Capítulo VIX -
E por incrível que pareça, eu não morri.
Rolei alguns metros, me arranhei inteira, talvez tenha deslocado alguns ossos, mas ainda estava viva. Ao me levantar, minhas pernas tremeram, porém ainda estava ao alcance do inimigo e por isso tive que continuar, ignorando todo o desconforto e dor. Regressei como uma mendiga. Minhas roupas estavam sujas e rasgadas – ou pelo menos mais rasgadas do que antes de eu sair – meu cabelo desgrenhado e cheio de poeira, arranhões em toda pele e vários hematomas, inclusive os das algemas. O sol já mostrava seus primeiros raios quando coloquei meus pés em casa outra vez. Empurrei a porta bem devagar, ela se abriu sozinha – cansada como estava, nem conferi importância a este fato. Só me dei conta da gravidade da situação, quando vi tio James na sala de estar, sentado em uma poltrona, vestido com um roupão e dormindo. Ele devia ter o sono muito leve, pois acordou mau meus pés ruíram contra o chão.
— Lizlee? — Ele olhou na direção da porta bem desperto, como se nem tivesse caído no sono apenas esperando o momento em que eu entraria.
— Onde você estava? Olhe o seu estado.
Balancei a cabeça negativamente e o abracei.
— Não me faça falar sobre isso.
Não que eu esperasse sua compreensão, afinal eu o desobedeci – então fiquei surpresa por ele não insistir mais e me deixar abraçá-lo. Aos poucos, me soltei dele e subi para o quarto, me atirando na cama e dormindo instantaneamente. Tinha sido uma noite longa. Meu sono fora entrecortado por flashes dos acontecimentos anteriores. Como as pessoas conseguiam se submeter à um governo tão opressor tal como aquele? O que aconteceu para que a Cúpula não intervisse e anexasse também este território ao Grande Lizma? Por que me consideravam uma ameaça a ser eliminada?
Mais tarde, já acordada, me olhei no espelho e notei minuciosamente cada machucado ou hematoma. Nada fácil fingir que não aconteceu. Em seguida, enchi a banheira com água morna e me deixei submergir, buscando apenas relaxar e quem sabe esquecer o que se passou. Mas eu estava errada. Relaxar não era uma opção. Prova disso foi que, no meio do banho, tive uma visão. Nela eu estava me afogando no mar e de repente, alguém surgia para me tirar de dentro da água. Eu apenas sentia frio e uma dor profunda até ser levada para a beira da praia. Abria os olhos e apenas a luz do sol inundava minha visão. Quando os olhos se acostumavam com a luminosidade e o contraste enfim dava contorno a paisagem, me sentia puxada para fora da visão. Minha tutora, espantada ao me ver totalmente imóvel na banheira, gritou meu nome e colocou minha cabeça para fora da água sacudindo meu corpo com preocupação.
— Meu Deus! O que você está fazendo?
— Apenas tomando um banho.
— Você quase me mata de susto. — Ela se debruçou sobre a banheira e me deu um forte abraço, molhando a sua camisa de botões preferida. — Eu orei tanto para que estivesse bem e voltasse para nós.
— Também senti a sua falta. — Disse, ainda que um pouco constrangida pela nudez.
— Seu tio já me avisou que você não quer ser questionada sobre o que aconteceu. Mesmo assim, estou aqui. Por você.
Mordi os lábios e soprei a espuma dos meus braços, me preparando para sair da banheira. Não dava para relaxar assim. Embora fosse realmente louvável que estivesse se esforçando para não ser invasiva, o que deveria ser bem difícil para ela.
— Você nos deixou preocupados.
— Eu sei. Me desculpe.
