Capítulo XXIII -
Não havia imaginado que a consciência dos meus atos me atacasse com tanta rapidez. Comecei a me sentir incomodada comigo mesma e suja pela sensação de prazer e da adrenalina que se apossou de mim por estar cometendo um crime. Deixei de lado aquele vestido, os coturnos de segunda mão já gastos de tanto os usar, e a capa azul esverdeada que me protegia muito bem do frio que fazia lá fora.
Joguei tudo de qualquer forma pelo quarto, desesperada por me livrar daquele sentimento de impureza que eu julgava estar impregnado nas vestimentas – ledo engano – e me encaminhei para o banho. O chuveiro não aquecia corretamente, então tive de tentar fazer por mim mesma. Flashes dos últimos acontecimentos bombardeavam minha memória, punindo meu senso de moralidade, mas eram aplacados por vislumbres dos momentos que passei com Eirie na Greenland – o grande mercado onde passamos o resto do tempo depois dos furtos. Quando foi que Eirie passou a ter tanto espaço na minha mente?
— Ai! — Exclamei quando senti a alta temperatura da água que eu nem havia percebido ter esquentado tanto. Assoprei e só então constatei que não havia levado sequer uma toalha para o banheiro. — Ótimo, agora mais essa!
Reclamei em voz alta, mesmo só estando eu ali. Voltei e peguei uma blusa comum e uma calça de um tecido muito confortável, quente e menos pesado. Depois de tanto tempo utilizando as vestimentas lanovienses que me incomodavam bastante e tiravam qualquer liberdade de movimento, eu finalmente tinha um tempo para me sentir eu mesma novamente.
Saí andando pelo corredor mal iluminado em direção ao quarto de Eirie – por que definitivamente eu não ficaria sem tomar meu banho. Meus passos provocavam ruídos na madeira antiga do assoalho e este era o único som que eu podia captar. Achei aquilo estranho mas continuei. Quando cheguei na porta, que estava entreaberta e a empurrei levemente.
O garoto estava sentado no chão encostado na parede oposta. A cabeça baixa, o corpo meio caído e rosto pálido brilhando com gotas de suor que se destacavam à uma meia luz que a própria chama criada por ele produzia. À medida em que adentrei o cômodo com poucos móveis dispostos em seu interior e apertei o interruptor, notei que Eirie se sobressaltou e arregalou os olhos para em seguida rapidamente consertar a postura e respirar aliviado ao me ver ali. Reparei também que em sua mão haviam panos escurecidos por... o que era aquilo? Sangue? Tão logo constatei, corri até ele me ajoelhando ao seu lado.
— Mas... mas o que aconteceu?
Ele deu uma risada curta e forçada seguida de uma tosse, como se zombasse de si mesmo para esquecer a dor que estava sentindo.
— Bem, eu devo ter esquecido de tirar as lâminas antes de sair rolando em cima dos prédios. Nada demais, só alguns cortes.
— Deixa eu ver isso.
— Não precisa. Eu dou conta sozinho. — Ele segurou minha mão, impedindo que eu completasse o movimento de tocar sua pele. — Você queria alguma coisa?
— Você teria toalhas sobrando?
— Pode procurar no buraco negro. — Olhei para ele com expressão interrogativa. — Quero dizer, na bolsa mágica.
Procurei entre todos os demais itens que havíamos adquirido na Greenland e encontrei as toalhas novas, extremamente brancas e macias. Já estava saindo do quarto e encostando a porta quando uma sensação estranha me abateu. Algo estava realmente errado.
— Eirie, eu tenho a impressão que... — Comecei a falar, mas parei depois de girar os calcanhares e encontrar expostos os ferimentos que antes ele havia tentado esconder de mim. — Nada demais, não é?
Ele sorria amarelo. Tomei o pano de sua mão e dei uma olhada. Não era nada muito grave, eram apenas alguns cortes pouco ou medianamente profundos.
— Você sabe mesmo o que está fazendo?
— O meu tio James é médico.
— Eu tenho certeza que isso não é o tipo de coisa que se transmita através da genética.
— Está com medinho? — Zombei ao notar uma pontinha de insegurança, me dirigindo a ele como se falasse com um bebê. — Não se preocupe, muitas criancinhas da sua idade tem medo de ir ao médico.
