Capítulo XL (AVISO DE GATILHO) -

(Disque 100 Contra a exploração sexual de crianças e adolescentes)

Ao recobrar a consciência senti uma dor aguda e insuportável na coluna. Urrei e me debati de desespero percebendo que meus braços e pernas estavam presos. As lágrimas vinham e transbordavam em meus olhos arregalados e pingavam no chão. Eu estava virada para baixo, constatei.

— Virem ela!

Disseram. E em seguida meu corpo foi colocado na vertical. A mulher na minha frente veio sorrindo e retirou as mechas do meu cabelo que grudavam no suor da minha testa e nas minhas lágrimas.

— Seja bem-vinda ao Templo de Roddein. O seu corpo está inteiro, no entanto, a partir de agora sua mente poderá sofrer uma espécie de fragmentação. Aguarde minhas instruções.

Sua capa esvoaçante acompanhou o movimento de seu caminhar. Sua silhueta foi se diluindo no ar.

Depois de um segundo na escuridão e eu fui transportada para o meu quarto em Leeland. A dor havia parado. Esfreguei os olhos e comecei a tocar os objetos, a cama, os móveis... as memórias ativando-se uma após a outra iam se sobrepondo. Eles se esfacelavam, escapando entre meus dedos como areia. Uma ilusão.

— Onde você está?

— No meu quarto, em Leeland. -— A voz saiu arranhando a garganta, quase como se involuntariamente.

— Abra a porta!

Caminhei até a porta. Girei a maçaneta. Dei mais um passo e saí diretamente no lado de fora da casa.

— Onde você está agora?

— Quem está falando comigo?

Indaguei. Mas seja lá quem fosse não gostou muito de ser questionada. E logo uma nova onda de dor percorreu meus ossos de modo que eu não suportei permanecer de pé.

— Mais uma vez eu pergunto, onde você está agora?

Ergui a cabeça, lentamente. O céu ainda era acinzentado como eu me lembrava. A grama estava molhada e havia muita lama por ali mas eu reconhecia aquele local.

— Perto dos túmulos dos meus pais.

Respondi, amargamente contra minha vontade. Não entendia o que teriam feito comigo para que as palavras simplesmente saíssem sem meu consentimento.

— Vá até lá.

Levantei do chão tentando deixar imperceptível o esforço que fazia para invocar meus poderes.

— Nem tente! Temos total controle sobre você e seus poderes. Agora vá até lá e me traga o Pêndulo! — Ela falou calma e pausadamente.

— Espera. É pra isso que eu estou aqui? — Aumentei o tom. — Porque se for, vocês vão se arrepender por me usar pra violar o túmulo da minha própria mãe.

— Sobrecarreguem-na! Agora!

— Pare de me ignorar! Eu sei que está aí...

No momento em que mais senti que esganaria Roddein se ela aparecesse na minha frente e qualquer um que tentasse me impedir, a paisagem ao meu redor começou a se fragmentar e novas paisagens foram projetadas em flashes curtos, uma aparecendo por cima da outra, desconexas. A tapeçaria em meio às chamas... o cavalo branco se afogando... crianças zombando da minha falta de coordenação motora quando eu era mais nova... ruídos de tiros e sangue em minhas mãos... meu pai morrendo em meus braços... quedas e gritos... as lágrimas silenciosas que cuidadosamente escondi na escuridão de várias noites... meu corpo leve flutuando no ar... o chão tremendo e se abrindo sob meus pés... uma confusão de luz, raios e medo... raiva... frustração... tristeza... desejo... repulsa... alegria... saudade... dor... cansaço...

Fechei os olhos com força. Desejei sumir dali e aparecer em um lugar seguro. Eu estava gritando contra uma voz na minha cabeça e ela dizia "sobrecarreguem-na" repetidas vezes. A dor foi ficando cada vez mais insuportável. E foi quando pensei em me entregar, uma outra voz veio ganhando mais força. Ela me incentivava a levantar e enfrentar isso. Não nego que queria ter ignorado e esperado meu fim, entretanto, quem era Roddein para me dizer o que fazer? Quem era Roddein para decidir que fim eu teria?

