Capítulo XXI -


Os pesadelos pareciam me perseguir. Embora estivessem diferentes, ainda conseguiam me tirar o sono. Estavam mais parecidos com fragmentos de lembranças. A mulher misteriosa estava lá, como sempre, mas parecia mais jovem e os lugares por onde ela passava eram completamente distintos dos que eu estava acostumada a ver. Embora parecesse Una Royal, por não estar destruída ou contaminada com radiação como várias áreas no Grande Lizma, eu sabia que não era. Era mais como se aquela lembrança fosse de um passado distante e não de atualmente.

As pessoas ao redor se vestiam diferente, o céu estava azul com poucas nuvens, tanto que era possível ver o Sol radiante lá em cima e todos andavam nas ruas com pressa, alguns falando sozinhos como se estivessem com alguém ao lado e outros com os olhos fixos em um bloco de laterais finas e formato retangular nas mãos deslizando os dedos para cima, para baixo e para os lados.

De repente, um rapaz distraído – do grupo dos que falavam sozinhos, trombou com ela e trocaram umas palavras no mesmo idioma esquisito que Eirie falava de vez em quando, era como se estivessem brigando mas eles sorriam e até se ajudaram a levantar. Eles pareceram ter compreendido que iam para o mesmo lugar, a julgar por suas expressões e por terem se dirigido para o prédio enorme que a moça misteriosa tanto olhava antes de esbarrar e derrubar umas estranhas coisas brancas e pequenas que o rapaz carregava no ouvido.

Não havia nada naquele sonho, mesmo assim, não consegui voltar a dormir. Revirei no colchão duro até ajustar uma posição mais confortável e poder mirar a triste visão do teto cinza e sem vida da ratoeira – apelido carinhoso e autodepreciativo com o qual Eirie e eu nos referíamos ao abrigo subterrâneo. Acredito que para a população de Lanóvia era isso o que representávamos, a escória.

Por meio dos estudos na Biblioteca eu pude entender que havia um grande preconceito da Ordem para com os Guers e que chegavam a repudiar o hibridismo entre essas raças, punindo quem o praticava com o banimento. Também foi assim que entendi que o povo de Lanóvia não era humano – diferente de nós Guers que somos humanos geneticamente modificados – e sim uma espécie chamada Rhunae. Acredito que Alexandra não quis me deixar saber mais do que isso para evitar o desconforto que poderia causar, afinal de contas é o povo dela e eles é que têm sua lealdade.

Na verdade, independentemente de saber mais ou não, todos os dias ali eu sentia que não era bem vinda e sendo uma fugitiva procurada – mesmo sem ter cometido algum crime, eu acho – que pertencia a um povo de que os Lanovienses odiavam por seja lá fosse o motivo, eu me sentia ameaçada e o abrigo passava cada vez mais a me soar sufocante e a fazer jus ao nome que lhe demos.

Me empertiguei com esse pensamento e comecei a me remexer. Todas as noites em que acordava assustada com algum pesadelo o mesmo processo ocorria, mas principalmente depois da conexão matricial que estabelecemos, eu tinha um receio diferente da nossa proximidade. Antes era por medo dele e agora isso me lembrava de como era igualmente agoniante estar em um de seus pesadelos. Infelizmente não havia muito espaço ali para onde eu pudesse levar meu colchão e dormir longe dele. Mesmo assim, o meu verdadeiro medo naquele momento era descobrir que não só eu tive acesso à mente dele como ele também teve acesso à minha. Por conta disso, comecei a evitar o contato físico e até o contato visual com ele o que me fazia sentir uma estúpida. Não seria mais fácil ter uma conversa franca com ele sobre o que aconteceu? Mas é óbvio que não. É do Eirie que estamos falando...

  A única coisa que me consolava era o fato de que ele não poderia saber o que se passava em minha mente se não nos tocassemos – ou ao menos eu achava que funcionava assim – e por seu maior desejo ser ficar o mais distante possível de mim, ele nem se daria ao trabalho de tentar. Afinal de contas, sei que ele se sentiu ameaçado. Ter alguém invadindo seus pensamentos, sonhos e privacidade deve ser aterrorizante e eu não tiro a razão dele, mesmo não tendo feito de propósito.

