Capítulo XXII -
— Então, como era a sua vida antes?
Eu não esperava que ele já iniciasse com uma pergunta tão ampla e que, dependendo das palavras escolhidas, poderiam revelar mais do que o pretendido. Mesmo que esse houvesse sido o nosso trato.
— Nossa, você vai direto ao ponto.
— Você quem disse que a franqueza nos ajudaria a conhecer melhor um ao outro.
— Sim, mas eu esperava que você perguntasse algo como "qual é a sua cor preferida?" e não isso.
— Tudo bem. Então, qual é a sua cor preferida?
Devolvi uma risada sincera como resposta e ele sorriu. Depois de arrancar-me lágrimas, o mesmo garoto conseguia tirar-me risos. E não havia se passado tanto tempo assim entre uma coisa e outra. Quando me dei conta disso e calmamente me preparava para responder sua pergunta, ignorando a segunda, notei seu olhar demorado e concentrado em mim.
— Você quer saber de antes de eu chegar em Una Royal.
— Sim. Deu para perceber que você não sabia muito sobre a nossa realidade quando chegou aqui.
Entrelacei as mãos uma na outra e rangi um pouco os dentes, um sinal de que estava nervosa mas buscava não demonstrar muito externamente.
— Eu realmente não sabia. Eu não tinha conhecimento dos meus poderes antes de chegar aqui. Além disso, de onde eu venho as pessoas não tem poderes. E só agora eu sei o motivo de não existirem registros sobre os Guers na história do Grande Lizma, o Limite de Una os escondeu do resto do mundo.
— Suponho que as suas autoridades governamentais retinham todo o tipo de informação referente a nós e eram portanto também as únicas com liberdade de falar algo a respeito, possuindo assim o poder de controlar a narrativa e nos apagar da história.
Balancei a cabeça afirmativamente. Era exatamente o que eu pensava a respeito mas não podia expressar em Leeland – principalmente publicamente. Quantas vezes Moggie havia me alertado a respeito das minhas opiniões em relação à Cúpula dos Líderes e seu governo?
— Não acho que aqui seja muito diferente, Eirie. Você sabe do que estou falando.
— Eu sei o que nossa visão política parece representar para você. Eu também não gostaria de estar em uma guerra, mas nem sempre se pode conseguir a paz por meios pacíficos. Nós já tentamos isso entrando em acordo e agora esse acordo foi quebrado.
— Mas você sabe quem mais vai sofrer com esse conflito e não são os governantes ou a elite.
— Certo, eu não vou discutir com você. Já entendi que o governo na Lizleelândia era ditatorial.
Ele gesticulou como quem pedia para dar continuidade. Eu ia reclamar mas vi um pouco de maturidade na atitude dele. Ainda bem, pois eu o venceria na argumentação de qualquer forma.
— Bom, a minha mãe morreu em um incêndio quando eu tinha um ano de idade e o meu pai escondeu isso de mim até o meu aniversário de dezessete que foi quando ele foi assassinado. Nós dois nunca tivemos uma relação muito próxima, ou pelo menos eu não consigo me lembrar, mas ele era meu pai e a única família que me restava.
Eirie não disse nada, como se esperasse que ainda houvesse algo a acrescentar, porém surpreendentemente sendo gentil mais uma vez, ele alcançou uma das minhas mãos sobre a mesa e a segurou.
— Lembra quando eu disse para vocês sobre o assassinato daquela jovem noiva ter semelhanças com o do meu pai? Antes de morrer eu o ouvi dizendo algo muito estranho para um amigo dele. Ele dizia que deveria ter deixado que levassem o que estava dentro de mim. Agora, analisando bem, eu acredito que ele falava sobre a minha Matriz Elemental e meus poderes e que talvez os Guardiões tenham sido os responsáveis por sua morte.
— Isso teria matado você. Acha que seu próprio pai seria capaz de permitir que isso acontecesse? Pior, acha que ele seria capaz de te entregar a eles?