— Esse. É o melhor. Que... podem fazer? — Lutei para colocar as palavras para fora e no fim acrescentei uma risada.

— Tragam ela de volta.

Pisquei os olhos e eu estava presa numa maca. De novo.

— Você sabe quem sou eu?

— Eu deveria saber?

— Eu sou Roddein. — Ela segurou e apertou minhas bochechas com as estranhas pontas de ferro de suas unhas afiadas como navalhas entrando em minha pele. — Para sua sorte, a missão foi bem sucedida, então talvez você ainda dure um pouco.

— Está blefando porque sabe que nunca encontrará o Pêndulo.

— Eu já o encontrei.

A revelação deu um nó na minha cabeça. Como ela teria encontrado? Só poderia estar mentindo para me desestabilizar.

— Acha mesmo que vou cair nessa?

— Alguém leva essa garota estúpida daqui. Tenho mais o que fazer.

Roddein revirou os olhos, estalou os dedos e logo apareceram pessoas para empurrar minha maca dali.

— Eu vou acabar com você, ouviu? Vou deixar seu pó para os seus seguidores limparem...

Berrei enquanto eles me tiravam do quarto. Fui conduzida até uma sala vermelha onde finalmente me soltaram e jogaram no chão, eu poderia ter levantado mas minha capacidade motora estava prejudicada então permaneci estatelada com os olhos vidrados no teto, imóvel como um cadáver até ver alguém entrando no meu campo de visão.

— Lizlee? —Tentei olhar, mas não podia me mover. — Ela está viva! — Foi Robertta quem constatou e segurou em minha mão.

— Você e os outros...

— Estamos bem. Quer dizer, Honn e Eirie ainda não se recuperaram completamente desde que voltaram.

Segurei nos pulsos dela com mais força.

— Onde ele está?

— Ali. — Alexandra apontou um dos cantos da sala vermelha onde uma silhueta encolhida tremia e se balançava. — Tentei acalmá-lo, mas meus feitiços não estão funcionando desde chegamos nesta sala. Há algo de errado aqui.

Me arrastei até lá com a ajuda delas e fiz um esforço para me sentar perto dele.

— Eirie.

— Eles estão dentro da minha cabeça. Estão dentro da minha cabeça colocando fogo em tudo.

Seu olhar era vazio e me atravessava como se eu não estivesse ali. Ele também se arranhava enquanto falava. Segurei suas mãos para impedi-lo de continuar com aquilo.

— Por que não se deita um pouco e descansa? — Sugeri afavelmente.

Ele me encarou fixamente, por algum tempo parecendo aturdido, e devagar foi se deitando no chão com a cabeça em meu colo. Muito depois, quando estava prestes a dormir, ele simplesmente disse: "Certamente estou pagando pelos meus pecados".

Passei mais uma noite em claro vigiando Eirie, só que dessa vez seu sono foi tranquilo. O que estava acontecendo com ele e com Honn deveria ser a "fragmentação" da mente a que Roddein se referiu. Talvez os dois demorassem a voltar a ser eles mesmos. Talvez sofressem as sequelas disso depois de muito tempo. Independentemente do que acontecesse, eu continuaria ao lado deles. Suas vidas já teriam sido difíceis demais para abandoná-los depois de tudo isso.

— Você o ama, não é?

O sol estava nascendo e meus olhos, quase fechando quando surgiu Robertta.

— Ahn... o que disse?

— Passou pela mesma experiência atormentadora que todos nós, mas está aí, perdendo o sono só para ter certeza de que ele vai ficar bem.

— Vou descansar depois que acabarmos com Roddein.

— Você tem um plano? — Kell interrogou, vindo se agachar perto de nós duas.

— Tenho uma ideia idiota.

— Melhor do que ideia nenhuma. — Alexandra retrucou seca. Sob a luz vermelha uma mancha preta que se estendia desde seus olhos até o queixo destacou-se em suas bochechas.

— Escutei eles falarem sobre um ritual. Alguma ideia do que seja? — Perguntou Kell.