Por outro lado, em algumas ocasiões Eirie não se mostrava tão perigoso como antes e seu comportamento era razoavelmente normal, sobretudo com Alexandra. É claro que, comigo ele estava arredio e evitante, mas em se tratando dele, o estado de humor entre indiferença e irritabilidade iam de um ao outro com tamanha facilidade que eu já estava até mesmo começando a identificar alguns sinais de que as oscilações ocorreriam e me preparava para elas. E mesmo quando o via ser simpático e sorrir de alguma coisa que conversava com a sua amiga feiticeira, alguns reflexos inconscientes ainda perduravam e me preocupavam pensando se tudo aquilo não passava de uma farsa e que ao menor movimento Eirie se fecharia, colocaria uma faca no meu pescoço e revelaria que seu Regente estava do outro lado da porta pronto para pôr suas mãos em mim.

Com toda a rotina de estudos que assumi juntamente com Alexandra, Eirie passava a maior parte do tempo lá fora nas ruas de Lanóvia e quando voltava tinha sempre muito o que falar com Alexandra, a sós, é claro. E por falar na jovem feiticeira, havia chegado o dia em que ela havia prometido nos levar para o nosso novo "lar" e alertou que por ser um pouco distante da cidade, não poderia mais nos visitar todos os dias e continuar me dando as lições. Eu deveria então ler tudo, aprender o suficiente e anotar minhas dúvidas para tirá-las apenas quando houvesse a oportunidade dela ir até a casa. E novamente estaria solitária. Apesar de dura e exigente, eu estava começando a gostar dela e de sua companhia. Seus conselhos também eram muito astutos, apesar de às vezes soar como se ela fosse intocável, inatingível, impassível.

É claro que tinha algumas exceções, como há dois dias atrás quando eu pedi para enviar uma carta para meu tio e ela me cortou, alegando que a mesma poderia ser interceptada e assim poderiam descobrir nossa localização. A feiticeira parecia muito nervosa com a possibilidade de ficarmos expostos. Mas no fim, eu sabia que ela não estava errada. Só estava querendo proteger o seu povo. Entretanto, vendo como aquilo me afetou negativamente, ela me prometeu que meu tio saberia que estava viva e bem. Fiquei exultante de alegria com aquela esperança momentânea e por fim ter conseguido que a garota pensasse em outra forma de me ajudar ou pelo menos ela nutria em mim essa esperança – pensando bem, de muitas formas e de maneira sutil ela estava sempre dizendo que eu não veria minha família ou minha casa tão cedo.

Minhas reflexões e preocupações foram inesperada e velozmente interrompidas. Eirie girou do seu colchão e rolou deitando a cabeça sobre meu tronco. Arregalei os olhos e prendi a respiração no mesmo instante junto com um arrufo de susto. Calculei que seria melhor não acordá-lo de súbito, mesmo assim eu precisava fazer algo para controlar a respiração já que ele estava depositando seu peso sobre meu diafragma e estava começando a atrapalhar minha respiração. Sabendo que Alexandra chegaria mais cedo e que não queria dar a impressão de que havia qualquer envolvimento entre nós, a saída seria que eu o empurrasse. Por via das dúvidas, eu preferia respirar. Prendi a respiração – ou o que me restava dela – e preparei para receber o sermão de um sonolento e assustado garoto do fogo. Empurrei seu peso para o lado e saí de baixo, o garoto resmungou.

— Sai, Adie, me deixe em paz!

Fiquei levemente irritada com a possibilidade de estar sendo confundida com alguma garota com quem ele tenha dormido e revirei os olhos dando de ombros. Logo em seguida, um barulho na porta me faz dar um salto e ficar em alerta. Lancei mão em uma lâmina de Eirie e me encostei na parede para espreitar em meio a escuridão, apertando os olhos na esperança de que se houvesse algo de errado não iria travar e não conseguir reagir. Para meu alívio, era apenas Alexandra. Seu vestido verde escuro, como sempre, de mangas longas e tecido encorpado que se arrastava pelo chão nada limpo do nosso humilde cubículo parecia dizer que a temperatura ainda estava baixa lá fora. Quando me viu ela colocou a mão em cima da boca para conter uma risada e chamou com a mão para que me aproximasse.

— Você ia me acertar com isso? — Alexandra cochichou, zombando. —Precisava ver sua cara de espanto quando me viu. Mais ninguém tem acesso a este lugar.

— É sempre bom se manter em alerta.

— Não se lembrava que eu viria buscar vocês?