Eu sinceramente não fazia ideia. Me parecia que não conhecia o meu pai o suficiente para responder a essa pergunta ou a qualquer outra a seu respeito. Como isso era possível? Percebi que por nervosismo eu estava amassando todo o tecido do vestido de tanto apertar.
— O amigo dele disse que já tinham ido atrás de mim outras vezes e que continuariam voltando. Se alguém tentou me fazer mal, eu nunca tinha percebido nada disso. Fico confusa entre pensar que meu pai fez de tudo para me proteger e só queria que eu pudesse ser normal sem minha Matriz e meus poderes ou pensar que ele preferia que minha mãe tivesse sobrevivido no incêndio e não eu, ao invés de nós duas.
— Mas o seu pai conseguiu manter você segura todos esses anos e te enviou justamente para o lugar onde você deveria estar.
— Um lugar onde minha vida está em constante perigo. Eu acho que nunca entendi o meu pai e agora jamais terei essa oportunidade. Sabe a imagem mais nítida que tenho dele em minha memória? — O garoto fez que não. — Um homem bonito mas com o semblante derrotado e sem brilho nos olhos, vestido com roupa social, de camisa de mangas e gola arregaçadas, estirado em sua poltrona preferida em seu escritório com um copo do whisky mais caro na mão. Aqueles dois eram amigos inseparáveis.
Sorri ao me lembrar de um episódio que ilustrava bem meu pai. Minha mente me transportou para aquele tempo, meus olhos já não viam o garoto sentado à minha frente, mas sim a reconstituição da cena que contava a ele. Muitas vezes eu havia avistado meu pai daquela forma. Acredito que posso inclusive dizer que o tempo inteiro ele passava com pelo menos o mínimo teor de álcool no sangue.
— Uma vez, curiosa para saber o que havia de tão bom naquela bebida, eu entrei escondida no escritório dele e tentei alcançar as garrafas. Acabei derrubando tudo no chão e fiquei de castigo por duas semanas. Eu o enfrentei, expondo que achava que ele preferia mil vezes a sua preciosa garrafa de whisky do que a mim. Eu só tinha nove anos de idade e era muito brigona.
Quando olhei de volta para Eirie ele sorria largamente. A tensão de alguns instantes atrás começou a se desfazer quando comecei a rir da história. Um breve silêncio se fez antes que eu mudasse o foco para ele.
— E você? Não fala muito sobre a sua vida.
— Ah, ela é complicada. E não tem nada de interessante como a sua.
— Isso não é resposta, Eirie. Eu abri meu coração, ora.
Fingi estar desapontada. Trato é trato. Mas não pude deixar de perceber o desconforto quando ele soltou um suspiro e pareceu refletir. Levantei as sobrancelhas e debrucei os cotovelos sobre a mesa apoiando a cabeça sobre as mãos e fazendo cara de quem não se importava com o conteúdo, apenas estava interessada em saber mais sobre ele.
— Bem, acho que ao contrário do que você disse sobre o seu pai, o meu parece orgulhoso de ter um filho com minhas habilidades.
— Isso parece bom. Mas a sua cara, nem tanto.
— Eu não sei... — Eirie pareceu reformular sua frase. — Ele pode ser bem controlador às vezes e defende que meu único propósito é servir a minha Regência.
— Nossa, isso parece ser... desagradável! Não consigo imaginar viver com alguém assim.
Na verdade, eu mesma já fui limitada diversas vezes, então podia entender em partes. Eirie me olhava com um sorriso no rosto, ele não estava cansado de fazer isso naquele dia? Eram sorrisos demais para um garoto que não suportava sorrir para mim. Mas logo sua expressão se nublou. Bem, finalmente deve ter se cansado ou estivesse pensando em sua mãe. Me calei e esperei, até por que não o forçaria a contar o que aconteceu com ela, se não quisesse.
— Acho que você viu uma parte do que aconteceu com a minha mãe quando entrou na minha mente e vislumbrou o meu pesadelo.
— Não quis ser invasiva. Não sabia que aquilo poderia acontecer.
— Eu sei disso. É estranho e incômodo, mas outras pessoas já entraram na minha mente.
— Sabe, Eirie, não precisa tocar nesse assunto se não quiser.