— É a Unificação. — Nos viramos todos na direção de Brandon, que estava rouco e tossia muito ao fundo. — Surgiram boatos de que havia uma antiga seita com uma crença maluca de unificar dimensões por meio de um ritual chamado "Triângulo de Kou-ja-Frey". O suposto ritual consistiria em reunir elementais, humanos e feiticeiros e, utilizar o poder do Pêndulo para manter os portais de acesso simultaneamente abertos para que se alinhassem. É claro que não deram muita importância já que o Pêndulo... desapareceu.

— Mas agora Roddein afirmou tê-lo encontrado.

Falei mais baixo, mesmo assim todos ficaram calados. Sabíamos que isto poderia mudar o curso normal da vida na Terra e era extremamente preocupante.

— Só eu estou me cagando de medo?

Brandon sorriu para Robertta e mordeu os lábios, arrumando a postura ao se sentar mais perto de nós.

— Mas você disse que tinha uma ideia. — Falou.

— Também disse que era uma ideia idiota.

— Tanto faz. — Ele deu de ombros. — Qual é?

— Cheguem mais perto. Eles têm câmeras escondidas aqui.

— Não seja por isso. — Kell se levantou num ímpeto de raiva.

— O que vai fazer?

Sem se preocupar em responder, Kell girou e arrastou uma das cadeiras que havia na sala e se aproximou de uma das câmeras bem posicionada num dos cantos. Pedaços voaram pelos ares quando o garoto a arremessou com força contra a câmera. Na segunda vez ele a pegou e bateu várias vezes até vê-la destroçada. Ao fim, Kell simplesmente retornou e sentou ao lado de Robertta que permanecia perplexa pelo que presenciara.

Nem um pouco abalada pela atitude do garoto, confidenciei tudo a eles - bem, só as partes que importavam - e esperei que me chamassem de louca, mas para minha surpresa, todos concordaram que deveríamos tentar.

Depois que Honn acordara alegando se sentir um pouco melhor. Eu passei a observar Eirie com preocupação, roendo as unhas. Enquanto isso, ouvia os outros conversarem sobre a bagunça que fizeram com a cabeça deles.

— Me fizeram voltar para o Mali. Eu estava no meio do fogo cruzado junto com as outras crianças e todos chorávamos com os bombardeios, os tiros. Foi... doloroso.

Relatou Robertta, seus olhos se enchendo de lágrimas. Ela as secou e engoliu o choro, afinal de contas, não seria Robertta se não fingisse que estava tudo bem quando claramente não estava.

— E você Kell? — Ela desviou o foco.

— Foi um pouco confuso. Não teve um momento específico como o seu, entende?

Robertta fez que sim sinalizando que entendia se ele não quisesse falar sobre.

— Enfim... se tudo der errado e eu morrer, quero pelo menos honrar meu nome verdadeiro.

— Espera. Como assim? — A testa de Brandon estava franzida e seu corpo, inclinado sobre a mesa na direção dela.

— Adotei um novo nome por ser refugiada. Meu nome na verdade é Tamasha Tuni, por isso "Robertta" com dois "t".

— É um nome muito bonito. Senhorita Tamasha Tuni Madaki Ibori.

Por alguns instantes ela lançou um olhar surpreso para ele, do tipo "como sabe meu nome completo?", mas desviou quando viu um sorriso brotando em seus lábios. Alexandra apenas observava tudo encostada numa parede, a expressão nublada.

— Fique tranquila. Brandon já está combinando os sobrenomes para seus filhos.

Kell riu e deu uma cotovelada em Robertta. Pronto, estava formado um novo embate entre eles.

No momento em que Honn pigarreou eu senti que o clima se modificou, por isso deixei meu lugar distante do grupo e fui segurar sua mão. Os outros olharam para nós. Ela olhou para mim e, devagar, soltou o ar pesado.

— Eu... — Ela fechou os olhos. Respirou e expirou outra vez. — Eu venho guardando uma coisa comigo e preciso que vocês, pelo menos tentem... tentem me entender.

Alexandra acabou se sentando à mesa junto dos outros, enquanto eu permanecia ali ao lado de Honn, segurando sua mão.

— Pensei que pudesse suportar isso sozinha, não ter de dividir com mais ninguém. Simplesmente, eu... eu não consigo mais. Tentei me convencer de que tudo ficaria mais fácil de esquecer com o tempo. E não ficou mais fácil. Aquilo só fez eu me sentir mais culpada...

