Capítulo XVIII -

— Não acha que precisa dar um tempo e descansar?

Phil veio até mim e indagou, saltei um pouco assustada pela aproximação repentina e ele acabou parecendo incomodado com a reação que eu acabara de ter. Antes eu conseguisse explicar.

— Não, eu não acho. Como alguém que tem o dever de proteger as pessoas de uma extinção em massa eu estou sendo um fracasso, não acha?

— Na verdade, acho que você está se punindo demais por algo que não fez. Não é culpa sua.

Naquele momento, já estavam fazendo quase dois dias do ocorrido no Templo de Harevna. Estávamos parados em outra vila que compunha os Vilarejos Baixos, chamada Nevasca. Nosso carro havia dado algum defeito de novo e ao invés de aproveitar aquela parada para descansar ou me alimentar direito, fiquei buscando informações a respeito de Accáli nas notícias ou mesmo escutando o falatório do povo nas ruas. Anotava o máximo de peças que conseguia reunir porém não havia quase nada ou algo que fizesse sentido nem para comprovar e nem para refutar minha teoria de que a mataram por tê-la confundido comigo.

Lady Desastre, já está na hora de desistir disso. Essa sua "investigação" não vai chegar a lugar nenhum. — Eirie reclamou. — E mesmo que leve, o que vai fazer depois? Ir atrás dos culpados dando uma de justiceira?

Eu fingia não dar ideia ao que os dois diziam, continuei pegando as folhas com as informações que anotei e me preparava para sair daquele casarão abandonado onde estávamos nos escondendo quando Eirie lançou uma rajada de vento que fechou a porta com tudo.

— Chega, Lizlee! Por que você está tão obcecada pela morte dessa garota?

Parei e fiquei calada por mais um minuto. Eles também não se manisfestaram. Suspirei pesadamente e iniciei, sem me voltar na direção deles.

— A morte do meu pai. Assistir Accáli ser assassinada... me fez lembrar da noite em que eu o perdi. — Senti um aperto no peito e a garganta dar um nó. Me virei então para onde ambos estavam parados também em pé. — A forma como aconteceu, um atirador que ninguém mal viu, foi tão parecido... eu não sei. É como se a mesma pessoa tivesse feito os dois trabalhos.

— Você acha que tanto a morte do seu pai quanto a da garota no Templo tem alguma ligação? Mas qual seria? — Eirie questionou quebrando o instante de silêncio que havia se feito depois da minha revelação.

— Acho que o assassino do meu pai estava atrás de mim e não dele. Isso explicaria ter matado a Accáli por termos semelhanças.

Fiquei séria e as lembranças do baile, a música, os risos, a dança e o sangue ao redor de mim e meu pai começaram a pipocar em minha mente. As coisas que o ouvi contar ao amigo, a nossa conversa e o jeito estranho com que ele agia naquele dia me davam mais certeza que minha linha de raciocínio tinha certa lucidez. A voz de Philip veio ao longe e lentamente ganhou força e nitidez me arrancando do transe.

— Deveria ter nos contado sobre isso. Poderíamos ajudar.

— Como? O que poderiam ter feito? No início eu queria encontrar um jeito de me comunicar com as Divindades para me livrar desses poderes, mas depois... depois comecei a pensar que talvez esses poderes seriam justamente a chance que eu precisava para vingar a morte dele. Só que, independente de encontrar o culpado ou não, nada no mundo traria meu pai de volta. Não pude impedir que ele se fosse, mas com meus poderes deveria ter sido capaz de evitar que o mesmo acontecesse a outras pessoas... e eu não fui.

— Acho que essa é a oportunidade que você precisava — Eirie começou a falar saindo da penumbra de um dos cantos da sala completamente empoeirada do casarão e vindo até mim — para entender a importância de começar a valorizar o meu conselho e seguir a merda do plano.

— Por que você é sempre tão grosso e insensível, seu... seu imbecil?

