Capítulo XXIV -


Estava retornando tranquila para a casa depois da minha corrida matinal pela orla que se estendia ao redor do lago quando me deparei com algo inusitado. Eirie estava sentado no telhado. Sim, no telhado. Franzi o cenho ao chegar na frente da casa e olhei para cima.

— O que está fazendo aí?

— Suba aqui.

Ele fez um movimento com o dedo indicador, simulando um redemoinho. Como se eu fosse mesmo me arriscar dessa forma. Balancei a cabeça em negação e senti falta do peso do meu cabelo que agora estava tão leve e vazio. Não seria essa a palavra certa para o que queria expressar...

Hum, estou tentando variar um pouco, sabe? Parecer normal e me misturar aos cidadãos nativos dessa cidade...  

O garoto estalou a língua e deu de ombros, percebendo que eu estava novamente ironizando com as suas próprias palavras sobre eu precisar me tornar uma lanoviense.

— É uma enorme coincidência! Parece que já ouvi um cara dizer algo parecido. Se bem que as palavras soaram melhor quando pronunciadas por ele.

— Acho pouco provável.

Ele riu lá de cima e foi mais em direção à ponta, um frio súbito me tomou por completo mas passou logo quando Eirie se sentou tranquilamente.

— Você vai vir ou não?

Estufei um pouco o peito, entrei na casa e fiz o que uma pessoa normal faria. Subi para o segundo andar e cheguei ao sótão, passei somente as duas pernas ficando sentada pela janelinha que dava para o telhado, porém quando olhei para baixo o medo me atingiu com força. Minhas pernas travaram.

— Sabe de uma coisa? Acho que aqui está de bom tamanho.

— Deixa de ser medrosa.

Ao virar e colocar o primeiro pé de volta para o lado de dentro da janela, senti-me ser enlaçada pela cintura e erguida. Imagino que o meu cérebro tenha entendido que eu estava caindo, uma vez que não conseguia abrir os olhos e comecei a gritar desesperadamente. As tentativas de Eirie de me acalmar em meio à sua risada sonora chegaram aos meus ouvidos, felizmente eu estava segura nos braços dele e novamente próximos demais. Fingi demência em relação à cena histérica que acabei de protagonizar e esmurrei seu peito só para descontar o susto que me fizera passar e ainda estar zombando disso. Quando o riso dele cessou e ouvi somente o som e o calor de sua respiração, me desvencilhei de suas mãos e com muito cuidado sobre as telhas úmidas com neve. Ele veio logo depois.

— Chamei você aqui pois observei uma movimentação estranha.

— Onde?

Ele apontou na direção das montanhas de Safira que ficavam a leste atravessando o lago. Acompanhei tudo o que ele dizia, com bastante atenção. Ele achava que quem nos espionava estava lá, se fosse alguém de Lanóvia já teria nos delatado. Decidimos averiguar esta pista mesmo que fosse apenas para descartar a possibilidade.

  Com o inverno, quase ninguém ia mais naquela parte do lago que era considerada a mais perigosa, consequentemente, encontramos apenas um único pequeno barco amarrado num toco de madeira às margens do lago e quase coberto pela neve. Nós nos arriscamos andar sob o gelo que àquela altura da estação já deveria estar firme e engrossado.

Por vezes aquele caminho branco e frio estalava abaixo dos nossos pés. Eirie não parecia se importar muito com a temperatura ao redor, sequer se vestia adequadamente para enfrentar aquele clima. Ao contrário, eu estava agasalhada até demais e com bastante provisão, cobertores e mais agasalhos. Queria levar um saco de dormir mas não tínhamos um. Depois de passarmos o lago, fomos por terra. Gastamos parte da comida que trouxemos já no primeiro dia e precisamos nos abrigar em uma caverna na pedra. Não parecia ser um caminho tão longo quando olhamos do telhado. Seria uma ilusão?

— Muito frio ainda? — Eirie questionou quando me viu colocando mais uma blusa de frio. — Posso aquecer você?

— O que?

— De um jeito totalmente livre de segundas intenções.