Ela fez uma pausa. Olhou para o chão procurando uma forma de começar a contar.

— Quando fui vendida, em Flamighem, e o Major Erickson, que na época eu conheci como Carter, me adquiriu, era bastante comum que se fizesse um contrato. Esse contrato servia para garantir minha submissão, evitando que eu não fosse "devolvida". Meus pais me disseram que eu não deveria negar nada que me pedissem e jamais tentar fugir. Mas vocês sabem... eu fugi. Fugi pois ele começou a agir de um jeito estranho com relação a mim. Por algum tempo, tive de me sujeitar, todos na mesma situação que eu faziam o mesmo. Só que...

Honn parou outra vez. Apertei sua mão com mais força. Uma lágrima rolou em seu rosto. Ela tentou retomar uma ou duas vezes. Sua voz saía engasgada. A esta altura Kell já havia levantado e xingado os sete infernos, maldizendo os pais de Honn e o Major Erickson, prometendo que o mataria.

— Pensei que estaria segura aqui. Mas nos reencontramos no Projeto Regenciadores e... ele se aproveitou dos momentos em que fiquei vulnerável.

Robertta encarava o chão com o rosto tensionado profundamente abalada.

— E então eu atirei nele. Eu o matei.

— Monstro desgraçado! Teve o que mereceu. — Ouvi Robertta sibilando, enojada.

— E depois, mesmo depois de tudo, fiquei com medo e vergonha do que iam pensar quando descobrissem o que fiz. Sou uma assassina. Mas eu estava desesperada, perdida e a razão havia me abandonado... estava com medo de perder as únicas pessoas que ainda se importavam...

Honn desabou em meu ombro. A abracei com toda a força que consegui, o corpo dela se sacudindo com os soluços. Kell correu para nós duas. Honn me deixou por um momento e se afundou no peito dele.

— Vai ficar tudo bem agora.

— Não desista de mim. Eu preciso de ajuda. — Ela repetia, abafada pelo choro e pelos braços dele.

— Nunca. Eu não vou a lugar algum.

— Não vamos a lugar algum. — Beijei sua testa.

Depois disso, Robertta, Alexandra e Brandon se uniram a nós naquele abraço tentando transmitir nosso apoio, nosso amor. Infelizmente, não podíamos mudar o que havia acontecido. Não podíamos fazê-la se curar de uma hora para outra de uma ferida tão dolorosa e profunda, mas estaríamos ao lado dela para o que fosse preciso. Ela não precisava mais enfrentar isso sozinha.

Algumas horas depois, eu estava finalmente tendo um tempo para descansar, mas só conseguia pensar em Honn e em ajudá-la. Os outros conversavam o mais baixo possível no lado oposto da sala vermelha. Ele não tinha cama, sofá ou qualquer coisa desse tipo. Havia apenas uma mesa e um um banheiro com pia, vaso e nenhum chuveiro. Absolutamente tudo era vermelho. Não havia janelas, claraboia ou báscula. Era apenas um cubo fechado com sete adolescentes dentro. De repente senti um toque em meu braço.

— Eirie? — Pisquei algumas vezes.

— Você está bem?

— Eu que deveria perguntar isso. Você estava péssimo ontem.

Eirie se recostou na parede e colocou a cabeça entre as mãos.

— Ontem eu senti que estava conectado a outra consciência além da minha. — Ele encarou as mãos estendidas à sua frente tremendo de um jeito estranho.

—Tudo bem. Vai ficar tudo bem.

Fiz um movimento para tocá-lo mas ele me impediu.

— Não Lizlee, não está tudo bem. Acho que estava na sua consciência e sei que não é a primeira vez que algo assim acontece entre nós.

— São só nossas matrizes, nada de mais. — Sussurrei e olhei para baixo. Eirie ergueu meu rosto para que eu pudesse olhá-lo.

— É mais do que isso. Não sei explicar... as minhas memórias foram se misturando com as suas...

— Como assim suas memórias? Eram as minhas.