— Nossa, mas como é engraçada! Então vai, olhe os ferimentos, doutora Desastre.
Balancei a cabeça com um sorriso no rosto e o ajudei a retirar sua camisa já com uma boa porção de sangue se destacando mesmo sob o tecido escuro. Tomei de suas mãos as toalhas e consegui umedecê-las fazendo a água jorrar por minha pele. Os feixes da substância cristalina escorreram livres e foram se agrupar em minhas mãos.
— Você está ficando boa nisso. Andou treinando?
— Eu li nos livros algumas técnicas básicas. Aparentemente isso é o que qualquer Guer manipulador de água saberia fazer antes dos dez anos de idade. — Respondi enquanto me esforçava em manter a concentração dividida. — Você tem kit de primeiros socorros aqui?
— Não. Nem pensei em comprar isso.
O encarei um pouco confusa. Um kit de primeiros socorros deveria ser item básico em qualquer residência ou pelo menos era o que eu achava. Relevei, imaginando que Eirie sequer fizesse ideia de onde vinha tudo o que ele teve durante toda a sua vida, tendo o que quisesse na mão simplesmente por ser importante para seu povo. Na verdade, eu era uma hipócrita por pensar assim, já que o mesmo havia ocorrido comigo a vida inteira. Estendi as duas mãos sobre a pele do garoto ferido e fiz um leve movimento que a massa de água seguiu com naturalidade, como se simplesmente soubesse o que tinha que fazer. Tentei fingir que não percebi o olhar de Eirie para mim enquanto eu fazia a higienização do local e segui em silêncio.
Não parei um instante para observá-lo, mas de soslaio consegui perceber que havia uma coisa nova em seu olhar, uma certa vulnerabilidade. Me inclinei sobre ele para alcançar um outro ferimento em seu ombro, estranhei que uma lâmina estivesse escondida ali naquela região e o ferimento era maior e mais profundo do que os demais. Precisei de mais água e cuidado para manusear o tecido contra o corte. Eirie não esboçava nada, nem a dor que em tese deveria estar sentindo. O calor excessivo que seu corpo produzia fazia o vapor subir lentamente em contato com a água pura que eu manipulava sob sua pele clara marcada de vermelho.
— Afinal, quantas lâminas você esconde na sua roupa quando sai de casa?
Levantei e esperei que ele fizesse o mesmo, o que não aconteceu. Ele abanou com uma das mãos como se me dispensasse, porém me olhou de um jeito estranho com uma careta. Tornei a desconfiar que havia algo de errado.
— Pode ir, eu vou depois.
— Eirie, não tente me enrolar. O que está acontecendo?
Eirie pareceu cansado por um momento e suspirando puxou a perna da calça na altura do tornozelo esquerdo, deixando que eu visse o ferimento que ele continha. Este, por sua vez, era maior e bem mais profundo do que os outros. Descia desde a parte externa e superior da panturrilha percorrendo vários centímetros até a parte inferior. Seja lá o que tenha acontecido, fora covardemente executado, pois o pegaram pelas costas. E parecia infeccionado.
— Eu não quis te preocupar com isso. Alguém me acertou uma facada.
— Como assim alguém? Quando foi isso?
Ele deu de ombros e a minha desconfiança só aumentou. Essa história estava muito mal contada.
— Um morador de rua, não sei, não faço ideia. Aconteceu quando estávamos na Greenland. Você estava tão fascinada com o mercado e todo o resto que eu não quis atrapalhar...
— Espera aí, deixa eu ver se entendi bem. Você queria roubar de um morador de rua?
— Ele é quem queria me roubar.
O garoto usou um tom de inconformado e eu só levantei uma sobrancelha, seguida de um "uhum". E pela primeira vez ele acabou fazendo uma careta quando encostei no corte.
— Quem fez isso deve ter usado uma faca enferrujada. — Observei bem a carne pulsante misturando-se ao sangue seco e sinais de infecção. — É um verdadeiro milagre não estar pior. Você deveria ter me contado sobre isso antes.
— Está tão ruim assim?
— Está com uma aparência bastante... agradável.
Depois de um instante tentando segurar a ânsia de vômito, dei uma risada nervosa em uma tentativa frustrada de descontrair aquela tensão. Mas o garoto do fogo me encarou bem sério. Ajudei-o a levantar e seguir até a cama, mas ele preferiu ficar em pé mesmo – era um teimoso.