Exclamei, ainda tentando digerir a última informação que saiu de seus lábios. Por algum tempo houve silêncio. Acho que ele esteve hesitando e mesmo depois de ter aberto a boca para falar, ele fechou novamente e depois de mais um tempo abriu de novo para se expressar.
— Ela foi assassinada quando eu tinha pouco mais de seis anos. Como você viu, nós parecíamos estar fugindo porém eu não lembro o motivo ou de quem.
Me inquietei na cadeira com o calafrio que percorreu minha espinha ao ouvir aquilo. No pesadelo Eirie parecia estar com muito medo, mas eu não havia visto mais sobre o que os homens fizeram com a mãe dele. Eu realmente achava que nossas perdas tinham algo em comum e eu entendia sua dor, mas as palavras sumiram quando ele revelou como aconteceu e a crueldade dos assassinos.
— Ela não teve como se defender contra tantos homens. Eles conseguiram subjugá-la e a amarraram seus braços e pernas com várias cordas. Eu era muito pequeno e não entendi o que queriam fazer até uma lâmina afiada lhe separar a cabeça do restante do corpo e os cavalos partirem cada um para uma direção. Eu os vi jogarem os membros dela no mar, mas não conseguia me mover ou falar. Você viu até a parte em que eu deixei Celestial, a égua da minha mãe, na caída do penhasco pois eu percebi você lá e tive que bloquear o restante.
Depois de tudo o que Eirie contou ficou mais fácil compreender os pesadelos recorrentes. Se assistir impotente o assassinato do próprio pai é um trauma para uma adolescente de dezessete anos, não conseguiria dimensionar o que deve ser uma criança de seis anos presenciando tamanha barbárie.
Eu sequer sabia como reagir para confortar alguém, entretanto decidi tentar lhe dar um abraço. Eirie retribuiu por um tempo bem curto, depois desviou o olhar até a porta que dava para o quintal e se soltou. Acompanhei-o apenas com os olhos.
— Se eu te disser uma coisa, promete não ficar irritada?
Depois do que ele me contou, pensei que teria alguma ligação então concordei.
— Precisamos cometer alguns furtos.
— O que foi?
— Precisamos de comida. Olhe em volta, ninguém está fazendo fila para nos oferecer isso.
Enquanto o garoto enumerava os motivos pelos quais precisávamos fazer aquilo, fechei os olhos e pensei "Como ele era capaz de mudar de assunto desse jeito? Seria um mecanismo de defesa para se afastar de seus verdadeiros sentimentos?". Neguei com a cabeça, mas também não via outra saída no momento. Contraditório.
— Lizlee, tem muita gente nesse lugar com posses o suficiente para alimentar a população dos Vilarejos Baixos inteira. E muitos conseguem riquezas por meios sujos.
— E seremos tão sujos quanto eles se os roubarmos.
Ele discordou e ainda argumentava, nunca vi alguém tão determinado a defender um crime. Mas sendo ele um criminoso, não poderia admirar que o fizesse.
— Você nunca ouviu falar de Robin Hood? Ele roubava dos ricos para dar aos pobres.
— Nós não somos pobres, somos fugitivos. E roubar é errado.
Eirie respirou fundo e após um instante estalou os dedos como se tivesse tido uma ideia.
— Você nem precisa roubar, é só vigiar.
— Estaria sendo cúmplice de qualquer maneira.
O mais incrivelmente estúpido ocorreu cerca de duas horas depois. Vencida e encorajada pelos argumentos de Eirie eu, que estava obstinada a fazer minha fome desaparecer apenas com a força do pensamento, não aguentei e cedi. Partimos do jeito que estávamos e eu me sentindo o ser mais desprezível, por fazer uma coisa dessas.
Me puni tanto mentalmente que cheguei a ficar neurótica, desconfiando que qualquer pessoa na rua poderia ser da Guarda de Lanóvia e que estavam disfarçados para me pegar e jogar numa cela novamente. Acho que estava tendo palpitação pelo estresse.
— Você ainda quer fazer isso?