Moggie pegou uma toalha e me enrolou, depois com outra enrolou meu cabelo. Saí da banheira e fui conduzida por ela à penteadeira. Minha tutora tomou todo o cuidado em se sentar atrás de mim, e como quando eu ainda era bem pequena, penteou meus longos e ondulados cabelos ruivos. Ela cantarolava a antiga canção que eu escutava para dormir durante a infância. Uma canção que me recordava momentos bons e por isso meus olhos se encheram de lágrimas. Era bom saber que eu ainda guardava aquelas memórias, entretanto, era ruim saber que tudo acabou daquela trágica maneira.
Fiz minha refeição sozinha, os outros já haviam almoçado – pois já passavam das três da tarde. Comi em silêncio e depois fui ao escritório do tio James, onde ele me examinou. Fiz um passeio nas proximidades da casa, observando a floresta que se agigantava – evitei ficar próxima demais.
— Como foi na floresta, querida? —Peter surgiu sorridente, como sempre, me assustando.
— Sem grandes progressos.
— Mas você não vai desistir, não é?
— Não sei. — Olhei para a terra, algumas sementes já estavam germinando. — Realmente, não sei.
— Pensei que estivesse firme em seu propósito.
— Eu ainda estou. Mas agora, algo mudou. – Suspirei antes de prosseguir. — Agora eu entendo porque meu tio queria me manter longe de lá. Há algo sombrio e perigoso.
— O perigo está em toda parte, não há como evitá-lo. Não enfrentá-lo não vai fazê-lo desaparecer.
Não era a minha intenção discutir com o cozinheiro as regras para a minha própria segurança, era um dia para me recuperar. Decidi voltar para casa, mas antes Mestre Pi me chamou.
— Você poderia me ajudar a cultivar a horta?
— Já aviso que nunca fiz isso. Não me responsabilizo pelo resultado.
Fomos até a horta que ficava na área da cozinha onde ele me incentivou a usar minha habilidade sobre a terra e foi assim que descobri que eu estava sofrendo um bloqueio. Na verdade, nenhuma das minhas habilidades surgiram quando tentei acessá-las. Peter explicou que por estar confusa e ansiosa, mesmo se insistisse inúmeras vezes, eu não conseguiria. O bloqueio estava em minha mente. Ele disse também, que eu deveria deixar que tudo fluísse em seu devido tempo, até porque eu tinha acabado de descobrir do que era capaz e aliás, não me tornaria tão boa de uma hora para outra sem me dedicar a um regime de muita concentração e disciplina.
Enfim, por enquanto só me restava ajudá-lo regando as plantas da horta do modo tradicional. O Mestre me ensinou um pouco sobre os tipos de solo, influência do clima, a melhor época de plantar e de colher e embora o contato com a terra tenha me deixado um pouco mais animada, fiquei preocupada se recuperaria ou não meus recém-descobertos poderes – isso era contraditório, uma vez que eu também gostaria de poder voltar a ter uma vida normal. Mais tarde, ajudei Maya e Peter na cozinha. Eles eram impressionantes e eu mal conseguia acompanhá-los. Felizmente eu tinha ao meu lado, dois cozinheiros incríveis, que foram decisivos no sucesso do bolo com calda de chocolate. O sabor de um chocolate não sintético era incrivelmente delicioso, não sei como as pessoas faziam para parar de comer algo tão bom quanto aquilo.
— O que acha de servirmos o seu bolo de sobremesa?
— Acho que ninguém vai comer nada que tenha sido preparado por mim.
Ele cruzou os braços e refletiu.
— Bem, então nesse caso omitiremos essa parte.
Peter olhou para mim e desatou a rir. Fiquei confusa e ele apontou as minhas bochechas que estavam repletas com a calda que preparamos e eu estava atacando sob pretexto de que era "para não desperdiçarmos".
— Se limpe antes que a Maya volte. — Olhou para fora procurando a chefe na horta para ter certeza que de onde estava ela não nos via. — Ela detestaria ver toda essa bagunça que fizemos aqui.
Atendi ao que ele sugeriu. O cozinheiro continuava com um sorriso no rosto. Enquanto ia até a chaleira que estava sob o fogão e servia um pouco de chá para nós dois, ele decidiu questionar.