Explodi e gritei dando soco na mesa que fez tudo que estava em cima dela, inclusive os meus papéis, saírem voando pelos ares. Eirie estava fazendo comigo o que fazia de melhor. Ele desestabilizava minha mente pois já sabia que nem precisava fazer muito esforço para isso. Mesmo assim, ele não merecia minhas lágrimas. Ele não merecia nada de mim.

— Se acha que eu sou insensível, você não conhece o mundo. Está querendo ser uma heroína que você ainda nem tem capacidade para ser. Mesmo que estivesse certa na sua teoria sobre essas duas mortes, você não conseguiria enfrentar o assassino sozinha.

— Isso se for um mesmo assassino nos dois casos. — Phil se colocou na conversa. — Acredito que, mesmo tendo um modus operandi, não poderia ser o mesmo. Se fosse teria distinguido vocês duas uma vez que já havia te visto antes.

Philip poderia estar certo. De qualquer modo, nunca teríamos certeza se não encontrássemos o assassino e o fizéssemos falar. Como não sou de dar o braço a torcer, ergui ainda mais a cabeça sem hesitar em nenhum momento.

— Essa questão é pessoal. Entendo se vocês quiserem ir para Lanóvia, mas eu  preciso saber o que aconteceu. Só assim terei paz.

— Você deve estar perdendo o juízo, Lady Desastre. Qual a dificuldade em entender que bater de frente com essas pessoas não trará ninguém de volta a vida? Na verdade, é mais fácil que você também perder a sua.

— Você acha que eu devo fugir da luta quando ela vem até mim? Eu sei que sou parte do problema, mas também sou parte da solução. Se querem me ver morta, significa que não querem que nossa raça sobreviva.

Esbravejo contra ele, perdendo o mínimo de paciência que tentava manter.

— Isso não é da nossa alçada, Liz. —Phil passou entre nós dois e tomou a cabeceira da mesa. — Há anos que o nosso Regente sabia que essa aliança com a Quarta Regência poderia ruir a qualquer momento. Ela só servia para ganharmos tempo de nos prepararmos para a guerra.

— E que papel eu tenho nisso?

Mantenho o tom mais equilibrado possível ao falar com Phil e evitar transferir minha raiva para ele, mesmo assim, minhas palavras soaram sarcásticas.

— Nenhum. O Regente do Fogo e os Conselheiros vão fazer o que deve ser feito. Não vamos interferir para impedir o avanço do plano dos Guardiões, eles cuidarão disso. É simples.

— Esse é o problema. Nada disso é simples.

— Coloca uma coisa na sua cabecinha oca, enquanto mais nos envolvemos nesses assuntos, mais pessoas dessas que você tanto quer proteger morrerão.

Eirie falou com naturalidade e pausadamente sobre isso buscando me convencer de que o assunto era uma questão superior ao nosso alcance, porém, éramos nós que tínhamos a missão de salvar esse povo, então nós precisávamos nos posicionar.

— Então essa é a grande estratégia?

— Por enquanto, sim. O inimigo agora são os manipuladores de metal e não o Regente do Fogo. Nesse momento ele é seu aliado.

— Aliado? Ele mandou você me sequestrar. Ele ia me dar uma sentença de morte. — A cada frase pronunciada eu batia contra a mesa com o punho cerrado.

— Infelizmente, Lizlee, às vezes precisamos jogar o jogo deles. É preciso ter paciência, manter nossa cabeça no lugar e agir estrategicamente.

— Do jeito que as coisas andam, Philip, vai ser um milagre chegarmos ao fim disso tudo com a "nossa cabeça no lugar". E não estou falando apenas de mim, vocês dois também.

Aponto para ambos com o dedo indicador e lhes dou as costas indo em direção à saída. Depois que saio, bato a porta com outra rajada de vento como Eirie havia feito minutos antes. Não demorou e eles estavam vindo atrás de mim nas vielas escuras, úmidas e pontilhadas de neve.

— Mexer com os Guardiões de Metal é ameaçar toda a Regência da Terra, que por acaso, é a que detêm o monopólio da indústria bélica em Una Royal.