O garoto do fogo ergueu as mãos como se atestasse a veracidade e confiabilidade de sua oferta. Dei um soco no braço dele mas cedi e comecei a retirar algumas das blusas para depois ir com ele até onde nos deitaríamos. Depois de um tempo, o calor que ele emanava era o suficiente para me fazer querer retirar o restante das peças. E de fato o fiz. Ele me encarou, alguma ideia passava por sua mente quando seus olhos ganharam um outro brilho e um sorriso malicioso se abriu em seus lábios.

— Eu sou quente demais para você?

— Eirie, não começa.

Puxei o meu cobertor e virei de costas para ele. Embora não quisesse admitir, realmente Eirie era quente o suficiente para nós dois. De um jeito totalmente livre de segundas intenções, é claro.

Atravessamos uma área cercada com placas de aviso e percorremos mais alguns quilômetros até encontrar um complexo com edifícios interligados. Eirie pareceu um pouco empertigado de início, os tons alaranjados – característicos de quando ele ficava irritado ou incomodado – voltaram a correr como chamas internas sob sua pele. Ele ficou parado e não proferiu nenhuma palavra por um tempo, mas logo assumiu outra postura.

Conseguimos nos infiltrar no edifício principal com relativa facilidade, o que era estranho. Não estava com aparência de abandonado, portanto e pela falta de segurança no local, aquilo só poderia ser uma armadilha. Mesmo assim, o garoto continuava adentrando o lugar com sangue nos olhos como se soubesse do que aquilo se tratava ou estivesse com ódio de quem poderia estar lá.

 Por dentro as instalações eram surpreendentes. Os corredores eram longos e enlouquecedoramente claros, as diversas portas que existiam se abriam por identificação de digitais e retina... dei um salto para trás acompanhado de um grito quando uma mulher azulada surgiu no ar e começou a falar em um idioma um pouco familiar para mim. Eirie se aproximou dela e respondeu. Uma tela, também com desenhos e números azulados, surgiu flutuando em pleno ar e fiquei estupefata enquanto ele agia com normalidade. A mulher tornou a dizer mais alguma coisa, ao que ele também respondeu e ela desapareceu junto com a tela.

— O que foi isso que acabou de acontecer? — Minha voz saiu trêmula.

— Já sabem que estamos aqui. Diria até que era onde queriam que estivéssemos. — Ele jogou o capuz na cabeça e subiu a balaclava.

— Quem? E como você entendia aquela... coisa?

— Estava programada para o mesmo idioma do lugar de onde venho.

— Então aquele fantasma azul era da Regência do Fogo?

Ele não teve tempo de responder. Escutamos som de passos e vozes, ao que disparamos para trás da parede a tempo de nos escondermos e ainda presenciamos uma cena suspeita. Uma mulher toda vestida de branco empurrava uma cadeira de rodas com uma criança muito magra, pálida e com a cabeça raspada como se estivesse doente. A aparência daquele pequeno era de partir o coração, mas foi o olhar triste e desesperançoso que me desmontou por completo.

Suas orelhas e nariz escorriam sangue que se destacavam como um alerta sob a fina bata branca. Seus braços tinham sinais de maus tratos. O meu instinto foi de ir até lá, derrubar aquela mulher e fugir com aquela pobre criança, mas Eirie me segurou pelo braço e repreendeu com um menear de cabeça. Havia algo ruim sendo feito ali e nós tínhamos que descobrir e acabar com o que quer que fosse aquilo. 

 Mal ela entrou com a criança em uma sala no fim do corredor e nós nos dirigimos pelo mesmo caminho de onde estariam vindo. Não havia porta por eles pudessem ter passado, somente um corredor sem saída, mas o garoto simplesmente continuou caminhando mesmo depois de eu ter parado e atravessou a parede. Fiquei boqueaberta e estendi a mão na mesma direção. As pontas dos meus dedos desapareceram no ar e depois a mão inteira. Uma parede falsa, na verdade, uma ilusão de parede que escondia uma antessala secreta que dava em uma porta metálica de uma espécie de caixa também metálica. Eirie já estava lá dentro, onde outra tela flutuante e translúcida mostrava números.