— Mas, me conte, o que aconteceu para que desistisse de encontrar suas respostas?
Mordi os lábios e suspirei. Não esperava que esse assunto voltasse, logo quando eu estava me sentindo bem.
— Por algum motivo, não sou bem vinda pelas pessoas de lá. — Apontei a floresta com a cabeça, enquanto levava a tigela para a pia.
— E desde quando a opinião de meia dúzia de pessoas tem mais poder de decisão do que a necessidade de uma raça inteira?
A pergunta me fez parar para refletir: será que eles não estavam depositando muita fé em uma garota tão frágil assim? O que eu poderia fazer para ajudar essas pessoas? Minha existência estava sendo ameaçada e eu tudo que eu estava fazendo era justamente tentando evitar a ameaça a existência deles.
— Acho que, desde quando essa "meia dúzia de pessoas" aparentemente tem seus motivos e dispõe de meios para me eliminar a qualquer momento.
Mestre Pi, que acompanhava minhas palavras com muita atenção, como um bom ouvinte, pegou em minhas mãos.
— Você não deve ter medo da sua missão. Os perigos existem e podem surgir muitos inimigos pelo caminho mas nós precisamos de você. As Divindades Maiores precisam de você.
— Eu não posso voltar lá. Não estou preparada. — Soltei-me de suas mãos e me afastei dele. — Se eu voltar, não sei o que pode acontecer comigo.
Fitei o chão, desolada com a realidade. O problema que eu deveria enfrentar parecia muito maior do que eu imaginava depois de ter passado a noite em uma cela. Eu não sabia por onde começar. Era tudo muito novo e estranho.
— Lizlee, se ficar aqui te impede de cumprir seu destino é porque este não é o seu lugar. Sem contar que o nosso tempo está passando e podemos desaparecer para sempre. Vocês Guer-Matriz são nossa última esperança.
— Maya não diria isso.
— Maya diria isso sim. — A chegada dela foi tão repentina que nenhum de nós percebeu. — Um Guer-Matriz não pode pensar somente em si. Você deve estar disposta à dar sua vida para cumprir a missão. Com o treinamento certo, toda essa sua insegurança se resolverá.
— Talvez então eu não seja a pessoa certa para essa tarefa. Olha, os meus poderes sumiram de tão aterrorizada que fiquei. Não consigo.
— O medo é natural. Mas um Guer-Matriz deve ser símbolo de coragem e persistência, a chama que aquece a esperança das pessoas e a reconstrução que o mundo precisa. Se as Divindades Maiores lhe deram esse dom, é porquê confiam em seu potencial.
Eu poderia discordar de Maya depois por tentar me fazer mudar de ideia, mas precisava lhe dar razão. Afinal, querendo ou não, aquele agora era meu lar e se não fizesse nada a respeito, seria extinta junto com toda a população de Una Royal. Mesmo assim, eu não me sentia menos pressionada. Mal havia acabado de despertar esses poderes e estava em uma missão para a qual nem me voluntariei, mas que estava sendo imposta. No entanto, tentei não me preocupar em excesso com toda essa situação.
Na hora do jantar, eu já estava apressando a sobremesa, quase deixei que percebessem que eu havia ajudado a fazer o bolo para o nosso petit gateau – sobremesa que eu nem sabia que existia, mas fora até fácil preparar. Enquanto todos se deliciavam, eu ficava de olho em suas expressões esperando ser aprovada ou não. Quando tio James, Moggie e até Cavanaugh terminaram e elogiaram o prato, eu me senti muito mais aliviada e suspirei, soltando o ar apreensivo que segurava. Talvez as coisas não fossem tão ruins quanto pensei que seriam quando cheguei aqui. Por exemplo, enquanto estávamos todos sentados na mesa, rindo e conversando, parecíamos ser uma família de verdade. Eu me senti em casa, pela primeira vez desde que cheguei.