— Acho que era uma adaga enfeitiçada. Os ferimentos teriam se curado sozinhos.
Disse enquanto começava a baixar sua calça, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Ou será que era e só eu não sabia? Virei o rosto para o outro lado com um pouco de vergonha, quando...
— Espera, você disse "se curado sozinhos"? Não está zombando de mim como quando disse que podíamos voar?
— Não! Dessa vez eu não estou mentindo. Vai me dizer que nunca percebeu sua habilidade de autocura? Esse é o motivo de eu não ter um kit de primeiros socorros, nunca precisei antes e nunca achei que fosse precisar algum dia.
Voltei a ficar confusa por um momento, porém com uma ideia que me ocorreu naquele instante. Será que Maya e Mestre Pi que eram tão conhecedores da história Guer não sabiam dessa habilidade Guer-Matriz quando me deram o chá para acelerar minha cicatrização e me fazer sentir melhor?
— E se eu conseguisse encontrar folhas de Chwikssa e fizesse um chá para você? — Arrisquei.
— O que? Como uma planta que serve para deixar a mente mais sugestionável poderia me ajudar com esse machucado?
Sugestionável? Não, não era possível que eles tivessem essa intenção. Não, eles foram bons comigo e me incentivaram a aceitar minha missão. Afastei a ideia rapidamente e me esforcei em continuar focada no que fazia na pele infeccionada dele. Com o mesmo procedimento de antes, usei a água para o ferimento, sequei novamente como com os demais. Não tendo os itens, medicamentos ou instrumentos de primeiros socorros ideais, não havia como fazer uma sutura para aquela lesão e isso me preocupava, uma vez que o ferimento ficaria exposto à bactérias. Esperava que em algum momento o próprio corpo dele se restaurasse com a autocura.
Mais tarde, fiz minha cama no quarto de Eirie e passei uma boa parte da noite tentando descobrir se o fato de estar quase em chamas era por estar com febre ou se aquela era a temperatura normal do corpo dele. De vez em quando sua pele tomava um tom vermelho alaranjado que me assustava, tinha a impressão que a qualquer momento ele iria virar lava. As horas avançavam, os lençóis e travesseiros se encharcavam com o seu suor, a febre insistia em aumentar.
— Eirie, você está... está quase pegando fogo.
— É, eu sei. — Ele rebateu e as palavras saíram roucas e arrastadas.— Também me sinto assim por dentro.
— Se existir alguma outra forma de ativar sua autocura, me ensine.
— Talvez... — Sua voz soou fraca e entrecortada por tosses. — talvez a gente possa tentar conectar nossas matrizes. Como quando eu tentei reativar sua autocura contra o veneno da Flecha Dourada.
— Lógico, você tem razão. Pode dar certo. Então me diga o que fazer.
— Coloque uma mão na minha testa e outra no meu peito. Esvazie sua mente. Rompa qualquer bloqueio que possa impedir. E simplesmente deixe sua energia matricial se transferir para a minha Matriz.
— Mas e se eu piorar...
— Eu confio em você. — Eirie me interrompeu pegando uma de minhas mãos e segurando acima do seu coração. — Apenas siga o som da energia fluindo.
Fiz como ele havia instruído os demais passos. Ironicamente a parte mais difícil acabou sendo a de esvaziar a mente e romper os bloqueios. Já a sensação de deixar minha energia fluir para Eirie foi estranha no início mas ao mesmo tempo familiar, reconfortante. Eu sentia como se correntes elétricas explodissem dentro de mim e percorressem as minhas veias indo ao seu encontro.
Quando terminei senti uma tontura e uma estranheza com meu próprio corpo mas o garoto do fogo me explicou que isso era normal na primeira vez que se experimentava uma transferência energética. Eu olhei seus ferimentos e ainda estavam lá, mas o cansaço me venceu e dormi ali no pé da cama de Eirie.
Ao amanhecer, até me assustei ao acordar e ver que o garoto, já bem recomposto, parecia milagrosamente melhor ou simplesmente mentia muito bem para tamanha disposição que demonstrava e até disse que estava reestabelecido o suficiente para começar a treinar.