Não demorou muito para que a caixa metálica começasse a se deslocar para baixo, ao que reagi por reflexo e segurei no braço do Guer Matriz. Quando a porta tornou a abrir, dei de cara com um lugar ainda mais diferente que já tinha visto em toda a minha vida. Muito mais telas, informações destacadas com imagens de algumas crianças ao lado e um enorme esquema centralizado na instalação em formato de sequenciamento do genoma humano. Mas não havia ninguém ali além disso. Nos entreolhamos confusos. Nenhum alarme havia tocado desde que chegamos, ninguém de guarda ou naquele que parecia ser o comando do complexo. Os únicos seres humanos ali seriam aquela mulher e a criança? Não era o usual, com toda a certeza era uma armadilha.

O jovem ao meu lado foi até uma das diversas mesas, eu continuei vasculhando o perímetro. Eirie sinalizou para algo que havia achado. A projeção à sua frente mostrava uma espécie de planta do complexo e uma área que em tese não aparecia nada, como se estivesse vazia. Por algum motivo isso chamou sua atenção e novamente sem me explicar nada caminhou para a caixa metálica. Descemos um pouco mais abaixo do nível do solo e quando a porta se abriu havia outra antessala, em sua porta tinha uma logo de quatro pontas em formato losangular onde em cada uma havia símbolos elementais estampados e com os dizeres "Projeto Regenciadores".

Dessa vez a porta não era de atravessar. Mas Eirie passou um cartão na tela translúcida e do outro lado havia uma cena impactante. Agora tínhamos certeza de que naquele lugar realizavam não só algo secreto ou ilegal como também cruel. Todas as luzes se acenderam quando ele colocou os pés na sala e elas iluminaram diversas crianças, parecidas com a que vimos no corredor, preenchendo o pavilhão presas em celas de vidro mofadas e com cheiro ruim. Elas nos olharam tão assustadas que nem conseguiam se movimentar ou simplesmente não tinham força pra isso. Haviam sido abandonadas para morrer ali? Não, não teriam deixado o lugar sem levar as informações que provariam sua culpa. Afastei os pensamentos sobre isso e cheguei mais perto, muitas se afastaram – não as culpo, com certeza estavam morrendo de medo. Apenas uma garotinha esmirrada e aparentemente fraca ficou e deu um passo à frente. Ela não precisava confiar em mim, mesmo assim, tremendo como uma folha na tempestade, abriu um sorriso sincero.

— Você é um deles?

Ela apontou para a porta logo atrás de mim com a logomarca do tal Projeto Regenciadores. Então comecei a compreender o que ela queria dizer.

— Não. Mas o que está acontecendo aqui?

— Fazem experimentos?

Quando Eirie se aproximou das grades rápido demais e a garota arregalou os olhos, um garoto maior a puxou para trás de seu corpo tentando protegê-la.

— Não se aproxime deles, Queen. Quem são vocês e o que querem aqui?

— Por favor, acalmem-se. Não vamos machucá-los. Eu sou Lizlee e esse é meu amigo, Eirie.

Os murmúrios aumentaram assim como a movimentação dentro das celas. Todos pareciam arredios, um pouco desnutridos, seus lábios secos e arroxeados.

— Estão sentindo frio?

  Alguns fizeram que sim, ao passo que outros – principalmente os maiores – os repreendiam por ainda interagir conosco. Eu entendia perfeitamente que eles deveriam ter passado por muita coisa que sequer poderíamos imaginar e isso os obrigava a ser cautelosos e desconfiados de todos. Olhei para Eirie com os olhos suplicantes, não seria justo sair e deixá-los para trás para continuarem sofrendo. Ele fez que não num curto movimento de cabeça que eu ignorei. Pedi que se afastassem do vidro. Minhas mãos tremiam, talvez pela baixa temperatura ou pelo receio de feri-los ou assustá-los ainda mais. Com as mãos flamejantes derreti os vidros rapidamente e todos na primeira cela se amontoaram para ver, assim como os das demais correram para assistir e comentar o acontecimento.

  Quando me dirigi a próxima cela, Eirie segurou meu pulso e suspirou. Sua expressão era de contrariado, mas logo fui afastada e ele tomou o lugar. Meus lábios formaram um sorriso tímido em agradecimento e me encaminhei para a próxima. As celas restantes dividimos até que todas estivessem abertas e fizemos uma grande fogueira reunindo todos ao redor.