De volta ao quarto, encontrei o embrulho desamarrado ainda na cadeira e me aproximei com cuidado. Retirei um tecido aveludado escarlate e com detalhes dourados feito ouro nas pontas. Desdobrei-o e me deparei com uma imagem já conhecida, era a tapeçaria que aparecia em meus sonhos e que no outro dia surgiu misteriosamente em meu quarto. Além de me enlouquecer com a canção e o piano que tocava sozinho, agora havia alguém – ou algo – tomando liberdade de invadir meu quarto e me deixar "presentes" estranhos com algum significado enigmático. E como se não bastasse, vivia atormentada até em meu sono.
Naquela noite, a misteriosa figura do cavalo cavalgava até a entrada da casa e por alguns instantes corria em círculos pela grama. Então, eu aparecia e o seguia até a floresta, onde ele se encontrava com a mulher que o acariciava e me estendia a mão. Entretanto, como sempre, acabei despertando no momento fatídico. Levantei com uma ideia fixa na cabeça, aquilo tinha que ter um fim. Se algo ou alguém naquele lugar tinha poder para realizar tais eventos místicos e me enviar mensagens em sonhos, eu precisava encontrar e entender o que queria dizer. Talvez, fosse o incentivo que eu precisava ou realmente Maya estava certa e as Divindades afirmavam no sonho que eu poderia seguir em frente, ir até a floresta, que elas me protegeriam. Talvez, de algum modo, fosse a forma de me fazerem desvendar este mistério de uma vez por todas e me devolverem uma vida normal.
Passei em frente ao quarto de Moggie e depois no de meu tio, apenas para conferir se alguém iria encrencar com minha saída tão cedo. Minha tutora ainda dormia e meu tio, já havia partido. Saí sorrateiramente mais uma vez em direção à floresta, carregando apenas a inexperiência de uma garota que acabara de se descobrir como algo que nunca imaginou ser real e muito medo de encontrar com o indesejável. A calma e normalidade do local, poderiam enganar qualquer um. É lógico que, para mim que já havia descoberto os riscos, um pequeno farfalhar de folhas me colocava em estado de alerta.
Repentinamente, fui tomada por uma sensação de estar sendo seguida ou vigiada. Olhei para todos os lados. Respirei fundo ao não encontrar ninguém e fui procurar um "esconderijo" onde eu pudesse ter uma boa visão, mas que me protegesse se qualquer um surgisse. E de lá visualizei a última pessoa que eu desejava encontrar. E vinha muito atento e focado, com arco e flecha em mãos. Sua aljava ostentava diversas, reluzentes e pontiagudas flechas. Ele estava caçando alguma coisa e eu esperava que não fosse a mim. Em algum momento, o perdi de vista, mas não durante muito tempo. Escutei o ruído da fricção da flecha sendo puxada contra o fio e quando me virei, tinha uma apontada para minha testa.
— Porque demorou tanto? — Ele me olhou de cima para baixo, já que eu estava ajoelhada no chão.
— Eu quem pergunto. Estava ocupado? Eu poderia ter vindo em outra hora que não incomodasse o Lorde.
Respondi debochada. Seus olhos se estreitaram e a flecha continuava contra minha testa. Achei que estaria morta ali mesmo em dois segundos, mas não foi o caso.
— Não achou mesmo que fosse me surpreender, não é?
— Eu apenas quis retribuir o favor. — Respondi no mesmo tom irônico, em referência ao dia de minha chegada à Una Royal.
— Pena que teria que fazer muito mais do que isso.
— Não vim aqui com essa intenção.
Permaneci firme enquanto ele recolhia o arco, o apontando para baixo. Respirei aliviada e continuei.
— Eu creio que já percebeu uma certa similaridade entre nossas... habilidades. — A palavra ficou girando na minha mente, como se eu nunca a houvesse pronunciado antes.
— Se quer dizer alguma coisa, vá direto ao assunto. Não fique dando voltas.