A porta se abriu de repente. Todos se levantaram. Pessoas começaram a entrar na sala em duas fileiras. Todos também vestidos com mantos vermelho-escarlate. Quando estavam posicionados dentro da sala, virados de costas para porta sem desfazer a formação em fileira, Roddein entrou passando no meio deles. Ela usava um vestido branco tão ou mais esvoaçante quanto aquele de quando me lançou no passado atrás do Pêndulo.

— A preparação para a Unificação começa agora.

Roddein ergueu os braços para a frente e duas pessoas, de ambos os lados seguindo a ordem da fileira, se dirigiram a cada um de nós e prenderam uma coleira em nossos pescoços que ao ser ativada conduzia um choque pela coluna vertebral de quem estivesse usando-a.

— Alexandra. Brandon. Eirie. Honn. Kell. Lizlee. Tamasha. Vocês serão conduzidos para a ala especial onde todos terão seus próprios aposentos e permanecerão até a cerimônia.

Seu sorriso, fala e gestos eram extremamente mecânicos. Nem mesmo quando Robertta tentou avançar para cima dela como um lobo faminto ela se abalou. Eu me abalaria. Sem nossos poderes e com essa coleira maldita preferimos não arriscar muito. Isso também era parte do plano.

O Templo era realmente muito bonito. Os jardins, que eram vários, surgiam para integrar as agradáveis alas muito bem cuidadas. Haviam piscinas que pareciam espelhos d'água. Todo o lugar ostentava luxo e aparentemente transbordava um estado de tranquilidade, tanto que em alguns pátios haviam pessoas meditando ou se alongando com as roupas vermelhas que pareciam ser um padrão por aqui. Acredito que todos concordávamos que teria sido um belo tour se não estivéssemos como animais encoleirados.

De repente, ao chegarmos na tal ala que Roddein havia mencionado, comecei a me sentir sufocada. Não estava nos planos ter um ataque de pânico. Tentei ver os outros para me sentir melhor porém não consegui e isso fez com que minhas mãos começassem a suar. Nossos "acompanhantes" nos fizeram parar em frente as portas de nossos quartos e nos viraram para o largo corredor. O meu ficava de frente ao de Kell. Roddein caminhou imponente pelo corredor. Qualquer um de nós poderia ter pulado em cima dela e a esganado ali mesmo, mas, novamente, ninguém fez nada. Também acho que assim como eu, todos cogitaram sair correndo, mas o medo de ser pegos e ficarmos presos dentro daquela distorção com memórias ruins deve ter falado mais alto.

— Voltarei mais tarde para falar com cada um de vocês. Lembrem-se: controlamos seus poderes e sua consciência.

— Como esqueceríamos se você faz questão de lembrar a cada momento?

Reconheci o tom sarcástico na voz de Eirie e implorei que Roddein simplesmente o ignorasse para o bem dele. Isso, é claro, não aconteceu.

— Então você é o "engraçadinho" da turma?

— É o que parece.

Eu estava quase deixando meu lugar e indo enforcar Eirie para impedir que ele continuasse, quando Roddein retirou sua luva e suas unhas de navalha brilharam começando a deslizar vagarosamente pelo lado esquerdo da mandíbula dele provocando um pequeno corte. Eirie por sua vez manteve-se firme encarando a mulher com um sorriso sádico estampado em seus lábios.

— Existe um feitiço antigo o envolvendo. Consigo sentir, mas não consigo identificar do que se trata. — Esta descoberta a fez ficar pensativa. — Levem os outros para o quarto. O garoto vem comigo.

Passando por mim Eirie ignorou a presença de seus acompanhantes e segurou minhas mãos beijando ambas.

— Vou cuidar disso.

— Vai ficar tudo bem com você? - Perguntei e ele acenou afirmando sendo empurrado pelos acompanhantes em seguida.

Foi a última vez que o vi antes da cerimônia. Durante o tempo que fiquei solitária, imaginei que ele teria finalmente surtado por mexerem tanto em sua mente já perturbada. Fiquei treinando coisas para dizer ou fazer caso o encontrasse muito mal. Mas no fim, só esperava que ele ficasse bem para que eu não tivesse de lidar com sentimentos – os dele e os meus – e com seu comportamento instável.