— Por que vocês estão presos aqui? O que é esse lugar? — Questionei.

Eles se olharam e murmuraram como se discutissem algo. E um dos mais velhos tomou a palavra.

— Meu nome é Kell. E como o seu amigo já observou, fazem experimentos conosco para desenvolvermos habilidades Guers.

— Mas como isso seria possível?

Eirie se inclinou sobre os joelhos como se realmente estivesse muito interessado na resposta.

— Cara, eles não nos explicam muita coisa por aqui. Só o que sabemos é que muitas crianças não suportam o procedimento e não voltam mais.

— Há quanto tempo vocês estão aqui?

— Não sabemos exatamente. Passamos muito tempo dopados. — Uma garota indagou.
 
— Mas sinto saudades de casa e da minha família... — Uma das mais novas disse chorosa, sendo abraçada pela que estava ao seu lado e falou anteriormente.

— Em quantos vocês são? — Eirie continuou interrogando com os olhos semicerrados.

— Éramos quarenta quando nos tiraram do nosso vilarejo na Zona 6.

— Só contei vinte e três, onde estão as outras?

Aquele que estava atuando como o porta voz do grupo balançou a cabeça em negação como se dissesse que não fazia ideia, mas continuou em seguida.

— Sempre tentamos proteger os menores e até nos oferecemos para ir em seus lugares, mas são esses os que eles parecem preferir. E mesmo os que voltam ficam agressivos e são trancafiados em celas especiais.

— Achamos que podem estar fazendo algum tipo de tortura com eles ou que os eliminem. — Completou um outro dos mais velhos que se apresentou como Leith.

Eirie levantou de súbito e começou a andar de um lado para o outro com braços cruzados. Com um aceno de cabeça ele me chamou para onde estava. Levantei e pedi licença para falarmos a sós, afastando-nos do grupo.

— E agora, Lizlee, o que vamos fazer?

— Temos que tirar todos daqui, não é óbvio?

Ao perceber que eu havia notado sua agitação, ele bufou e girou sobre os calcanhares me dando as costas e enfiando as mãos no cabelo. Esperei que ele resolvesse voltar o rosto para mim novamente, seu semblante era de pensativo e também de tenso.

— Você está estranho desde que encontramos esse lugar. Esqueceu que prometemos ser francos?

— Não. Eu não me esqueci, Lizlee. Só que agora isso não faz muita diferença.

— Não deve ser difícil sair. Nós entramos sem a menor resistência, não é?

— Não éramos vinte e tantos quando entramos. E eles estão muito vulneráveis para se defenderem quando formos pegos.

Quando e não se?

Interroguei com os olhos fixos em seu rosto, uma sobrancelha arqueada e agora com os braços cruzados como se isso o fosse pressionar a dizer a verdade.

— Acha mesmo que vão nos deixar sair? Você é inteligente demais para não ter notado que isso aqui nada mais é do que uma armadilha.

— Notei sim, Lorde. Mas podemos ser a única oportunidade dessas crianças de saírem daqui.

Uma voz entrecortada e baixa demais soou pouco atrás de nós dois. Ela vinha da pequena Queen. Eles conseguiram nos ouvir o tempo todo de onde estavam?

— Tudo bem se ficarem com medo e forem embora. Eu também ficaria assim se estivesse no lugar de vocês.

— Não é novidade para nós. Já nos prometeram ajuda antes e aqui estamos.

— O que quer dizer com isso?

Enquanto eu olhava para Queen vendo seus olhos lacrimejarem Kell prosseguiu.

— Quando a doutora Charper viu como éramos tratados e os efeitos dos procedimentos em nós, ela prometeu que nos ajudaria. Sim, ela é a única que tenta aliviar nossa condição aqui mas nunca conseguiu nos ajudar além disso. Ninguém mais se preocupa se vivemos ou se morremos.

Uma espécie de aviso soou e fiquei sobressaltada de susto balançando a cabeça de um lado para o outro. Demorei um pouco para perceber que todos começaram a correr. Não me parecia ser algo bom. Leith gritou para nós enquanto eu observava perplexa a aura alterada que pairava ali.

— Se escondam, rápido! O Major Erickson está vindo!