Em alguns minutos, me aprontei e tomei café da manhã. Encontrei Eirie do lado de fora perto do lago entretido olhando a camada de gelo fino que se formava ali. Tentei me aproximar devagar mas acabei dando um pequeno escorregão, ao que ele mesmo reagiu com agilidade e por reflexo me segurou em seus braços.
— Lady Desastre sendo Lady Desastre. — Ele riu enquanto terminava de me estabilizar no chão.
— "Nossa, mas como é engraçado!" — O parafraseei fingindo imitar a voz dele e o garoto riu ainda mais. — Você está realmente melhor? Talvez queira tirar mais um tempo para se recuperar.
— Não era você quem queria começar a treinar?
— Sim, mas...
— Então vamos! — Ele me puxou pela mão.
Eirie me explicou que estávamos sem muito tempo para as bases teóricas então eu deveria aprender na prática mesmo. Ele me mostrava com os seus poderes enquanto explicava. Os elementos não eram apenas uma extensão de mim, eles faziam parte de mim e eu deles. Éramos um só. Por isso meus instintos acionavam os poderes, como forma de proteção e meus medos e inseguranças os bloqueavam. Eu poderia fazer um infinidade de coisas com os elementos em mãos. Mas eu precisava ser capaz de suportar a pressão de concentrar o núcleo de energia de um elemento manipulado, pois assim tornaria minha manipulação estável e forte.
— Sempre quando for invocar e materializar um elemento, perceba a existência do núcleo em seu interior e que ele quem comanda toda a sua substância matricial como em um campo eletromagnético, fazendo com que ela ganhe forma através de um elemento. Sem concentrar a substância em torno desse núcleo, todas as suas células matriz ficam flutuando avulsas e por isso a perda do controle e da estabilidade.
Como sendo este o princípio, nosso primeiro dia se foi buscando desenvolver estabilidade. Criava pequena esferas elementais que precisava fortificar e impedir que se dissipassem com facilidade. O ar para mim foi o elemento mais difícil. Como conter uma substância tão livre? E naturalmente a mais fácil foi a terra. Então Eirie tentou me mostrar que, independente do elemento, todos podem se tornar destrutivos se não utilizados com equilíbrio e controle, exemplificando com fenômenos da natureza que nós Guers Matriz poderíamos recriar como os incêndios, os terremotos, os tsunamis e os furacões. E complementou, lembrando que a partir do momento que não conseguíamos mais manter o controle a própria matriz o assumia e geralmente ela não tinha muitos freios morais.
De uma pequena esfera elemental aprendi a duplicar e criar esferas cada vez maiores. Estávamos tentando controlar e ajustar a intensidade e precisão de alguns golpes executados quando Eirie decidiu que era hora de descansar. Pensei em reclamar e pedir para continuar, no entanto, meu corpo também estava bem cansado. Canalizar energia matricial poderia ser bem exaustivo, mesmo que já tivéssemos feito uma pausa razoavelmente longa para o almoço. Ao contrário de mim, ele não parecia nenhum pouco cansado. O acompanhei com os olhos caminhar para próximo do lago congelado novamente.
— Está tudo bem? — Me aproximei dele e sem escorregar dessa vez.
— Claro. Mas não consigo parar de pensar no que Alexandra queria me dizer quando escolheu essa casa para nós.
— Acho que quis dizer que não queria que morássemos em galerias subterrâneas para o resto da vida.
O notei abaixar a cabeça, rir da minha conclusão e depois tornar a ficar sério, poderia até dizer que o seu olhar estava um pouco entristecido.
— Quando eu era criança, tínhamos uma casa assim de frente para um lago. Não consigo me lembrar de já ter me sentido seguro ou feliz em outro lugar.
— Então talvez seja isso que ela queria te dizer. Você precisa voltar a se sentir assim.
Depois de alguns minutos apreciando o silêncio e a beleza melancólica da paisagem congelada ao redor, decidi entrar e deixá-lo refletir sozinho.
— Vou entrar e descobrir se tem algo que eu saiba cozinhar sem colocar fogo na casa.
— Espera! — Me surpreendi com sua reação ao segurar em meu pulso e principalmente por, pela primeira vez, seu toque não ser incomodantemente quente. — Obrigado pelo que fez por mim essa noite. Salvou a minha vida.