Resolvi perguntar enquanto tinha tempo de voltar atrás. Tentei acompanhar o passo do garoto, mas ele parecia atravessar os corpos de tão rápido que transpunha o fluxo de pessoas nas ruas.
— Não se preocupe com nada. Roubar é uma arte e eu sou um artista.
— Ótimo, para você! Mas eu não sou uma artista.
Nesse momento já nos afastávamos das pessoas e nos dirigíamos a ruas com menor movimento.
— Eu também não era quando comecei.
— Como começou a roubar? Foi parar escola de ladrões? — Revirei os olhos para ele e para a sua resposta engraçadinha.
— Acontece naturalmente quando se vive cercado por gente com dinheiro que sempre quer mais e mais dinheiro a todo custo. Essa é a verdadeira escola de ladrões.
Dei uma gargalhada. Apesar de injusto, também era uma irônica crítica explícita ao sistema ao qual todos nós estávamos incluídos e ainda nos beneficiávamos.
— Mas você vive no Palácio junto com a Família Regencial e a nobreza, certo?
Fiquei com receio de estar jogando perguntas demais em cima dele de uma vez só – levando em consideração que há um dia atrás isso nem seria possível. Mesmo assim, obtive resposta, o que me deixou mais aliviada.
— Sou importante para eles. Por que acha que estão dispostos a entrar em guerra?
— Então deve ser conflitante para você que o precisamos fazer envolva ir contra ordens do seu Regente.
— Sim. Mas não seria a primeira vez.
Chegamos a uma rua sem saída. Eirie estacou de frente para o muro olhando-o de cima a baixo. Logo em seguida, ele saltou e se equilibrou no muro, depois me ajudou a subir também. Uma vez em cima desse muro, tivemos que subir para o telhado de uma casa utilizando uma escadinha estreita de degraus intermináveis fixada na parede do prédio colado a ele, para ter uma visão melhor do perímetro.
— Me diga que nós não temos que subir mais nada. — Sentei no telhado recuperando o fôlego. O vestido que estava usando me deixando furiosa e sem a mesma mobilidade que uma calça me proporcionaria. — O que viemos fazer aqui?
— Detectar alvos em potencial.
Levantei e fui até a beirada, deu vertigem só de olhar para baixo.
— O primeiro passo para um furto bem sucedido é encontrar os alvos perfeitos.
— E como saber quais são?
Amarrei o cabelo para o alto para que não me atrapalhasse, enquanto olhava lá para baixo onde todas aquelas pessoas se misturavam.
— Pessoas ricas.
— O único problema é que todo mundo aqui parece ser rico.
Notei que ele tinha um sorriso malicioso nos lábios como se dissesse "Exatamente!" e continuava observando cuidadosamente uma direção em especial.
— Está vendo aquilo?
Eirie apontou para as crianças e adolescentes saindo da escola. Olhei para lá. Ele queria que roubassêmos de crianças?
— Os membros das Grandes Casas tem o seu brasão bordado no uniforme, isso é o que os diferencia. Dizem que é pela representação da importância, mas além disso também serve para hierarquizar. Em caso de ataque ou invasão à cidade, os funcionários devem retirá-los primeiro e deixar seguros nas galerias que passam debaixo da cidade, enquanto os outros que não pertencem às Casas tão importantes ficam em segundo plano. Em Monigram também temos um sistema parecido.
— Vamos roubar essas crianças?
— Vamos aproveitar que esse horário é de grande movimentação nesse perímetro. Temos que agir rápido.
Minhas mãos suavam de nervosismo. Eu estava prestes a realizar um ato criminoso. Após algumas outras análises, às quais nem dei muita ideia, Eirie delimitou o ponto de partida e o de encontro.
— Você ainda não me disse o que eu tenho que fazer. Além de "vigiar".
— Se for subtrair algo, foque em coisas que possa carregar. Descarte objetos sem ou com pouco valor... e dê preferência a dinheiro do que a objetos ou joias.
Fiz que sim com a cabeça ao fim de cada oração completada, mas ainda não fazia ideia de por onde começar. Ele queria que eu aprendesse na prática e eu achava que isso só serviria para eu ser pega no ato.