Gretha e Jess chamaram nossa atenção para um esconderijo atrás de caixas de madeira empilhadas ao lado das últimas celas do complexo na parede oposta à porta. Nos escondemos lá e ficamos pacientemente esperando descobrir quem estava por trás disso tudo. Olhos e ouvidos atentos forçando um pouco a atenção sob a precária iluminação daquela parte e a distância entre nós e o homem que chegava. Com seu uniforme aparentemente militar e a pose autoritária, surgiu no recinto carregando uma prancheta.

Seus passos eram atormentadores, lentamente calculados. Ele lançou mão de uma lanterna e começou a iluminar os rostos aflitos das crianças que olhavam para o chão com medo. Por um instante pensei que ele estivesse farejando nosso cheiro, porém depois que passeou pelo corredor até o fim – onde ficavam as caixas que nos serviam como esconderijo – acabou parando e girando bem devagar na nossa direção só que olhando para o outro lado. Prendi a respiração, meu coração errou uma batida. Eirie tampou minha boca com a mão firme. O homem dirigiu-se para os meninos e então pude perceber o quanto meu coração saltava alto no peito. 

— Todos em formação!

A voz dele era imponente e áspera. Todos se colocaram de pé, em postura e controlando-se para não tremer ou soar amedrontados. Alguns que não conseguiam manter a cabeça erguida olhando para a frente eram os principais alvos. O homem puxou o cassetete e ameaçou bater fazendo com que esses mais assustados saltassem para longe enquanto ele gargalhava alto.

— Escutem agora. — O tom de risada diabólica desaparecera de todo. — No sábado, receberemos uma visita muito especial com uma demonstração dos resultados do nosso trabalho e por isso a doutora Charper virá repassar o protocolo que vocês, meus ratinhos, deverão seguir na ocasião. Obviamente, não preciso lembrar o que acontece com quem não andar na linha.

Durante a pausa que ele fez, observei o quão doentio era seu sorriso por ameaçar aquelas crianças. Eirie ainda tampava minha boca e me segurava para não correr até aquele desgraçado e acabar com ele.

— Além disso, o nosso sistema de segurança está com falhas devido alguns ajustes, por isso estou aqui e irei fazer a contagem manualmente.

Ao ouvir seus nomes na chamada, cada uma das crianças se aproximava com o braço estendido, falava sua numeração e recebia alguma coisa no pulso para em seguida voltar para seu lugar de forma organizada e silenciosa. Quando o homem chamava um nome e ninguém respondia ele abria mais os lábios em seu sorriso maléfico, riscava na lista e seguia adiante.

— Silk Tlisthe! Sthan Pedersdotter! Trent Arriens! Violet Kolgrim! Wes Zdunk! Zorr Zivar!.

A cada nome gritado e riscado da lista meu coração se apertava mais. Muitas baixas. Depois disso o homem avisou que esta semana eles se alimentariam bem e que era importante mostrarem suas caras mais felizes para os mantenedores do projeto. Seria um belo dia para arrebentar os monstros responsáveis por aquela atrocidade. Meus dentes rangiam só de pensar na possibilidade. Quando ele estava saindo, pregou um papel na porta. Me recostei na parede e respirei quando Eirie tirou a mão da minha boca. Nos certificamos dele ter saído e fomos ver. Eram dados como nomes, idade, data de chegada – e em alguns casos, de óbito – e numeração de cada uma das cobaias.

— Lizlee, ele disse que haverá uma demonstração dos resultados dos experimentos aos financiadores do Projeto Regenciadores.

— Sim, eu também ouvi isso. Mas o que tem?

— Então e se as celas especiais não forem para tortura e sim para conter recém-criados?

Nesse ponto ele baixou o tom e começou a sussurrar. Prensei os lábios com força, um hábito involuntário. Teríamos então mais crianças para libertar e mais trabalho para descobrir onde estariam. Desviei meus olhos dele para a lista, mesmo assim conseguia sentir que ele ainda me observava. Esperava que eu sugerisse algo, um plano talvez. O problema é que eu esperava que ele fizesse o mesmo.

— Alguém está tentando criar novos Guers-Matriz. O que farão conosco depois disso?

— Eirie, isto não é sobre nós. Esse projeto tem que ter um fim antes que mais crianças sejam retiradas de suas famílias para morrer.