— Já fez o mesmo por mim, lembra? — O garoto me olhava tão fixamente que me fez sentir desconfortável. — Afinal de contas, também não foi a primeira vez que te salvei...
— Cite uma dessas vezes? Ei, volta aqui.
Dei as costas para ele e saí me fazendo de desentendida, o deixando com uma expressão de incredulidade e sem resposta.
Com a rotina de treinamento de que passamos a assumir eu passei a aprender como absorver os ataques e redirecioná-los, como produzir escudos de proteção, conseguir atingir uma boa velocidade na transição de elementos – especialmente entre os de oposição – e os princípios de coordenação para que eu conseguisse manipular mais de um elemento simultaneamente, o que considerava ser o mais difícil.
Havia ainda a questão de aperfeiçoar a estabilidade e a precisão. Isso sem falar das outras habilidades que eu tinha que desenvolver para caso fosse, por algum motivo, impossibilitada de utilizar os poderes, estas envolviam equilíbrio postural e mental, agilidade, destreza, estratégia e tomada de decisão, até mesmo raciocínio lógico e em algum momento, quando eu deixasse de fazer "corpo mole" como Eirie descreveu, teria de aprender técnicas de combate corpo a corpo e com armas.
Durante as horas de treinamento eu tinha algo em que me concentrar e afastar os pensamentos, o que entretanto mudava completamente durante a noite. Naquelas horas, digamos, ociosas eu ficava imaginando milhares de probabilidades de fins para essa história. Pensava se Moggie, tio James, Cavanaugh, Maya e Peter estariam bem. Pensava em Philip indo para a batalha no Forte Dourado com os soldados da Primeira Regência. Pensava na dor do simples fato de sentir medo de perdê-los. Não importava se durante o dia eu era golpeada, humilhada e jogada ao chão vez após vez, sendo obrigada a recomeçar tudo de novo, para mim, as mais terríveis horas do dia eram as últimas. Aquelas em que eu ficava pensando nas minhas responsabilidades e com o que estaria acontecendo com o resto do mundo enquanto estávamos isolados para descobrir meu potencial e como utilizá-lo.
Uma vez por semana Alexandra vinha nos visitar. Sem que Eirie soubesse, pedi que a feiticeira me ajudasse a esvaziar a mente e tirasse a pressão interna que me apertava o peito. Aquelas palavras que Alexandra repetia sussurradamente em todas as visitas eram milagrosas. Eu não sabia o que significavam mas me purificavam. Mas isso não adiantava de todo uma vez que, de uma maneira assustadoramente contraditória ao que eu acreditava e defendia, eu me sentia bem e confortável em sair algumas vezes com Eirie para cometermos furtos. Talvez os furtos servissem como uma válvula de escape quando eu não tinha o feitiço de Alexandra para me fazer sentir outra coisa que não aquela angústia. Talvez, em ambos os casos, eu só estivesse buscando uma saída fácil.
Ao fim de um mês e meio que havíamos chegado em Lanóvia, Phil já nos enviava menos cartas e elas ficavam cada vez mais curtas. Eu devia ter paciência, os soldados do Regente do fogo estavam se preparando para a invasão do Forte Dourado. O Conselho dos Nobres da Regência entrou em consenso sobre uma estratégia, mas havia outra estratégia secreta a qual apenas o Conselho íntimo do Regente teria acesso. Eirie desconfiou disso e ressaltou que este era um indício de que eles desconfiavam de algum vazamento ou de um infiltrado entre os nobres. Eu particularmente, teorizava a existência de uma rede de espionagem infiltrada por todos os lados e que reportava as informações a alguém. Decerto Philip estava tendo muito trabalho e consequentemente menos tempo para nos contar as novidades, mas estava bem e isso já me deixava mais aliviada.
Os dias iam se passando e comecei a sentir a necessidade de aumentar a dificuldade do treinamento. No entanto, Eirie não parecia me considerar preparada. Ele era a única pessoa na face da Terra com poder equivalente ao meu e se negava a lutar comigo. Era ridículo. Eu queria, eu precisava avançar. Embora nossa relação tivesse melhorado bastante e nos entendêssemos melhor do que nunca, apesar de algumas atitudes de Eirie que me irritavam, a hesitação dele fazia parecer que ele ainda duvidava da minha capacidade.