Estudei as possibilidades de estar errada sobre os resultados que confiava obter pois já havia combinado com os outros. Andei de um lado para o outro dentro do quarto. Toquei uma das paredes que era completamente azulada esculpida em pedra de safira, deduzi que provavelmente estávamos entre as Montanhas de Safira. De repente, ouvi um sinal sonoro e a porta foi destravada. Precipitei um movimento mas acabei levando outro choque na coluna.

— Teve tempo de refletir bastante?

Roddein entrou, puxou uma das cadeiras, se sentou com as mãos sobre a mesa, apontou a outra cadeira para que eu me sentasse e entrelaçou os dedos.

— Sobre o que?

— Ser parte da Unificação.

— As opções não me foram apresentadas. Logo deduzi que elas sequer existissem. — Rebati, estreitando os olhos.

— Não existem opções.

— Então eu não sei o que veio fazer aqui. — Fiz um movimento rápido com os pés afastando a cadeira da mesa.

— Soube que tem muitos perseguidores. Pensei em vir pacificamente e oferecer minha amizade, minha proteção.

— Não estou interessada. — Levantei bruscamente.

— Além disso, seu namorado é muito determinado em manter-se uma incógnita.

Parei. Ela poderia estar blefando outra vez, afinal de contas, para Roddein a Unificação valeria o preço desta humilhação e demonstração de vulnerabilidade. Mas eu pretendia seguir minha linha de raciocínio preestabelecida.

— Se veio aqui achando que eu vou esclarecer suas dúvidas, perdeu seu tempo. Eirie é um mistério até para mim. — Dei as costas para ela, cruzei os braços.

— Ninguém sobreviveu por muito tempo a este procedimento. O estado mental dele irá de mal a pior até... você deve imaginar.

— Eu acho que na verdade você se lembrou que não pode me descartar como faz com seus seguidores, — girei vagarosamente sobre os calcanhares — mas se esqueceu que já é um pouco tarde para forçar uma abordagem amigável.

— Não é um privilégio seu. Já ofereci acordos para seus colegas. Gosto de ver a hesitação em suas expressões. Como se culpabilizam por pensar em aceitar. É divertido. Sabe o que também é divertido?

Fiz que não, oferecendo a ela abertura suficiente para sentir que estava por cima. Roddein era o tipo de pessoa que segue um script somente até o ponto em que seu ego se infla e acaba com a atuação.

— A resistência que apresentam. Vocês lutam, se debatem e eu repito quantas vezes forem necessárias apenas para vê-los se esgotarem. Isso é o que me motiva. Vocês morrem acreditando que se tornarão mártires, mas tudo que conseguem é se unir ao pó como qualquer outro ser insignificante. No fim ninguém se lembrará de quem foram ou o que fizeram.

— E o mais triste deve ser perceber que fez todo esse monólogo para alguém que não está nem um pouco preocupada em ser ou não lembrada e muito menos com o que você fez ou deixou de fazer com os outros. — Apoiei as mãos espalmadas na mesa e pendi meu corpo para a frente. — Tudo o que quero é terminar esse ritual logo e ir para bem longe dessas pessoas, inclusive de você.

Roddein, ficou reflexiva e eu permaneci imóvel, tentando manter a frieza para não aproveitar a proximidade ou o fato de estarmos sozinhas na sala.

— Aprecio sua sinceridade.

Ela disse finalmente, mesmo assim não me movi. Um novo sinal sonoro soou enchendo o espaço e ela levantou. Antes de sair, voltou-se para mim com um sorriso que expressava um ar condescendente. Seus dedos estalaram e um pessoa veio rapidamente.

— Preparem-na para juntar-se à minha mesa esta noite.

Ela meneou a cabeça para mim antes da porta tornar a fechar. E assim, quase que simultaneamente, no meio da parede de safira uma abertura começou a se revelar. Dei alguns passos para trás, balancei as mãos mas nada veio. Esperei. Nada. Segura de que não era um ataque, atravessei a parede e cheguei a um novo cômodo que, diferente dos outros onde estive, tinha outras cores que não só branco ou só vermelho. Atrás de mim a parede voltou a se fechar.










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