— Lizlee, eu sei que você só quer ajudar. Mas lembre-se do risco a que estaremos expostos.

— Não mais do que ao que sempre estivemos.

Rebati o Guer-Matriz ficando um pouco irritada por ele só estar pensando em si mesmo e em sua própria segurança de novo.

— Quantas vezes eu vou ter que repetir para você usar o seu lado racional?

— Eirie, você nunca deixará de ser um egoísta? Contanto que esteja em segurança, quem se importa com o que vai acontecer com os demais, não é?

O garoto levou as mãos ao rosto e o escondeu balançando de um lado para o outro. Cruzei os braços e fechei a cara. Precisava pensar em um plano, não tinha tempo para discussão. 

— Sabe o quanto vai se culpar quando eles morrerem?

— Não, Eirie, mas sei o quanto vou me culpar por não fizer nada. Você pode ir embora, se quiser. Eu assumo daqui.

Dei as costas antes de terminar de falar e saí pelo corredor percorrendo-o todo, as crianças me observaram parada em frente a porta pensando em como abri-la. Senti alguém se aproximar de mim e sem olhar distingui a aura dele.

— Você é muito teimosa, sabia? — O garoto do fogo observou.

— Não seria uma surpresa para você.

Havia um aviso de perigo e solicitava uma senha de autorização para abrir. Do lado de fora de uma das paredes laterais, ouvimos um grito desesperado que nitidamente parecia abafado. Tinha mais alguém com a garota que emitira o pedido de socorro, alguém que ela não queria que estivesse. Encostei meu ouvido no metal e me atentei ao som sem poder sair dali para ajudar a garota.

Eirie pediu que eu me afastasse e o observei tocar a parede com as mãos espalmadas contra ele. Seus dedos tremiam pelo esforço – talvez fosse muito denso – e ela começou a amassar, seu corpo passou a propagar também ondas de calor em direção à parede. Não demorou muito até escutar o ruído do metal estalando e rachando para depois revelar outra parede mais próxima, como um túnel afunilado. Puxei as mangas, juntei as mãos e meus braços se transformaram em chamas. Depositei todo o calor no centro e em questão de minutos, senti o metal derretendo e abrindo um vão totalmente disforme. Enquanto isso, Eirie arrancava e retorcia o aço como se fossem folhas de papel.

Ele bufou e exclamou "Você sempre me vence mesmo" e depois, gesticulando com a mão, abriu o caminho para que eu pudesse terminar o trabalho. Finalizei a última das paredes girando e expandindo uma bola de fogo que acabou explodindo e levando tudo pelos ares. Saltamos pelo buraco que acabara de abrir e encontramos Major Erickson no fim do corredor. Rapidamente ele largou a garota – sobre quem projetava seu corpo – e retirou a arma do coldre, apontando-a para nós. A garota caiu no chão arrastando-se até o canto e encolhendo-se. Ela chorava e tremia compulsivamente.

— Fiquem onde estão, seus invasores!

Eirie levantou as mãos e caminhou devagar em direção ao homem.

— Deixe a moça ir.

— Esta? — Ele apontou a arma para a cabeça da garota e ela deu um grito. — Ou esta? — Virou o cano para a minha direção.

Major Erickson escarneceu e, pela hesitação de Eirie, voltou a se ocupar da garota tão leve por não se alimentar corretamente e a ergueu do chão fazendo-a refém. Logo era ela que estava com uma arma novamente apontada para a cabeça e seus gritos foram se arrastando e se dissipando pelos corredores. Eirie repetiu calmamente para o homem.

— Abaixe essa arma e liberte a garota.

— E perder meus últimos momentos com ela?

O homem a apertou mais contra si e lambeu sua bochecha de uma forma tão sinistra que fez meu estômago revirar. As lágrimas rolavam no rosto jovem e marcado de tristeza daquela garota. Eirie fez um movimento para frente que denunciava que ia atacar, mas toquei seu ombro tensionado e o fiz retornar. Meus olhos transmitiam uma mensagem que, me conhecendo minimamente, ele entendeu. Eu não recuaria em hipótese alguma, apenas mudara a estratégia.

— Sua garota é esperta.

— Ela não é minha garota, assim como esta aí não é a sua.