A grosseria dele já estava me irritando. Mas pelo menos ele não havia me enjaulado de novo e estava me escutando, portanto relevei e foquei no que eu havia ido fazer ali.
— Certo. Acontece que eu... — Travei e ele me encarou — que eu vou precisar da sua ajuda.
Naquele momento, eu parecia estar implorando e não era isso o que queria. Não estava confortável em admitir isso, mas também não queria parecer uma garotinha perdida que pediria ajuda até para um sequestrador e possível assassino.
— Ora, ora... você? Você está realmente, me pedindo ajuda?
— Existe outro Guer-Matriz por aqui? — Ele pareceu levemente surpreso com a resposta, até aquele momento deveria acreditar que eu era uma tonta e não ligaria os pontos. — Ora, vamos. Nós precisamos da ajuda um do outro.
Ele deu uma gargalhada sinistra, seus olhos verdes esmeralda brilhavam.
— Você não faz ideia do risco que está correndo em vir até mim, não é mesmo?
— Eu tenho total consciência dos riscos que assumo.
É lógico que eu não tinha, mas também não era obrigada a dar nenhuma objeção a ele e muito menos explicar que estava ali por influência de uma mulher que vi em meus sonhos e de seus enigmas.
— É notável.
Orgulhosa como sou, não poderia deixar que ele zombasse de mim e saísse sem ao menos escutar o que eu tinha a dizer. Então ameacei.
— Você tem duas opções: vai aceitar me ajudar ou eu terei que reduzi-lo a cinzas.
— Duas opções tentadoras, tenho que admitir.
Seu sarcasmo e desdém me deixavam extremamente fora do juízo. Aparentemente ninguém se sentia minimamente ameaçado por mim.
— Eu não deveria ter vindo aqui...
— Não deveria mesmo.
— Mesmo assim corri esse risco por que sei que muitas pessoas precisam de mim. Precisam de nós.
— Poupe o seu discurso de salvar a raça. Ela não tem salvação.
Ao perceber que ele iria me dar as costas e ir embora, inflamei minhas mãos em chamas e mirei nele, buscando ao máximo parecer ameaçadora e corajosa o suficiente para cumprir com aquilo se ele insistisse em se afastar. Havia notado que ele poderia responder à ameaça mais do que à um pedido pacífico. O garoto inclinou a cabeça e me olhou por cima do ombro.
— Se livrar de mim não lhe dá vantagem alguma. Até porque, foi você quem veio me procurar.
— Primeiro, — levantei o dedo indicador com as chamas crepitando sem se apagarem — não vim procurar você e segundo, — ergui o anelar — eu pretendia ameaçá-lo até que concordasse em contribuir.
— E que motivos eu teria para isso?
— Você também é Guer-Matriz, deveria saber que seus dons lhe foram dados com uma finalidade. As Divindades...
— As Divindades Maiores da Natureza não existem! — O garoto revirou os olhos. — Elas foram inventadas por gente alienada que não acredita que a ciência é que nos deu poderes.
Pisquei algumas vezes antes de retomar.
— Não é essa a questão. O limite é real. Me diz, você já tentou atravessá-lo? Alguém já conseguiu fazer isso? Ele também foi criado pela ciência? Estamos presos aqui e o tempo está acabando. Nós precisamos fazer algo. Por nós mesmos.
Uma pequena centelha de esperança se acendeu em mim quando ele se voltou. No entanto se apagou em seguida quando vi sua expressão um pouco intimidadora.
— Esqueça o que planejou. O Regente Zvatrze já tem outros planos para você.
Acabei me exaltando e erguendo o tom de voz.
— Esqueça o seu Regente por um instante e pense com a sua cabeça.
Não dava para saber se ele se sentira insultado, mas aquilo acabou por fazê-lo baixar o lenço que continuava usando – mesmo eu já conhecendo seu rosto – e finalmente, fiquei cara a cara com o garoto. Dei um passo para trás, só por precaução. De repente o garoto se empertigou e começou a caminhar para a borda da uma espécie de estrada, provavelmente estava esperando alguém ou algo lhe chamou a atenção. Não sei de quem se tratava, mas não tinha certeza se iria querer estar ali para ver quando esse alguém chegasse então me apressei.