Primeiro a ouvi a voz de Philip, mas continuei a passos firmes sem deixar que o frio me incomodasse. Depois, a irritante voz de Eirie entrou no meu campo auditivo. Como sempre, o Guer-Matriz tinha ótimos comentários que eu preferia não ignorar.

— Mas se preferir uma calorosa recepção de tiros, vá em frente e os desafie sem minimamente conseguir usar seus poderes.

— Não se esqueça que eu não sou a única aqui com uma Matriz Elemental dentro do corpo e que os manipuladores de Metal adorariam te destrinchar para tê-la.

— E você, não se esqueça que ainda precisa da minha ajuda para aprender tudo sobre os seus poderes e do quanto você ainda é fraca.

— Eu não sou fraca. Posso não saber me dominar, mas não... sou... fraca. — Fui o empurrando para trás com fortes correntes de ar congelante a cada pausa na minha fala.

— Tão fofa. Me fez cócegas.

Ele abriu um sorriso de lado e enviou uma única corrente pelo menos duas vezes mais forte do que as três que enviei juntas. Fui lançada para longe com violência e só parei quando dei com as costas em um muro, caindo de joelhos no chão.

— Pare de lutar, Lady Desastre. Estou te ensinando mais uma lição: não desafie um oponente se não for conseguir derrotá-lo.

— Não posso simplesmente aceitar que não têm outra saída. — Sussurrei quando ele chegou bem perto de mim.

— Você não entendeu a lição. Sua outra saída é entender e dominar seu poder, aprender e aperfeiçoar suas habilidades, estudar seu oponente e se preparar mentalmente, pois você só terá uma oportunidade e não pode errar.

O garoto do fogo me estendeu a mão, meu peito ainda subia e descia recuperando fôlego, no entanto, peguei e firme ele me puxou de volta. Eirie pegou em uma mecha do meu cabelo e abriu um sorriso estranhamente conhecido, estava planejando fazer algo que eu não gostaria de saber.

— Precisamos mudar isso.

— Ah, não. — Exclamei de olhos arregalados e dei um tapa na mão dele tirando-a dali. — Não, o meu cabelo não.

— Cortamos então, não tem problema. Só não vai dar o mesmo efeito.

— Eu vejo problema. É o meu cabelo e não o seu.

— Olha, Eirie pode estar certo. Você mesma disse que pessoas estão morrendo apenas por se encaixarem em uma descrição como a sua. — Phil finalmente voltou a falar, mas era apenas para pronunciar-se em defensiva pela sugestão patética do amigo.

— Seja boazinha, Lady Desastre. Salve Una, por favor. Nós imploramos!

Eirie debochou, juntando as mãos e fingindo suplicar fazendo cara de coitado como se aquilo fosse me convencer.

— Não precisa ser muito esperto para saber que mudar o meu cabelo não vai impactar as ações doentias dos seus governantes.

— Mas vai fazer você sobreviver. E a mim também, é claro.

— E a minha vida é mais importante do que a das pessoas que estão sendo assassinadas?

— Quantas delas tem o poder que nós temos?

Franzi o cenho e cruzei os braços na frente do peito. Era inacreditável o desprezo dele pela situação caótica que estava se desenrolando em perdas de vidas. Além disso, seu egoísmo e arrogância, também não ficavam atrás e me faziam repensar meus motivos para ainda estar indo atrás dele, já que o mesmo já havia deixado claro que nunca denunciaria Phil por traição e eu só estava presa à ele para manter a segurança do meu amigo.

— Eu não concordo com nada disso. — Suspirei desesperançosa.

— Não precisa concordar, é só seguir o plano.

— Só queria poupar as pessoas de tanto sofrimento e acabei por ser a principal causa do sofrimento delas.

O garoto articulou uma resposta rápida e dolorosamente sincera, gesticulando sem muita coordenação – o que demonstrava o quanto se irritava com a minha percepção da situação.

— Quer poupar as pessoas? Então vai ter que deixar que algumas vidas sejam sacrificadas para que outras sejam salvas. Infelizmente não podemos fazer nada, apenas lidar com o cenário e as armas que temos.