Os punhos de Eirie se cerraram e então soube que ele não seguraria por mais tempo. Não era a primeira vez que o via perder a paciência dessa forma.

— Então creio que não se importaria se eu, de fato, atirasse nela?

O Major Erickson engatilhou a arma e a apontou para mim. Prendi a respiração, no entanto, confiava que Eirie o impediria. Então ergui a cabeça e mantive a postura. Não olhei para ele, no entanto, a sensação térmica tinha aumentado bastante. Ele lutava para se controlar. O som do gatilho sendo apertado e do estouro do projétil percorreram o ar. A garota no chão, gritou e tampou as orelhas. Meu coração estava tão acelerado e descompassado que as batidas soavam muito altas. Ou aquele era o som da bala cortando o ar e vindo direto em minha direção. Eu não sabia dizer.

Fechei os olhos e esperei a luz do paraíso. Nada veio. Mas quanto tempo uma bala demora para atingir seu alvo? Quando arranjei coragem para lentamente abrir os olhos, vi um projétil pairando poucos centímetros a frente da minha cabeça. Em um movimento ligeiro e calculado, Eirie me salvara e teatralmente apontava o dedo indicador e o anelar como uma arma mirando o homem.

— E que tal, se eu atirasse em você? 

Balancei a cabeça em negação. Ele estava sério e convicto quando mandou a bala de volta e atingiu o Major no ombro. O homem soltou um grito de dor e tombou para trás. A arma caiu no chão e deslizou até os pés da jovem franzina. Ela, por sua vez, caiu em cima do objeto e o segurou sem jeito. Suas mãos tremiam e ela ainda soluçava de tanto chorar.

— Honn, minha querida. Me entregue a arma.

Ela olhou para o objeto em suas mãos. O militar resmungava de dor, segurando o buraco no ombro que jorrava sangue. Então ela ergueu a arma para ele que ficou impactado com a reação.

— Você me destruiu. Você acabou comigo.

O choro dela era de causar um nó na garganta. Seus lábios repuxavam e saltavam em espasmos. Seu nariz escorria água e esta acabava se misturando às suas lágrimas. Ela secou tudo na manga do uniforme, sem deixar de apontar a arma para ele um só segundo. Estava absolutamente transtornada.

— Seu ser insignificante! — Ele cuspiu na direção dela. — Você deveria me agradecer por ter te notado.

— Eu preferia que nunca tivesse cruzado o meu caminho. Eu quero que queime no inferno!

As palavras dela eram de total desprezo e ao mesmo tempo traziam um profundo sofrimento. O que ela deveria ter passado nas mãos daquele homem desprezível? Só de imaginar me fazia ferver o sangue e desejar seu fim da forma mais lenta e dolorosa. Diversas vezes e em variados lugares ela atirou. Na mesma hora, as sirenes dispararam pela primeira vez desde que entramos naquele lugar. O guardas foram acionados e nos preparamos para lutar. Me aproximei da garota e a levantei do chão, obrigando-a a olhar em meus olhos.

— Temos que sair daqui. Consegue nos dizer onde é a saída?

— A única maneira de sair daqui é em um caixão. — Sua voz saiu fraca.

— Vocês duas, fujam rápido! Eu dou cobertura.

— Não. Não vou deixar você para trás.

Encarei o garoto e ele manteve o olhar no meu por alguns instantes, antes de ouvirmos uma voz gritar do meio dos guardas.

— Afastem-se! Não atirem! Eu preciso do garoto vivo.

 A garota me puxou e então fugimos pelo outro corredor enquanto Eirie baixava a guarda. Não consegui ver com quem ele falava mas ouvia sua voz se referindo como se conhecesse aquele que havia chegado.

— Conselheiro Baldwin, o que faz aqui?

No instante seguinte, minha visão foi privada de luz quando alguém colocou um saco na minha cabeça e me puxou para trás. Me senti ser arrastada. A jovem pedia para que eu ficasse em silêncio. Depois de alguns minutos quando as vozes sumiram e tudo voltou a ficar calmo e silencioso, a garota tirou o saco da minha cabeça com uma mão enquanto levantou uma lanterna na outra e iluminou meu rosto.

— Tudo bem com você?