— Apenas quero propor um acordo de colaboração mútua.
Vi que não seria nada fácil convencê-lo, a julgar pela expressão de desconfiança que ele apresentava. Segui atrás dele e prossegui com o assunto.
— Fiquei sabendo sobre o prazo que temos de agir antes que a raça Guer desapareça definitivamente... sabe, as pessoas com que você se importa? A sua Regência inteira? Estão incluídas nisso. Quanto tempo ainda temos?
— Algum.
— Seja mais específico, quanto? — Pisquei um pouco, ele me deixava confusa.
— Pouco.
Mordi o lábio e ignorei. É certo que ele estava querendo brincar comigo e eu não estava afim de entrar na dança.
— Pois então. Acho que devemos encontrar uma forma de evacuar a população ou não sei, tirá-las da zona de perigo. Para isso talvez nós precisemos desfazer essa coisa, esse limite... — Estalei os dedos como se fosse ajudar a me recordar mais rápido.
— Limite de Una. — Ele respondeu, completando.
— Isso. Só que, é como você mesmo disse, eu sou um alvo fácil. Sou destreinada. Não conheço meus poderes e não consigo reger sem ser por puro instinto de proteção, mas também não quero viver à sua sombra. Sinceramente, eu não estou pedindo sua amizade ou seu respeito e sim para combatermos juntos, sermos aliados até resolvermos essa questão.
Odiei ter que admitir. Muito mais para ele, que com certeza arranjaria uma forma de zombar de mim. Ele fez cara de pensativo, mas logo sua pupila se dilatou – como se estivesse recebendo um estímulo que só ele poderia decodificar.
— Ei, eu ainda estou falando com você. — Balancei a mão na frente do rosto dele, que estava com as feições congeladas.
— Fique quieta. — Ele ordenou e eu não gostei do tom.
— Posso saber por quê?
Ele chegou, sorrateiramente para trás de uma árvore robusta de tronco forte e grosso. O segui até lá, olhando em volta.
— O que você está fazendo aqui?
— Me escondendo. É o que você está fazendo, não é?
Questionei. Ele pegou uma flecha escura como a noite com a mão livre e girou-a por cima do ombro trazendo-a para a frente. Com ambos apontados para baixo, encaixou o objeto pontiagudo entre os dedos e contra o fio preto e opaco de seu arco, para depois acertar sua postura e posicionamento.
— Não estou me escondendo, estou espionando. Agora, sai daqui.
O garoto simplesmente bateu o pé no chão e imediatamente senti meu corpo sendo impulsionado por uma rajada de vento. Instantes depois, caí longe do esconderijo, com o rosto na poeira da estrada de terra que cortava a floresta. Um grupo de pessoas que ainda vinham um pouco longe, partiu em minha direção e eu levantei me preparando para correr.
— Pare onde está, garota!
Um dos homens ordenou, sua voz era forte, impostada e amedrontadora como um trovão. Uma mulher que corria junto com eles, destoou na frente do grupo lançando um fio de aço, que se prendeu à minha perna e me fez cair para depois ser arrastada. Cravei minhas unhas contra o chão, tentando impedir aquilo, mas foi em vão. Tudo foi rápido demais.
— Bom trabalho, Sandelize.
A parabenizou. Todos pararam de correr e ela se agachou na minha frente, pegando em meu queixo e erguendo meu rosto para encarar o dela, enquanto passava por sua análise. Suas feições eram sérias. Seus olhos eram negros e seus cabelos amarrados em uma trança perfeita, eram longos e escuros como a noite. O macacão dela era repleto de detalhes em aço, além de várias lâminas que suas luvas escondiam, mas eu conseguia ver pela minha posição em relação à ela.