— Gente, não foi aqui que paramos o carro?

Questionei, intrigada. Eirie teve uma resposta segundos mais rápida que o seu amigo e correu até a saída do beco.

— Fomos roubados!

Ele constatou e correu pela rua. Phil, o acompanhou e eu não quis ficar ali sozinha, lógico. Avistamos o veículo se preparando para virar algumas esquinas a frente para a esquerda sendo conduzido por dois garotos. Gritei para eles com a voz entrecortada pela falta de fôlego.

— Precisamos desestabilizá-los.

Phil lançou suas estacas congeladas que se partiram contra a superfície preta descascada do carro, conseguindo somente atingir e estourar um dos pneus traseiros. Eirie utilizou a régia de metais para atrair o carro de volta para nós. Ouvimos um som estridente e metálico, sinal de que o esforço do Guer-Matriz estava sendo útil, apesar de o jovem motorista insistir em acelerar e tentar fugir. O veículo escorregava pelos paralelepípedos da avenida, cantando pneus. Quando estendi a minha mão em direção a ele, não manipulando o próprio mas sim o que estava abaixo dele, o chão segue o mover das minhas mãos e lança o carro para o alto e para trás fazendo com que ele passasse por cima das nossas cabeças e iniciasse uma queda veloz. Uma das portas da frente se abriram e alguém ficou pendurado para o lado de fora, em pouco tempo este se soltou. Arregalei os olhos, supresa ao ver que se tratava de um garotinho. Phil construiu uma rampa de gelo, enquanto Eirie amorteceu o impacto do automóvel suspendendo seu peso, fazendo o metal ranger em um chiado agudo no gelo e estalar. Um dos bandidos escorregou pela rampa e o outro tentou fugir meio cambaleante, o que nos possibilitou chegar até os mesmos e os segurar.

— Parados aí! — Eirie ordenou e os dois rapazes ficaram como estátuas, assustados ao ver as mãos dele pegando fogo.

— Por favor, não matem a gente.

— Eirie, olha a cara deles. São apenas crianças. Estão assustados.

— Ótimo! Eles devem ficar mesmo.

O garoto maior aparentava ter uns quatorze anos e o menor – que se escondia atrás do primeiro – parecia ter pelo menos uns doze. Baixei a mão do Guer-Matriz e fui até os dois meninos, tomando cuidado para não os espantar mais.

— Olá, eu sou Lizlee. Quem são vocês?

— Você é a garota da foto.

— Corra e chame o nosso pai e os outros, agora. — O garoto maior disse e empurrou o outro para longe.

— Vamos embora daqui, Liz.

Escutei o chamado de Phil e reparei na quantidade de pessoas que se amontoava em torno da rampa de gelo, afinal de contas ela não era nada discreta. Rapidamente entramos no carro, fugindo novamente para qualquer lugar.




Tudo que eu queria era ficar em silêncio, afundada no banco com aquela péssima sensação de que tudo era minha culpa. Culpa minha as pessoas serem fiscalizadas na saída de suas próprias cidades. Culpa minha garotas serem assassinadas. Culpa minha as crianças terem sua infância deturbada por Caçadores de Recompensas. Eu realmente não sabia se lamentava mais o fato de eu ter nascido assim ou o fato de eu ter que esconder que nasci assim. Acho que na realidade, estava sentindo era raiva por ter me metido nessa história se eu não poderia mover uma palha em favor de ninguém. Mas também, como é que eu poderia saber que seria tão inútil assim?

— Quer que eu dirija? Já fazem horas que estamos rodando sem pausa.

Ouvi a voz calma e firme de Phil, preenchendo o espaço e me chamou a atenção o fato de Eirie permanecer queimando. Ele estava alternando entre tons de laranja e vermelho muito escuro. Phil insistiu até que o garoto reduziu e conduziu o carro para a beira da estrada, dessa forma eles puderam trocar de lugar e para minha surpresa, Eirie não entrou do outro lado, mas sim ao meu lado. Me afastei um pouco, por preucação.