Aos poucos ela foi parando de rir, passou por mim balançando a cabeça e foi para o quarto. A garota caminhou serenamente e parou onde estava o colchão em que Eirie ainda dormia e se agachou até a altura de seu ouvido. A delicadeza com que a feiticeira agia não denunciava o que ela faria a seguir. A jovem assobiou tão alto e agudo que o fez despertar todo assustado rolando até o chão.

— Cinco minutos. Vocês dois. Na saída do cubículo.

Ela exclamou como um general. Eirie apenas bufou inconformado e revirou os olhos. Ao passar por mim novamente, tentei segurar o riso, porém Alexandra viu e bateu palmas altas e fortes para mim, me obrigando a retomar a postura séria.

— E o que você ainda está fazendo aqui? Isso serve para você também.

Virei a cabeça lentamente para ela. Alexandra deu um berro que me fez pular em meu lugar.

— Vamos logo, folgados. Cinco minutos. Estou contando.

Vi que não era brincadeira e saí em disparada para arrumar a minha cara de quem não dormira direito há dias. Lavei o rosto e prendi o cabelo para o alto. Não havia espelho no banheiro então eu apenas passei a mão no cabelo sem poder fazer muito pelas irregularidades que se apresentavam. Quando olhei para a porta, Eirie estava lá encostado no batente. Não sei bem o que passava em sua mente quando começou a se aproximar da pequena pia do banheiro, mas somente pelo movimento grogue de seu corpo dou espaço para ele passar. O garoto ainda trombou na pia antes de levantar os olhos meio desviantes em minha direção.

— Ficou legal.

— O que?

Olhei minha roupa e ao redor sem entender exatamente do que ele falava já que a única coisa que fazia era me apontar com uma escova de dentes.

— O cabelo. Nunca vi você deixar ele desse jeito.

A primeira coisa que pensei foi "Desse jeito como? Sujo e mal cuidado?", em seguida passei a mão por ele sentindo as irregularidades do rabo de cavalo e corando um pouco por ele ter notado algo que nem eu mesma vinha dando importância já fazia um bom tempo. Mas também só notou quando já estava em um estado deplorável, o que deveria significar que estava bem pior do que eu imaginava.

— Ah, eu só...

Alexandra deu um grito de lá de cima, dando tapas na porta. O vi fechar os olhos e balançar a cabeça.

— Será que eu vou ter que descer aí e arrastar vocês dois?

— Terminamos.

Afirmei, mesmo que não fosse exatamente verdade. Eirie sorriu para mim. O espaço do lugar não era tão grande e isso justificava o tamanho dos cômodos, por isso quando estávamos nós dois ali, precisei ficar imóvel esperando que ele passasse. Mas para minha surpresa e total constrangimento, ele parou de frente para mim e quando eu menos esperava segurou a minha mão e me deixou segurando algo nela. Olhei o pequeno punhal em minha mão, ainda imaginando por que ele me dera aquilo.

— Corte!

Eirie não parecia estar brincando. E eu não estava entendendo, ele queria mesmo que eu me cortasse ou eu estava perdendo a sanidade? Não, talvez tivesse ouvido errado. Balancei a cabeça negando, ainda confusa.

— Estou liberando você do pacto de sangue.

— Não temos tempo para falar sobre isso agora. Precisamos sair daqui. E a Alexandra seria capaz de nos arrastar daqui de verdade...

Tentei colocar o punhal no cinto, mas ele impediu antes. Busquei não me irritar logo cedo, respirei fundo e o encarei interrogativa. Depois de se esforçar em ficar o mínimo possível perto de mim, por que ele estava insistindo nisso logo agora?

— Depois pode ser tarde.

— O pacto pode ser desfeito a qualquer hora. Vamos manter o foco na nossa prioridade que é sair daqui.

  E depois de disso, escondi bem a arma e subi. Ele também não demorou a sair e assim seguimos Alexandra. No caminho notamos que ela estava irritada e apressada, algo deve ter acontecido mas não a importunamos com isso e apenas fizemos como ela disse para fazermos, calados é claro. Eu não estava acostumada a andar por Lanóvia – mesmo estando na cidade há pouco mais de duas semanas, tudo que fiz foi ficar apenas andando pela galeria entre a ratoeira até chegar na biblioteca e depois realizando o caminho inverso.