— Será que temos aqui a nossa garota Guer-Matriz? Ela bate com a descrição.
— Deixe-a comigo, querida.
Ao ouvir a ordem, as unhas da mulher se fincaram em minha pele e me fizeram levantar, mesmo contra a minha vontade, me arrastando e conduzindo até o homem ruivo e de olhos castanhos profundos para depois simplesmente me atirar aos pés dele.
— Levante-se, garota.
Ele exasperou-se e puxou meu cabelo. Reclamei de dor e um outro rapaz, mais jovem e magro, se aproximou de mim. O ruivo me deu um empurrão e parei bem próxima do garoto. Ele me estendeu a mão.
— Eu sou Laurell, não se assuste. E você, como se chama?
Não respondi, apesar dele parecer inofensivo. Em seguida, o jovem não deu muita importância e seguiu realizando uma espécie de ritual esquisito, retirando uma lâmina de aço do bolso e a girando em pleno ar ele fez o objeto se transformar em uma seringa com alguma substância dentro. Depois segurou meu pulso e punsionou a agulha contra minha veia – Sandelize, mantinha o meu outro pulso bem preso. Na mesma hora em que ele apertou o êmbolo, a minha veia e as suas ramificações queimaram e saltaram sob a pele. A parte mais estranha – embora todo o resto não fosse lá muito normal – foi quando o garoto retirou e lambeu meu sangue que escorria e acenou positivamente para o ruivo.
— Parece que você estava certa, minha querida Sandelize. Ela é a Guer-Matriz.
Os outros apontaram seus punhais, facas e flechas na minha direção.
— Quem são vocês e o que querem comigo? — Indaguei já alterando a voz em preocupação.
— Eu sou Khan. Essa é Sandelize, minha esposa, os outros são Laurell, Sean e Dália.
O homem ruivo apontou para a mulher de trança, depois para o garoto magricela que havia lambido meu sangue e em seguida, para um homem grande e musculoso e para uma bela moça negra, alta e esguia, respectivamente.
— E fomos enviados em nome do Regente da Terra para localizá-la, capturá-la e levá-la até a sede Regencial, em Régians.
Depois dele fazer um sinal com a mão, os outros foram me levando pelo caminho, enquanto Khan e Sandelize ficavam um pouco para trás conversando. Vindo de encontro à eles, mas por trás, estava o garoto do fogo.
— Acho que eu também devo me apresentar... — Todos se viraram para olhar o rapaz que chegava, exceto Dália, que ainda tinha os seus olhos pretos e expressivos, voltados para mim. — Meu nome não é o detalhe mais importante, então devo ir direto ao ponto. Fui enviado pelo meu senhor em uma missão e esta é a minha prisioneira.
— Ela? — O tal do Khan, apontou para mim. — Tem muita gente atrás dela.
— Presumo que sim. Mas eu a encontrei primeiro. — O garoto se manteve firme.
— Não fez bem o seu trabalho, tanto que ela fugiu.
Khan debochou, alguns dos outros riram. Eu já estava vendo o momento em que o garoto acenderia e queimaria todos nós ao seu redor.
— Eu tenho ordens a cumprir. Devo levá-la a Monigram, para o Regente do Fogo.
Os outros estremeceram ou pelo menos se incomodaram com a menção do título, não sei por que aquilo os causava espanto. Apenas Khan, se mantinha inabalável.
— E eu tenho ordens também de meu Regente.
O jovem sequestrador parou e refletiu, mudando de estratégia.
— Senhor Khan, eu o entendo perfeitamente e admiro sua postura. Imagino que seja tão fiel ao seu senhor, como eu sou ao meu. É louvável. Tem o meu respeito.
— Vejam que jovem sensato! — Ele se dirigiu aos outros. — Podem amarrar e levar a garota.