— Descanse um pouco.

— Eu aguento. Vamos logo, Philip. — Ele deu um tapa na parte de trás da poltrona.

— Ele tem razão, você está muito irritado. Não dormiu bem desde a nossa saída de Nevasca.

— Digo por experiência. Coisas ruins acontecem quando me distraio ou não estou em vigília.

Recordo das vezes em que isso realmente aconteceu. Na floresta quando eu fugi e encontrei Phil ou também, quando não sei onde ele se encontrava, eu acabei saltando do penhasco em alucinação. Lembrei também de quando aquele homem asqueroso me assediou no celeiro. Todas as vezes que ele deveria ter ficado de vigia ou alguma coisa o tenha distraído.

— Nada vai acontecer se você dormir um pouco. Phil e eu damos conta.

— Quando chegarmos em Lanóvia você vai estar novinho em folha.

— Só se eu dormir um dia inteiro. — Depois de um instante, ele colocou os pés no ombro do outro banco que estava vazio e concluiu. — Se bem que eu queria. Não sei o que é dormir bem há tempos.

— Eu também. — Phil retrucou e eu logo em seguida.

— Então, aumenta isso para uma semana inteira. Um dia é muito pouco.

Todos começamos a rir. Feito três jovens normais que deveríamos ser se tivéssemos nascido em outra época e em outro lugar, quando vimos, um assunto puxou o outro e em um piscar de olhos desatamos a tratar de coisas normais para nossa idade. Deixamos um pouco de lado qualquer preocupação, medo, incerteza ou rivalidade. Apenas por uma tarde.



A última torre de fiscalização estava vazia quando passamos por ela. Devem ter ouvido relatos da nossa perseguição a um carro que fora roubado dos próprios ladrões – que éramls nós – e ido até lá. Em pouco mais de duas horas na estrada, Eirie finalmente adormecera e o clima continuava esfriando muito mais. Mexi em algumas coisas em cima do porta-malas e encontrei um retalho de cobertor, olhei para Eirie por um instante e me veio uma dúvida repentina.

— Nós podemos nos autoaquecer enquanto dormimos?

— Quando estamos em sono profundo, algumas habilidades podem acabar saindo do controle consciente e se manifestarem sim. — Phil deu certa ênfase nessa última parte — Por que a pergunta?

— Só curiosidade.

Na verdade, a imagem do próprio Philip congelando e em seguida marmorizado como morto encheu minha mente. Enquanto estava distraída cobrindo Eirie, apenas escutei as palavras de Phil sem dar muita atenção.

— Engraçado isso.

— É, eu sei. Parecemos baratas, elas que têm função termorreguladora. 

O garoto começou a rir como se não conseguisse mais parar. Acho que não levou a sério uma palavra do que eu disse.

— Eu não estava me referindo a isso.

— Então não entendi o que é tão engraçado.

Realmente, naquele momento não me passava na cabeça o que eu ouviria a seguir.

— É que, até despropositalmente, vocês se importam um com o outro.

— O que? Ah, bem... da minha parte isso é só uma questão de humanidade. É algo que eu faria por qualquer um. — Vi o olhar de desconfiança que ele me lançou por sobre o ombro. — É sério, não tenho cabeça para esse tipo de relacionamento que você está pensando. Muito mais com o Eirie. Seria impossível.

— É você quem está falando sobre isso. Eu nunca insinuei tal coisa.

Após fingir que havia sido atingido por ser acusado de levantar falso, Phil deu uma risada e eu dei um tapa nele. Soltei meu cinto de segurança e passei para o banco da frente, atrapalhando um pouco a direção e logo pedindo desculpas ao garoto que tinha um sorriso sincero nos lábios que também me inspirou um pouco de sinceridade. Acho que sinceridade até demais.

— Só para deixar bem claro, eu não penso em Eirie dessa forma.

— Coitado, acho que ele nunca vai superar o seu desinteresse.