— Primeiro encontre o objeto que deseja. Certifique-se que a Guarda não esteja por perto. Aproxime-se naturalmente como se estivesse dando um passeio ou como se estivesse distraída e trombasse na vítima. Seja ágil, rápida e com a ajuda de qualquer força superior não será pega no ato.
— Qual tipo de força superior nos ajudaria a cometer um crime?
— Nossa Senhora dos Ladrões.
O garoto simplesmente lançou um olhar em minha direção e depois de um instante em que eu não me movia, bufou. Estava na cara que eu não servia para isso, qualquer um reconheceria.
— Certo. Por via das dúvidas, só me dê cobertura e observe atentamente.
— Acho que vou me sair melhor nessa tarefa.
Respirei fundo e soltei o ar devagar, toda essa adrenalina por me tornar uma criminosa estava me fazendo entrar em estado de ansiedade. Um segundo depois percorri tudo ao meu redor com os olhos e Eirie tinha desaparecido. Ouvi o som estridente de um assobio e me aproximei da extremidade.
— O que está esperando? Vem logo!
— Espera, você quer que eu pule aí? Daqui de cima? É isso mesmo?
— Você consegue.
Olhei para baixo reparando o vão entre um prédio e o outro. Tive náuseas. Então, Nossa Senhora dos Ladrões, é hora de entrar em ação.
— Tente não pensar. Feche os olhos e só pule.
— Falar é facil, não é?
— Eu vou segurar você... já que não tive tempo de te ensinar a ativar sua capacidade de voar.
— Como assim? Nós podemos voar?
Balancei a cabeça, confusa. Ele confirmou. Entretanto, o medo permanecia em mim. O tempo estava passando. O fluxo diminuiria. Consequentemente, sairíamos de mãos vazias. Implorei para as forças superiores que não me deixassem morrer. Subi no ressalto da beirada. Fechei os olhos. Respirei. Expirei. Eu podia voar. Meus poderes se ativam por instinto, então... saltei. A primeira reação foi meu corpo congelar e não me deixar abrir os olhos. Eu não estava voando, só caindo mesmo e comecei a gritar. Eirie estava rindo quando me segurou como prometeu, mas também tampou minha boca para que eu parasse de gritar. Tinha me esquecido que em Lanóvia, as pessoas não falavam muito alto e muito menos gritavam ou ultrapassavam um certo limite de decibéis, pois não era permitido. Principalmente em determinados horários.
— Qual é o seu problema? Disse que podíamos voar. Eu poderia ter morrido.
— Certo, eu menti que podíamos voar para te apressar. Mas somos mais resistentes e isso não é mentira, então pode confiar. Agora, são só mais dois telhados.
O garoto me tomou pela mão, nos entreolhamos e corremos até a ponta deste prédio de onde saltamos para o próximo. Só tive tempo de recuperar o fôlego e sentir que ele apertava minha mão mais forte ainda. Seus olhos estavam fixos no alvo. Corremos até a ponta e saltamos novamente, rolando e chegando no último prédio, neste, tomamos a escada da parte de trás e desembocamos em um beco. Bati a poeira da roupa, ajeitei o cabelo, coloquei o capuz. Quando saímos e encontramos a avenida principal, constatei o motivo pelo qual deveria usar essa roupa estranha. Todas as meninas estavam usando vestido e capa com capuz. Parecia uma Convenção de Magia e eu fazia parte dela, exceto pelas faixas com as cores e brasões de suas Casas. Eirie me puxou de volta para o beco e repassou umas últimas instruções.
— Lizlee, lembra o ponto de encontro?
— Sim, acho.
— A fonte. Se vir a Alexandra, se esconda. Ela não pode saber o que estou fazendo você fazer.
Realmente, tenho bons motivos para acreditar que Alexandra o esfolaria vivo se soubesse o que estou prestes a fazer – ela já demonstrou ter coragem suficiente para isso. E há uma grande probabilidade de encontrarmos ela, então é algo com que devo me preocupar agora. Examinei cuidadosamente a extensão que deveríamos percorrer à procura de guardas ou barreiras que pudessem se tornar um futuro problema. Quando terminei e retornei para Eirie, ele estava escondendo suas lâminas brilhantes de aço nas botas e nas luvas.