Tentei ficar indiferente, mas as coisas começaram a desandar novamente. Eu não precisava da aprovação dele. Afinal o nível que ele passou anos para alcançar, eu poderia atingir em meses. Aquela situação estava me deixando levemente pilhada e naquela semana eu estava chegando ao limite. Andava mau humorada e perdendo a paciência com facilidade, nada que eu fazia dava certo e Eirie me pressionava para acertar de novo o que eu já tinha feito milhares de vezes. Sorte era que Alexandra viria no outro dia e quem sabe ela conseguiria me ajudar.
Naquela mesma tarde, já exausta de tanto treinar a consistência de defesa quando me distraí e sem deixei um golpe lançado por Eirie passar sem conseguir contê-lo, consequentemente atingindo meu braço. Eirie, que estava insistindo comigo na mesma sequência há um bom tempo, gritou seco e firme.
— Onde você está com a cabeça? Um escudo de proteção não serve de nada se você deixa todos os golpes passarem e te acertarem.
Revirei os olhos e assoprei o local que estava dolorido pelo impacto, pouco me importando com o sermão dele.
— Sorte que eu não queria te machucar.
O garoto falou e começou a dar voltas em círculo, levando as mãos à cabeça e desarrumando o cabelo.
— Como se em uma batalha real alguém fosse me poupar.
— Se não aprender a fazer um escudo forte, não vai sobreviver nem ao treinamento. — Ele estava realmente bravo, porém se acalmou e veio até mim depois de alguns instantes. — Deixe eu dar uma olhada no seu braço.
— Não. Solta. — Puxei o braço e impedi que ele encostasse. Dei as costas ao garoto e caminhei de volta para casa reclamando. — Nada disso estaria acontecendo se você me aceitasse como adversária.
— Já conversamos sobre isso.
— Não, não conversamos. Você nem me ouviu.
Virei e gritei, meu peito descendo e subindo estava cansada e irritada. Eirie deu dois passos na minha direção mas eu não o queria perto de mim, então levantei uma parede de terra para o impedir. Ele tocou a parede e em um piscar de olhos ela se desfez em pó. Ele fazia questão de absorver ou destruir tudo que eu criava, provando o ponto de que me considerava inferior à ele.
— Sei que está irritada, mas...
— Mas? Mas você não me considera à sua altura. O que custa me treinar com o mesmo método que utilizaram para você? Você acha que eu não aguento?
Notei que aquela pergunta o deixou ligeiramente incomodado. Ele massageava as têmporas enquanto falava.
— Não, pelo contrário, eu sei que você consegue. Mas não acho que aquele seja o melhor método para te ensinar. E além disso... você ainda tem que obedecer à mim, já que nosso pacto de sangue não foi quebrado.
Agora era ele quem me dava as costas. Lacei seu braço manipulando água e o puxei em direção à mim exclamando em alto e bom som.
— Então vamos lutar e eu vou provar que não sou tão fraca como você pensa.
Eirie nem se deu ao trabalho de virar, apenas absorveu o elemento que se fundiu com sua pele e me puxou bruscamente. No instante em que passava por ele, o mesmo me segurou virada de frente para si e de costas para a porta.
— Como você é teimosa. Eu já disse, sei que você não é fraca. Eu é que não sou tão forte para parar. — Sua mão direita foi de encontro ao meu cabelo, mas antes roçando de leve em minha bochecha. — E eu não quero machucar você.
Ele sorria e seus olhos verdes esmeralda brilhavam intensamente. Eu estava perto o suficiente para notar a dilatação de suas pupilas. Minhas mãos congelaram, senti uma gelidez repentina na barriga ao mesmo tempo que minhas maças do rosto queimavam. Dei um passo para trás esquecendo totalmente que já estava muito perto da porta e então não tinha mais para onde ir. Meu nervosismo pela tentativa desajeitada de compreender o que estava acontecendo o fizeram rir. Ótimo, ele me acha uma idiota.
— Mais cuidado por onde anda, Lady Desastre.
