que eu desejaria conhecer as famílias que desprezaram, expulsaram e amaldiçoaram meus próprios pais?

Ela arrastou uma cadeira e se sentou mais perto de mim, segurando minhas duas mãos. Desviei o rosto para o outro lado. A mulher, que tinha as mãos mais macias e frias que já vi, – depois das de Philip – soltou uma delas e pegou algo no bolso do jaleco.

— Você já deve ter visto um parecido com este.

Balançou algo na minha frente, mirei de relance e depois fixa e desesperadamente. Peguei de suas mãos sem acreditar no que estava vendo. Era um colar idêntico ao que Moggie me entregara no dia do meu aniversário, dizendo que mamãe me deixara.

— Onde você conseguiu isso? — Praticamente gritei para ela.

— Esse é meu. A sua mãe tinha um igual, deve ter deixado para você como proteção.

Afaguei a joia como se ela pudesse sentir o mesmo que eu estava sentindo. Saudades de algo que eu nem havia vivido.

— Segundo os feiticeiros, esse colar é um artefato encantado. Eles dizem que sua magia é capaz de te transportar para onde quiser ir no espaço-tempo.

Eu não podia ver a mim mesma, mas se pudesse veria como meus olhos estavam brilhando.

— Onde eu quiser ir? — O segurei com mais força com o pensamento que me perpassava naquele momento.

— Ah, cuidado, não faça isso! — Adelia retirou ele de minhas mãos e o guardou novamente. Em seguida respirou profundamente. — Lizlee, suas habilidades já são suficientes, por enquanto.

Estreitei os olhos confusa e cada vez mais assustada. Ela girou sua cadeira de rodinhas até uma gaveta no armário, pegou e acendeu um cigarro, depois sorriu para mim.

— Posso ir para a casa ver todo mundo? Eu sinto tanta saudade de Moggie, é como se não a visse há um século.

A notícia me deixara tão animada que já estava quase pulando feito criança e planejando retornar assim que cumprisse o que estava ali para fazer.

— Quem é Moggie? — A doutora balançou a cabeça. — Quer saber? Isso não importa. Se você aprender a combinar o poder do artefato com os seus poderes, poderá ir para qualquer lugar além do plano físico. Mas se isso acontecesse sem estar preparada, nem eu sei se conseguiria fazer você retornar.

E dizendo isso, ela me pediu perdão. Quase não tive tempo de voltar o olhar para ela e perceber as gotas frágeis e pesadas como cristais se amontoando para cair de seus olhos. Ela estava quase chorando.

— Sabe, Lizlee, me desculpe... eu nunca imaginei que fosse conhecer você. Quando sua mãe foi embora, nos despedimos como se ela estivesse morta. Eu sabia que seria impossível revê-la. Mas aí, olha só, você está aqui e se parece tanto com ela que isso me faz sentir um pouco mal... mas saiba que não é culpa sua.

Com as costas das mãos ela rapidamente secou os filetes que desaguaram e borraram sua maquiagem. Ao mesmo tempo em que terminava de fazer isso, ela acendia outro cigarro, parecendo mais ansiosa e até mesmo cansada.

— Existe muita coisa que você precisa saber, Lizlee. Mas prefiro que descanse para iniciarmos o plano de fuga.

— Doutora Charper...

— Você pode me chamar de Adelia.

Ela me interrompeu. Meus lábios se fecharam e se abriram de novo. A sobrancelha dela arqueou, como se pedisse que eu prosseguisse.

Doutora Charper, eu acredito que suporto muito bem a pressão da verdade.

Era mentira. Quantas vezes coisas como desmaios já não haviam me ocorrido? Lembro de ter lido na Biblioteca Hollunya que este era um mecanismo de defesa da Matriz para nos proteger do trauma ou de situações potencialmente ameaçadoras.

A mulher se aproximou de mim e depositou uma mão em meu ombro. Seus lábios sorriam, mas outra lágrima rolou – solitária – por suas bochechas enquanto ela injetava uma seringa em meu outro braço e me dava um beijo na testa.

— Preciso que fique bem. Então, apenas descanse... vou cuidar de você.

Avancei para ela mas terminei caindo no chão. Os braços dela amorteceram minha queda enquanto lentamente via as luzes desfocarem e apagarem.

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