— Pode segurar isso para mim?
O garoto me deu duas adagas pontiagudas, segurei-as firmemente, engolindo em seco e tentando cobrir para que ninguém me visse com ambas.
— Onde você vai esconder? Elas são bem maiores que as lâminas.
Ergui os olhos das lâminas por um momento, só o tempo suficiente de reparar que ele retirava a camisa e ver boa parte de seu abdômen nu para desviar os olhos para outra direção logo em seguida.
— Eirie?
— O que? Alguém vem?
Voltei para ele e o apontei com uma adaga, gesticulando sem muita destreza.
— Ah, isso? Nós moramos na mesma casa agora. Vai ser difícil não me ver sem camisa às vezes.
— Espero que você deixe sua porta fechada.
Ele sorriu de lado daquele jeito malicioso que me dava raiva. Virei de costas para ele e esperei que terminasse de fazer o que estivesse fazendo. Fiquei me perguntando se ele realmente pretendia usá-las ou se era somente por preucação. Por fim, devolvi suas adagas, que ele deu um jeito de esconder na parte de dentro da roupa. Seguimos para fora do beco e nos misturamos no meio do povo. Inicialmente tive certa dificuldade devido à rapidez e agilidade com que ele se movia. Era quase impercpetível sua aproximação deslizando por entre uma e outra pessoa, enchendo os bolsos com carteiras e outros objetos dispostos sobre as mesas em estabelecimentos. Além disso, eu acompanhava de longe observando por todos os lados se alguém poderia ser um empecilho ou a Guarda estava rondando.
De repente, com minha visão periférica, detectei as feições familiares de Alexandra e seus irmãos mais novos. Arregalei os olhos e percebi que, inconscientemente, estava prendendo a respiração. Lancei o olhar na última direção onde tinha visto o meu parceiro de furto e segui procurando. Corri até um grupo maior de pessoas e fingi estar junto com eles para despistar da feiticeira. Como se me farejasse, a garota lançou o olhar para a direção onde me encontrava. Virei o rosto e acabei trombando com uma mesa, onde um casal tomava café. Pedi desculpas apressadas e me embrenhei em meio a um grupo de jovens que entrava na lanchonete. Pelo vidro do estabelecimento avistei Alexandra e seus irmãos atravessando a rua e vindo para o estabelecimento. Me preparei para fugir e me esconder no banheiro quando dei de cara com uma garçonete e caímos no chão. Meu capuz escorregou por meu cabelo. Não reparei em nada mais quando vi o saquinho de gorjetas caído no chão bem ao lado de seu corpo.
— Tudo bem? — A moça perguntou e se apoiou em uma cadeira para levantar.
— Ah... não. Não estou bem.
— Perdão, Lady Hollunya. Eu não quis... foi um acidente. — Sua expressão mudou totalmente quando me olhou com mais atenção.
A confusão também ficou estampada em meu rosto. Ela havia me chamado de "Lady Hollunya"? Balancei a cabeça e deixei para lá. Reclamei de dor, rolei no chão fingindo ter me machucado e pedindo um pouco de gelo, quando na verdade era só um pretexto para que pudesse esconder o saquinho com meu vestido e dar no pé. Mal a vejo dar as costas e lá estava Alexandra, que empurrou a porta para seus irmãos entrarem – sorte a minha que o pequeno Ignel pisou na barra do vestido de Padma e ela trombou em uma mesa derrubando os livros no chão e todos se distraíram. Aproveitei que todos estavam discutindo e pegando os livros e me arrastei pelo chão da lanchonete até chegar na porta dos fundos, mas antes tive que passar por um corredor onde havia uma sala – espécie de escritório. Na sala, detectei duas bolsas que deveriam ser de funcionárias. Entrei e me aproximei lentamente, mexi nelas. Estou muito afobada e desajeitada, julgando a mim mesma por minhas atitudes, mas encontrei as carteiras e retirei tudo o que encontrei de dinheiro. Sou um ser humano terrível. Fiz um bolo com as notas e guardei tudo entre meus seios. Saí pelos fundos e retornei à avenida principal com a cabeça baixa. Segui até o ponto de encontro. Chegando lá, dei de olhos com Eirie e ele me encarou parecendo bem bravo.