Sua voz soou rouca. Sua respiração ganhando um ritmo diferente, bem como a minha. Pisquei os olhos devagar quando Eirie deslizou a mão pelos meus cabelos, depositou na minha nuca e veio inclinando o seu rosto em minha direção. Fechei os olhos esperando seus lábios alcançarem os meus. Mas o momento acabou quando ouvi um barulho e abri os olhos bem a tempo de avistar um garotinho despencar de uma árvore. Com as duas mãos em seu peito o afastei e corri até o invasor.
Chegando perto dele, tive um terrível arrependimento. Um ruído insuportavelmente alto e estridente, quase capaz de arrebentar meus tímpanos, ressoou. Levei as mãos aos ouvidos e caí de joelhos, assustada o suficiente ao tocar minhas orelhas e notar que meus ouvidos sangravam. O atordoamento voltou em uma segunda onda e perdi o controle disparando pedras em todas as direções. Eirie veio por trás de mim e me abraçou, prendendo meus braços e fazendo com que eu parasse e me acalmasse gradativamente. O intruso, no entanto, conseguiu fugir.
O zumbido continuou a fazer minha cabeça latejar mesmo depois dele ter saído. Meus ouvidos pareciam ter perdido um pouco da audição e doíam. Eirie me explicou que se tratava de um feiticeiro espião e que, assim como Alexandra, eram os melhores no ramo da espionagem mesmo sendo apenas uma criança. Além disso, ele também disse que o som que eu aleguei ter escutado era parte das habilidades dos feiticeiros de manipular nossa mente e aquele resquício de zumbido, assim como o som estridente que me atordoou, só estava dentro da minha cabeça.
No outro dia, ao descer as escadas para o café da manhã, me surpreendi com Alexandra vindo até mim com o semblante preocupado. Com tudo o que havia acontecido, me esqueci de que ela estava indo nos visitar. Depois que me abraçou, examinou cuidadosamente as minhas duas orelhas, fez um encantamento para localizar alguma lesão e não encontrou. Provavelmente Eirie teria lhe contado o recente ocorrido.
— Lizlee, como era o espião?
— Você não me disse que era espiã. — Questionei a afastando um pouco de mim.
— Verdade. Não sou exatamente uma espiã, mas você também não é exatamente uma salvadora Guer.
— Talvez não tenhamos nascido para ser o que esperam de nós.
Após um momento de silêncio em que ela parecia refletir no que eu disse, Alexandra me cedeu seu lugar e logo após ter me sentado, ela fez o mesmo no lado de frente para o meu.
— Retomemos. Como ele era?
Ignel, seu irmão mais novo, surgiu pela porta como um tiro e parou somente ao olhar repreensivo de sua irmã. Voltei para ela e lhe respondi enfim.
— Pequeno.
O mesmo olhar repreensivo que ela lançou ao irmão, agora estava sobre mim. Ela estava fixada em meu rosto, claramente levava seu trabalho muito à sério.
— Bom, deixe me ver. Era um garoto e só. Como isso pode ajudar?
— Membros de algumas Casas possuem características bem específicas. A menos que haja hibridismo. Agora continue!
Engoli em seco com a aspereza em sua resposta, mas prossegui. Parecia incomodada.
— Ele tinha cabelos loiros e longos que beiravam o dourado em tom e em brilho, mas não consegui reparar muito bem em seu rosto, embora tenha conseguido ver que haviam espirais tatuadas nas costas de suas mãos. E, é claro, ele quase me fez ficar surda.
— Hollunya.
Ela nem pestanejou na conclusão. Uma sombra passou por seu olhar e o tornou ainda mais escuro do que jamais vi.
— Talvez não seja Hollunya. Pode ser um...
— Híbrido? Não, não. Um híbrido herdaria as habilidades das duas raças e geralmente não conseguiria usar uma sem a outra. Além disso, essa criança tem todas as características de um deles e também os Hollunya não se misturam pois repudiam os híbridos.
— Os híbridos são mais fortes e menos manipuláveis.
Deduzo em voz alta. Alexandra nunca havia me dito isso, talvez nem fosse correto que esse assunto saísse sendo comentado por aí. Ignel estava atônito e encarou a irmã em busca de uma confirmação ou refutação, creio que não soubesse disso.
— Eles também não duram muito, a maioria morre ao completar uma certa idade. E não falemos mais nisso, as Grandes Casas tem pavor aos híbridos e o Conselho os odeiam profundamente a ponto de proibirem que nos misturaremos e punir com a morte aqueles ou aquelas que o praticarem.