O observei sorrir docemente mesmo sendo sarcástico, ao mesmo tempo em que notava o quanto sua voz estava carregada de um ar alegre e brincalhão. O sol que atravessava o vidro e batia em seu rosto causava uma palidez que contrastava gritantemente com suas roupas escuras, destacando sobretudo, seu cabelo e seus olhos. Mas  especialmente olhos dele continham alguma pureza inexplicavelmente chamativa e ao mesmo tempo simples.

Em minha cabeça, poderia parecer muito errado mas o meu coração já não ouvia a minha razão nem em situações cotidianas. De repente, lá estava eu, prestes a me contradizer novamente. Ávida por saber como seria beijar alguém e especificamente como seria beijar ele, já que naquele momento eu desejava isso, cedi ao impulso e sem me preocupar com o depois, inclinei meu corpo suficientemente em sua direção, para chegar aos seus lábios e tempo o suficiente para fazer com que o garoto perdesse o controle da direção e fosse parar no acostamento. Foi uma experiência desconcertante e um pouco constrangedora, mas poderia ter sido pior se ele houvesse recuado – o que não fez. Por outro lado, eu podia sentir que havia algo estranho ali e fez eu me afastar querendo enfiar a minha cabeça em um buraco.

— O que eu estou fazendo? Isso é muito errado.

— Liz, tudo bem.

— Não, não está. Porque eu... eu beijei você e... eu não acredito nisso.

Escondi o rosto entre as mãos e balancei tentando negar a mim mesma a cena que eu, conscientemente, acabara de protagonizar.

— Olha, me desculpa. Eu estou muito confusa agora.

— Eu imagino que sim.

— Eu vou voltar lá pra trás.

Enquanto tentava voltar o mais depressa possível para trás e me enclausurar na vergonha, Phil adiou o movimento e segurou em meu braço, fazendo com que eu voltasse o olhar para ele.

— Acho que é minha vez de ser sincero com você. Eu não a vejo dessa forma. Somos amigos. Me desculpe se fiz parecer que estava interessado em você, digo, romanticamente.

Aceno levemente com a cabeça somente para me esgueirar entre as duas poltronas. Quando pensava que mais nada de vergonhoso poderia acontecer, a barra do meu vestido agarrou em alguma coisa e me fez perder o equilíbrio para logo em seguida cair em cima de Eirie, o despertando abruptamente. O garoto agiu por reflexo e me segurou pelos pulsos. Rolei para o lado e ajeitei o vestido, me desculpando com ele. Dali em diante, tentei ficar em silêncio o maior tempo possível. Encostei a cabeça no vidro da janela e fiquei aproveitando a bela paisagem da estrada Vôlvuna, que era recoberta por árvores formando um túnel verde incrível – nem parecia que ainda fazia parte do território dos Vilarejos Baixos. Como Phil já havia dito, seguimos por fora dos vilarejos evitando aparições públicas, como aquela que se desenrolou nas ruas e que nos tornou notórios por algum tempo.

A noite já havia chegado. A estrada estava escura. Deserta. Escolhi permanecer calada e assim o fiz. Ao longe, eu podia ver as últimas luzes acesas das casas mais altas de um dos vilarejos. Estávamos subindo uma serra e o lugarzinho imitava um círculo em espiral decrescente. Ao lado oposto, um conjunto de formações montanhosas brilhantes e deslumbrantes compostas inteiramente por pedras safiras, prendeu toda a minha atenção. Esfreguei os olhos para ver melhor. Eram as montanhas de Safira, fazendo juz ao nome. Sendo assim, ficava claro que chegávamos ao fim desta parte da jornada e Lanóvia estava logo ali, prestes a se revelar cheia de surpresas.

— Acho que agora que estamos bem perto, devo te dizer tudo o que precisa fazer.

Deixei a bela visão das safiras azuladas e encarei fixamente os olhos verdes de Eirie.

— Já aviso que não vou cortar e nem pintar o cabelo.

— Posso falar? — Permiti que ele continuasse, apenas com um gesto.