Não me atrevi a dizer nada. A garota estendeu a mão e com um pouco de dificuldade me puxou do chão. A porta atrás dela se abriu e revelou um pouco da luz que vinha lá de fora destacando uma silhueta feminina. Formei um escudo de terra e puxei Honn para mim mantendo-a comigo atrás dele.

— Não se aproxime. — Exclamei. — Eu estou falando sério.

  A porta se fechou e tudo escureceu novamente. Quando a luz tornou a se acender, precisei esfregar os olhos frente a tamanha perplexidade. A moça misteriosa dos meus pesadelos estava lá. Ela era real. O impacto daquela visão e daquela compreensão inesperada me deixou paralisada. Acabei apagando.

                                 

 
  Acordei e andei até a porta da sala onde me encontrava. O ar ali era sufocante, além de uma fumaça esquisita tomar conta de tudo. A fumaça escoou devagar e abriu caminho até algo parecido com um tubo enorme cheio de um líquido verde e espesso. Me aproximei dele e o toquei, estava muito quente. Dei a volta até o outro lado e consegui ver algo se remexendo dentro do tubo. O espanto tomou conta de mim quando avistei Eirie preso lá dentro. Ele surgiu entre o líquido e se debateu desesperado contra o vidro. Gritei por socorro e fui me afastando dele e do tubo até dar de costas com uma superfície dura. Quando virei, as luzes pisaram, tudo ao meu redor ficou verde e eu estava também presa em um tubo.

  Acordei sufocando e chamando por Eirie ao lembrar do que havia acontecido antes de eu desmaiar e levantei em um ímpeto, sendo impedida pela mulher misteriosa – finalmente nem tão misteriosa assim.

— Acalme-se, mocinha.

Sua voz saiu um pouco firme, mas o sorriso não a deixava parecer rude. A afastei de mim, retomando o fôlego.

— Quem é você? Onde estou?

— Eu sou Adelia, mas por aqui todos me conhecem como doutora Charper. E estamos em uma sala segura.

A jovem estava sentada perto da porta, vigiando. Abaixo da linha de seus olhos haviam olheiras escuras e profundas. A mulher percebeu que eu observava a menina para evitar contato com ela.

— Lizlee, não podemos ficar aqui por muito tempo.

— Como sabe meu nome? Como entra nos meus sonhos? O que está acontecendo aqui?

Sentei na beira da cama e tentei alcançar o chão com os pés. Adelia me segurou.

— Eu posso responder todas as suas perguntas. Depois que sairmos daqui.

— Eu não vou a lugar nenhum com você.

Ela puxou uma cadeira para ela e estendeu a mão me mostrando a cama para que eu voltasse a me sentar. Não sentei. Ela deu de ombros e se sentou.

— Gostaria de tirar as crianças daqui, certo?

— É o que planejamos no momento. 

— Vou ajudar você a entrar no sistema. Mas precisa me prometer uma coisa?
 
Olhei para a porta e vi a garota de novo o que foi um gatilho para eu lembrar dos demais. Não era hora de dispensar ajuda.

— Diga o que quer.

— Depois que todos estiverem seguros, você vem comigo.

— Por que eu deveria acreditar que cumpriria a sua parte?

Depois de um breve silêncio ela suspirou, levantou da cadeira e veio até mim. Seus olhos me examinavam de cima para baixo.

— Algo em você me lembra muito a sua mãe.

Sua voz soava aveludada, mas não impediu o misto de confusão e incredulidade que se apoderou de mim.

— Está mentindo. Você não conheceu a minha mãe.

— Na verdade, éramos grandes amigas. Posso contar tudo que quiser saber se vier comigo.

Meu lado racional dizia para não ir. Em contrapartida, eu sempre escutava o meu coração, como Eirie sempre dizia para eu não fazer. Os olhos dela brilharam quando fiz que sim com a cabeça. Em seguida, dirigiu-se até a parede, retirou um quadro e destravou uma placa e uma porta secreta se abriu. Relutei em entrar, mas depois vi que era apenas outra caixa metálica. A garota ainda nos acompanhava mas todo o tempo se manteve calada. Quando a caixa finalmente parou, Adelia me olhou e interrogou.

— Está pronta?

 

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