Enquanto isso, Eirie podia sair quando bem entendesse. Às vezes eu tinha inveja dele e da sua liberdade. Alexandra também parecia tão livre. Mas não só isso, ela ordenava e as pessoas simplesmente obedeciam. Ela estava sempre no controle. Eu não queria ter inveja de nenhum dos dois mas não dava para competir com eles e sua superioridade em tudo. Todos os dias eles diziam ou insinuavam coisas sobre eu não poder utilizar meus poderes até ter o domínio sobre eles, como quando Alexandra havia dito que o fato de eu invocar meus poderes por instinto poderia ser perigoso, uma vez que o instinto humano era a irracionalidade e a falta de consciência moral. Por outro lado, tomar consciência do meu poder e aprender a controlá-lo denotava o oposto.

— Peguem isto! 

Alexandra nos jogou um envelope amassado com desprezo. Por reflexo, segurei no ar e já comecei a abrir para ver do que se tratava. Provavelmente ela já tinha lido o conteúdo da carta, a julgar pelo estado do envelope. Eirie se pareou lado a lado comigo quando retirei o papel.

— É de Philip.

Olhei para Eirie que me olhou de volta como se dissesse "O que está esperando?". Li em voz alta o que a carta dizia:

"Caros amigos, Lizlee e Eirie,

  Tenho que ser o mais breve possível nesta carta, mas prometo enviar outras. Cheguei bem à Monigram, apesar da vigilância dos Guardiões nos Vilarejos. A primeira coisa que fiz foi solicitar uma audiência com o Regente Zvatrze e expus as informações que reunimos"...

— Reunimos? — Eirie me interrompeu. — Eu reuni.

— Enfim... "As informações que reunimos sobre as movimentações dos Guardiões contra a Regência do Fogo. O Conselho se reunirá em dois dias, entretanto, infelizmente o Regente parece já ter tomado sua decisão: ele pretende atacar o Forte Dourado, embora isso possa mandar uma mensagem hostil às demais Regências. Estejam preparados para mais notícias.

  P.s.: Eirie, eu corto a sua mão se souber que a levantou contra Lizlee. E não é só um ameaça, é uma promessa.

Se cuidem!"

  Mordi os lábios com esse final e não disse nada mas por dentro estava querendo implicar com o garoto do fogo.

— Andem depressa. A guerra está caminhando mais rápido do que você dois, seus frouxos.

Nos entreolhamos e corremos até a garota que já se encontrava na esquina.

— É possível que o Regente Zvatrze desista de atacar? Quero dizer, ele sabe que para as outras Regências isso vai soar como se a Primeira Regência tivesse quebrado o pacto e não os Guardiões, não é?

— Zvatrze não é de mandar recados. Ele simplesmente vai lá e faz. 

Admirei sua ousadia em falar de um Regente sem colocar seu título à frente, isso era como desrespeitar sua posição ou coisa do tipo. Sua voz estava tão seca que mesmo eu já tendo assimilado que era somente o tom costumeiro dela, acabei estranhando. 

— Entendem o risco que Lanóvia está correndo por eu estar colaborando com vocês? Tem pessoas inocentes aqui. Os meus irmãos estão aqui... apenas, mantenham essa guerra bem longe dos muros de Lanóvia.

— Não vai acontecer, Alex. É uma promessa. 

Eirie colocou a mão no ombro da amiga e ela respirou fundo, provavelmente não queria perder a postura de durona, logo depois de ter perdido a postura de durona.

— Então vamos embora daqui?

— Ah, por favor... é tudo o que eu quero.

Segurei a barra do vestido, que me atrapalhava bastante, enquanto Alexandra – que era mesmo uma caixinha de surpresas – desatou os laços de sua capa e desabotoou os botões do vestido para revelar que estava com uma blusa preta, calça jeans escura e nos pés um simples tênis qualquer. E bagunçando um pouco o cabelo, concluiu:

— Bem melhor.

— Agora sim você é a Alex que eu conheço.

Eirie completou e a garota o mirou com um olhar de desprezo que se seguiu de uma jogada de cabelo.

— Odeio que me chamem de Alex.

                             


A cidade de Lanóvia era ainda mais linda e charmosa à luz do dia e também gritantemente discrepante dos Vilarejos Baixos por onde passamos. Era muito mais desenvolvida e rica que as demais ao redor. Lanóvia tinha um fluxo de pessoas impressionantemente organizado, apesar de que, de vez em quando contrastava com alguns que ficavam sentados tomando ou comendo alguma coisa em lanchonetes ou cafés. Alguns prédios eram altos em constraste com prédios com características arquitetônicas do Mundo Antigo. Mas em todo o lugar que se olhasse, havia a presença de um ambiente bem preservado. 