— Então nunca aconteceu de um feiticeiro de Lanóvia se apaixonar e se unir à um Guer?
— Uniões desse tipo são muito raras. Mas quando ocorrem, são a Feiticeira Mater da Casa e o Regente quem negociam a união. Embora não se saiba de outros casos, apenas de seus herdeiros, acredito que o mesmo serviria para os demais feiticeiros e feiticeiras. Mesmo assim, a incompatibilidade genética impediria esses indivíduos de terem filhos ou, com sorte, a criança nasceria sem habilidades elementais ou místicas.
O pequeno Ignel que balançava as pernas freneticamente e tamborilava os dedos na madeira da mesa onde estava sentado ingressou na conversa.
— Mas então por qual motivo a mamãe e o Regente do Fogo negociariam o seu casamento com o herdeiro se vocês não puderem dar continuidade à nossa linhagem?
De repente Eirie entrou pela porta da frente e colocou o arco e aljava em cima da mesa, ao lado do pequeno e astuto Ignel, que encarou os objetos com os olhos brilhando.
— Vasculhei a área. Não tem rastro.
— Vou mandar meus informantes ficarem de olho. Obrigada.
Eirie e Alexandra se olharam como se confidenciassem algo um ao outro num código próprio, em seguida, saíram para o quintal enquanto eu fiquei ali com Ignel. Na verdade, quando olhei ao redor, nem mesmo o Ignel estava mais ali – e nem o arco e a aljava. Os observei através da porta, parecia uma discussão séria. Então Alexandra, que já havia deixado bem claro que pretendia dar prioridade à outros assuntos neste momento de sua vida, estava de casamento marcado com o herdeiro da Regência do Fogo. Pensei em Phil. Ele parecia gostar dela de verdade. E apesar dos costumes Lanovienses os afastarem, sentia que ela lutava para não admitir que também gostava. Momentos depois, os dois voltaram descaradamente fingindo falar sobre outro assunto e me encararam sorrindo dissimuladamente.
— Quanto tempo temos até estarmos completamente encurralados por toda a Lanóvia? — Perguntei de forma incisiva.
— Não se preocupe, vocês não estão em risco.
Me coloquei entre Alexandra e Eirie, dirigindo-me diretamente a ela que há algum tempo já havia deixado bem claras as suas intenções de não colocar Lanóvia na mira das Regências e mesmo que ainda seja apenas uma ideia remota, e nem hajam provas das intenções e quaisquer pistas sobre os envolvidos naquele ato de suposta espionagem, esperar que ficássemos de braços cruzados era pedir demais.
— Como pode pedir para não me preocupar? É a nossa segurança que está em jogo. Até onde sei esses espiões podem estar trabalhando com alguém que deseje impedir nossos planos contra a extinção da raça Guer... ah, quem poderiam ser?
— Nós, Rhunaes, não temos interesse em deixar que os Guers sejam extintos, se é o que a senhorita tentou insinuar.
— Desculpe, eu não quis insinuar que duvido das suas intenções. Mas precisa concordar que não podemos confiar em todo mundo.
Suspirei profundamente antes de prosseguir e a feiticeira confirmou com um menear de cabeça. Apesar de ser sua família e seu povo ela sabia melhor do que nós com quem estávamos lidando.
— Eirie! — Gritei do banheiro, horas depois de Alexandra ter ido embora. — Consegue fazer uma tesoura?
Algum tempo depois ele apareceu e bateu na porta do quarto, que só estava entreaberta.
— A tesoura está aqui. Pode me dizer para que você quer uma?
— Como você fez isso? — Coloquei a mão por uma fresta na porta e ele estendeu a sua me entregando a tesoura.
— Utilizando alguns talheres da cozinha. Primeiro os faço retorcer e derreter ficando maleáveis para depois se fundirem. Por último, dou a forma.
— Acho que é a primeira vez que corto o cabelo com talheres.
— Você está falando sério? — Ele questionou.
— Não, Eirie, eu sempre usei os talheres e toda a prataria da minha casa para essa finalidade.
— Não é disso que estou falando. Você realmente fez isso?
Saí de dentro do banheiro balançando ainda as mechas. Havia algo de errado? Por qual motivo Eirie me encarava daquele jeito?
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