— Então, a primeira parada é encontrar a pessoa que irá nos ajudar.

— Quem você acha que vai nos ajudar. — Phil introduz um contra.

— Ela vai ajudar.

— Ela?

— Lizlee, só escute pelo amor das forças que regem o universo. Quaisquer que elas sejam. — Franzi o cenho e nós dois bufamos ao mesmo tempo. — Só fique bem quieta atrás de nós até eu dizer que pode vir, tudo bem?

— E tenho que colocar a capa?

— Por favor, não é?

Respirei e expirei profundamente, enquanto avistei um grande muro cercando o que provavelmente seria Lanóvia. Senti um frio se apossar de mim, como um presságio. Coloquei o capuz e escondi as mãos que começavam a tremer ao passar pelo primeiro arco e dar de cara com um portão enorme e sermos barrados por guardas.

— Isso também faz parte do plano?

Não obtive resposta. Phil mantinha a direção na mesma constância. Acho que apenas eu não estava inserida no plano que os dois pareciam compartilhar.

— Desça do carro, devagar. Ande sem parar até o último arco e não olhe para trás. Entendeu?

— Eu não estou entendendo.

Os dois garotos saem do veículo. Respirei uma última vez, imaginando que morte eu teria por tentar entrar sem permissão. Os guardas apontaram suas armas para mim e mesmo sem compreender seu idioma, senti que não deveria ser coisa boa. No entanto, continuei caminhando para o último arco. Tive um pressentimento de que algo ruim estaria por vir e constatei com grande dor e pesar que meu sexto sentido não me enganava. Prefei não olhar para trás e não porque Eirie me instruiu assim, na verdade eu estava com medo de olhar. Só o ruído do aço sendo desembainhado e de lâminas transpassando corpos, dos gritos de dor e de corpos desvanecendo já denunciavam que o pior lado dos meus dois parceiros, estava em ação. E eu repetia para mim mesma que tudo isso era em prol de um bem maior, mas era o bem de quem? Chegando ao último arco, esperei de costas para o corredor de entrada e frente para o portão. Eirie e Phil vieram alguns minutos depois. Angustiantes minutos.

— Vamos. É por ali.

Segui sem questionar e tive a primeira e impactante visão da cidade. A noite dava um tom diferente e misterioso ao lugar, acho que as luzes contribuíram. Haviam muitas pessoas nas ruas bem vestidas ostentando muitas joias, um grande movimento de automóveis, letreiros luminosos, tudo tão organizado e limpo, tudo tinha seu charme e um certo requinte.  Deslumbrada com tudo aquilo, precisei ser puxada por Phil para não me perder. Fiz questão de externar a minha impressão.

— Esse lugar é muito lindo.

— Sim, é. Infelizmente não temos tempo de dar um tour.

Ele respondeu e eu compreendi. Afinal, não estávamos lá para nos divertir. Novamente respirei fundo antes de seguir em frente, só pra ter certeza que embora sentisse que algo importante havia se desprendido de mim no caminho para Lanóvia, estou bem e seguia viva. Subimos as escadarias de um lugar enorme, uma impressionante obra da arquitetura do Mundo Antigo, fachada clara iluminada por luzes propositalmente colocadas para lhe dar destaque à noite. Phil e Eirie sempre iam se comunicando por sinais. No topo da escada vislumbrei algo que me fez arrepiar dos pés à cabeça. Sua roupa escura que obscurecia todo seu rosto e qualquer outra parte de seu corpo, me dão ideia de que eu seria oferecida a uma seita ou coisa assim.

— Me acompanhem!

Ela disse e juntos seguimos a figura estranha até a parte de dentro da construção e fomos para uma sala enorme com uma mesa maior ainda – não que isso fosse possível. Philip, sussurrou para que eu ficasse afastada e pensei que ele nem precisava ter dito, mas por amor à minha vida, segui o conselho. Congelei instantaneamente em meu lugar quando, em câmera lenta, percebi que o capuz daquela criatura estava caindo revelando o que estava por baixo dele.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top