Em certa altura do caminho, passamos em frente a uma casa enorme que tomava todo o quarteirão. Fiquei tão estupefata por nunca ter visto uma casa tão grande e luxuosa – mesmo com a constante disputa da elite de Leeland por quem tinha a maior residência – que pensei que se tratasse de outro tipo de prédio público Lanoviense, como o lugar onde fomos no primeiro dia. Alexandra parou no portão da entrada da casa e olhou para ela com expressão de pesar. Olhei lá para dentro e enxerguei que das janelas pendiam grandes bandeiras negras com um brasão centralizado – que se me recordo bem, era da Casa Magnencer. Depois que a garota saiu, ficamos por um bom tempo em silêncio.

— O que aconteceu?

Ela suspirou antes e respondeu depois de um instante bem longo.

— Essas bandeiras significam que um membro da Casa Magnencer faleceu.

— O Tuslyn talvez?

Eirie deu um palpite. Eu não sabia de quem se tratava, até porque se eu ficasse estudando e memorizando nome por nome estaria na biblioteca até agora.

— Eu não sei. Mas acho que o Parleek estava adoentado há algum tempo.

— Não acho que seja sensato vocês ficarem tentando palpitar sobre a morte de alguém. Não sabem que essa energia aprisiona o espírito?

Sugeri aos dois pois meus pelos começavam a se arrepiar por debaixo da capa grossa e não por realmente acreditar nisso.

— Não seja medrosa, Lady Desastre, que mal os mortos podem nos fazer?

E passando por mim para chegar em Alexandra, andando de costas para o caminho, Eirie pegou em meu queixo e fez questão de dar uma piscadela. Bufei e cruzei os braços. Com mais uns quarenta minutos de caminhada aguentando Eirie  chegamos na casa nova. Ela tinha dois andares, sala de visitas, cozinha e copa, banheiros em ambos os andares e na parte cima tinham quatro quartos, todos com sua própria sacada, outra saleta e o pequeno sótão que se abria por uma passagem no teto do corredor. Apesar de parecer ter sido abandonada há anos, era algo bem próximo de um lar de família, só nos faltava o mínimo de civilidade e harmonia entre os membros que habitariam nela. Como o prometido, no lado de fora o espaço era grande o suficiente para eu destruir tudo sem me preocupar em machucar outras pessoas. E a casa ainda ficava situada de frente para um lago.

— Lamento não ter nada em sua despensa com que possam se alimentar. E lamento mais ainda precisarem se esconder como ratos covardes.

— Não se preocupe, eu me acostumo.

Depois que ela falou eu fui perceber o que ela disse e mesmo sendo comparada com um rato covarde, nada podia ser feito. Pelo menos esses ratos poderiam respirar um pouco.

— Além disso, podemos conseguir comida e mantimentos por nossos próprios meios.

Eirie concluiu com o que, apenas mais tarde e com ojeriza, eu viria a saber o que significava. O primeiro dia passou em um piscar de olhos, mas a noite não. Nos pesadelos agora a mulher misteriosa insistia que precisava me mostrar algo que parecia estar relacionado ao seu passado e àquele lugar para onde ela e o rapaz iam sempre juntos. Mas a dúvida estava me corroendo novamente e a cada dia ela se tornara mais real, por outro lado, eu ficava mais certa de que precisa descobrir o que havia de tão importante para eu saber.    

Sendo assim, comecei a planejar uma maneira de sair de Lanóvia e voltar para a floresta, a fim de finalmente desvendar esse mistério que me assombrava mesmo eu estando de olhos abertos. É lógico que não contava com a aprovação de Alexandra e nem muito menos a de Eirie, mas também não iria pedi-la. Isto era por minha conta. Mas primeiro eu tinha que dar prioridade àquilo que tanto buscava fazer desde o princípio, entender e controlar meus poderes. Não seria tarefa fácil já que eu e meu mestre vivíamos em total falta de sintonia. Nossa relação, desde o início tinha mais baixos do que altos e o grande fato era que um não confiava no outro. Por isso decidi ter uma conversa bem franca com ele logo ao amanhecer. Fui até seu quarto e encontrei a porta aberta por isso resolvi entrar sem pedir. O garoto estava sentado na cama, de costas para a porta, então creio que nem tenha me visto entrar. Quis aproveitar, dar meia volta e sair, mas respirei fundo e segui em frente.