— Eu disse para você me acompanhar e me dar cobertura. Onde estava?
— Vamos sair daqui.
Saí cabisbaixa e envergonhada. Ele levantou da beira da fonte e veio logo atrás.
— Onde conseguiu isso?
— Ah, essa mochila? Eu acho que ela é enfeitiçada. Eu peguei de um estudante para carregar os furtos do dia. Mas relaxa, eu deixei os livros. Afinal de contas, quem sou eu para tirar conhecimento dessas pobres crianças?
Seu tom era de pura ironia. No entanto, creio que naquele momento ele tenha percebido que eu sequer prestava atenção e em um único passo largo o garoto chegou até mim e ficou em minha frente me impedindo de passar. Tive que parar.
— O que aconteceu com você?
Meus olhos estavam fixos em seu rosto o puxei para uma viela e retirei o bolo de dinheiro do meio dos meus seios, segurando em sua frente. Ele hesitou, mas logo pegou e começou a conferir as notas. Afastei a capa e desamarrei o saquinho de gorjetas da cintura, também o entregando a Eirie.
— Sou um monstro. — Escondi o rosto com as mãos. — Mas quanto temos?
Acompanhei atentamente toda a contagem. Ele também pegou o que conseguiu – que era bem mais do que eu havia apanhado.
— Você conseguiu duzentos guilhers e noventa e duas moedas rhuns de ouro na primeira vez... olha só? — Ele disse como se aquilo fosse digno de orgulho. — Eu peguei mais esses quinhentos e quatro guilhers e trinta e quatro moedas rhuns de ouro. Além desses anéis de ouro e de prata, essa pulseira e dois colares de safiras e cravejados em diamantes.
Ele foi retirando as joias da mochila mágica enquanto falava. Eu queria ter perguntado logo de início o que eram guilhers e rhuns, mas deduzi que fosse a moeda de Una Royal. Reparei no colar e imediatamente me lembraram das montanhas que vimos quando passamos na Estrada Vôlvuna.
— Essas joias são lindas. O que dá para comprar com isso?
— Muita coisa. Na verdade, para comprar algo aqui em Lanóvia nós teremos que converter esses guilhers em rhuns. Ah, espera, tem um brinco. Só um mesmo, mas ele tem um diamante rosa então deve servir para alguma coisa.
Comecei a andar em círculos com as mãos na cintura. Minha vontade era de sumir.
— Quer ir embora? Eu posso ver o câmbio e o que consigo com esse dinheiro.
— Quero. Mas estou com fome.
Ao ouvir essas palavras, Eirie pegou em minha mão e me puxou para longe dali. Fomos para um restaurante mais próximo – que nem era tão próximo assim – e depois de nossa refeição fomos até o mercado onde compramos alguns doces típicos de Lanóvia, o que ele chamou de "porcarias nocivas, porém viciantes" e paramos para apreciar. O vendedor nos explicava um pouco da história de cada um dos doces, algumas eram engraçadas ao passo que outras tinham valor histórico.
Enquanto comia, contei a ele o que aconteceu na lanchonete sobre ter visto Alexandra e todo o resto. Eirie gargalhava tanto com meu fiasco em agir naturalmente que quase engasgava. Não era atoa ter me dado apelido de Lady Desastre. Eu o enchi de socos e, pensando bem, até que era engraçado mesmo. Depois disso fomos comprar roupas novas e outras coisas. Poucos locais aceitaram guilhers, por causa do preconceito contra os Guers, obviamente e como o esperado. Distraída com tudo o que vi da cidade e em como foi divertido passar esse tempo sem preocupações e brigas, esqueci o fato de sentir nojo de mim mesma tomando posses de outras pessoas daquela forma. Mas depois, a consciência cobrou seu preço.
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