— Eirie? — Comecei meio sem jeito, já que ele parecia mais concentrado em outra coisa. — Posso falar com você?

— Já está falando.

Engoli em seco. O humor dele não era propício a diálogos logo pela manhã, mas também não melhorava muito pelo resto do dia, por isso resolvi relevar.

— Antes que comece a me dar sermão, eu preciso dizer que temos um grave problema de comunicação e confiança.

— Ah, isso é sério? Muito bem observado, parabéns, Sherlock Holmes.

Apesar do sarcasmo, notei que ele realmente parecia duvidar da seriedade das minhas palavras.

— Eu só gostaria de sugerir que a partir de hoje sejamos francos um com o outro e com nós mesmos. Acho que isso pode nos ajudar no treinamento.

— Bem, então já que pediu com tanto carinho, vou ser bem franco. Estamos em guerra, não em um parque de diversões. Não há ninguém no mundo em quem possamos confiar. A sua própria mente é traçoeira e até a sua Matriz quer exercer poder sobre você. É nítido que teremos muito trabalho até você poder ser considerada "razoavelmente boa". — Ele finalmente se virou para mim —  A partir de agora você só tem que pensar nisso e abandonar todas as coisas que te prendem ou te inibem, como os seus sentimentos pelas pessoas com quem se importa.

— Sabe, Eirie, eu fico triste ao ver o quão doutrinado a crer cegamente nisso você se tornou.

— Doutrinado?

O cenho dele se franziu com aquela afirmação, então soube que consegui prender sua atenção ou sua irritação, porque Eirie não disperdiçava a oportunidade de bater de frente comigo e eu o mesmo. Eirie finalmente se levantou da cama e começou a se aproximar lentamente.

— Você não me conhece, Lizlee. Você não pode afirmar coisas sobre mim como se tivesse ideia de como foi a minha vida até hoje. Você vem com essa conversa de que quer franqueza, mas a verdade é que só pretende provar que consegue me atingir. Acho que esquece que em pouco tempo pode nem haver um lar para onde você possa voltar e que sem a minha ajuda vai ter que trilhar esse caminho completamente sozinha e não conseguiria.

— Em primeiro lugar, a minha intenção não era atingir você. Caso tenha causado esse efeito, espero que aprenda a lidar com isso, porque eu tento lidar com suas tentativas de fazer o mesmo comigo. E em segundo, percebeu que ficamos igual dois idiotas discutindo o tempo todo? Isso é perda de tempo e eu estou, simplesmente, cansada disso. De hoje em diante, só troque palavras comigo se forem instruções de treino. 

— Achei que nunca fosse me pedir isso.

Irritada e com vontade de chorar – mas não na frente dele para não lhe dar esse gostinho – saí do quarto batendo a porta logo atrás de mim. Em seguida, voltei e concluí:

— E não precisa me lembrar, todos os dias, que eu estou sozinha no mundo daqui para frente, por que eu já percebi faz muito tempo. E não me importo, eu vou conseguir com ou sem sua ajuda. Mas nem por isso eu vou me humilhar e mendigar sua companhia ou o seu apoio.

Infelizmente dessa vez, por mais que tenha me esforçado, não consegui segurar o choro antes de fechar a porta novamente e ele veio em uma torrente rolando quente por minha face. O plano de não chorar na frente dele tinha ido por água a baixo. Ao ver isso, Eirie tentou se aproximar mas eu o repeli. Não queria que ele viesse até mim como se depois de me fazer sentir um lixo pudesse resolver todos os problemas com um abraço que mais tarde se dissolveria em qualquer discussão.

No entanto, naquele momento nem mesmo o meu orgulho foi forte o suficiente, e se a franqueza me servia para alguma coisa eu realmente admitia que precisava de um abraço e ele veio de quem eu menos esperava. Eirie me envolveu com os braços, fazendo com que ficasse totalmente presa, não permitindo que me soltasse até que meus soluços diminuíssem – principalmente por ter relutado no início. E foi no mínimo estranho não precisarmos nos expressar com palavras, por que  Eirie finalmente pareceu compreender e – mesmo que fosse apenas por não saber como lidar com a minha vulnerabilidade – ele respondeu com o silêncio. O silêncio que eu precisava para ouvir a mim mesma.

 

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