A tal da Dália se aproximou com outra seringa e o homem forte me segurou por trás. Comecei a gritar à medida que a moça injetava algo novo em minha veia. A sensação de queimação foi substituída pela de resfriamento e de contração das minhas veias. Senti a temperatura caindo, a boca secando, minha cabeça latejando, fui ao chão e por impulso ou descontrole cheguei a deslocar do chão vários torrões de terra que entraram em órbita girando pelo ar.
— Espere. Eu ainda não terminei. É louvável, porém injusto. E eu proponho uma troca.
— Qual?
— Eu entrego a garota, mas preciso de uma boa quantia em troca. Você entende que não posso voltar de mãos vazias e decepcionar meu Regente.
O homem encarou o garoto e bufou, como se estivesse cansado de perder tempo naquela conversa.
— Não lhe darei dinheiro algum por essa menina que não é digna nem do ar que respira.
Revirei os olhos me sentindo insultada e diminuída. Meu estômago começou a se revirar, minha visão estava embaçando.
— Sem dinheiro, sem garota.
Num movimento habilmente veloz, o jovem acertou um punhal no peito de Khan. Sean, que era quem me segurava, deu uma afrouxada como se estivesse hesitando em ir ou não ajudar Khan, então eu aproveitei a confusão para escapar e ir, cambaleante, até Eirie.
— O que você fez?
Sandelize segurava Khan, seu marido, nos braços enquanto aquele sangue jorrava. O garoto me puxou e saímos correndo.
— Atrás deles. Rápido! — Sandelize gritava, transtornada.
Mais uma vez, eu estava lamentando o meu sedentarismo. Alguns metros de corrida e meus pulmões já estavam dando sinal de uma parada respiratória. Na minha frente, se encontrava aquele que causou tudo. Só estávamos naquela fuga desesperada porque ele cravou uma lâmina no peito daquele homem. Enquanto fazia todo o esforço que podia para salvar a minha pele, não me atentei ao fato de que, por onde eu passava, meus pés deixavam rachaduras e abria pequenos buracos no chão. Mas o garoto percebeu e formulou uma espécie de plano.
— Continue fazendo isso até o meu sinal.
Meus pulmões ardiam e o ar entrava quente pelas minhas narinas.
— Continuar fazendo o que?
— Olhe para os seus pés.
Sem parar de correr, desviando de árvores e pedras, fiz o que ele sugeriu. As fissuras estavam se abrindo. Olhei para trás e estava deixando um rastro. Mais atrás ainda, estavam eles se empoleirando nas árvores.
— Qual o plano?
Passei por debaixo de uma árvore, já perdendo o ritmo da corrida e levei um galho na bochecha, fazendo um pequeno arranhão.
— Apenas faça. — O garoto parecia muito certo do que dizia.
Comecei a dar passadas mais fortes e assim, as rachaduras ganharam novas ramificações. Os pequenos buracos, agora formavam crateras maiores. Ouvimos o barulho no topo das árvores e paramos para ver. Eles estavam nos cercando por cima – que espertos – descendo rápido demais pelos seus cabos de aço. O garoto do fogo assobiou para mim e eu fui para perto dele.
— Está preparada?
Ele perguntou, muito confiante. Ao contrário de mim, que estava apavorada e sem entender nada.
— Preparada para que?
Ele apenas sorriu para mim e bateu o pé direito no chão, não com a força necessária para causar o que veio a seguir, mas sim, com a precisão para causar um desmoronamento capaz de engolir as árvores e os manipuladores de metal. O chão sob os meus pés também começou a ruir e grandes placas de terra se deslocaram para baixo.
Na tentativa de impedir que a cratera me engolisse junto com tudo ao seu redor, golpeei o chão com o ar, o que me possibilitou saltar de um lado para o outro com certa facilidade me impulsionando. Enquanto eu fugia da queda, vi aqueles olhos pretos raivosos surgirem do meio da poeira. Sandelize se agarrou em minhas pernas e me puxou para dentro do buraco.
— Não! Socorro!
Ergui a mão buscando algo em que me segurar, enquanto o peso do corpo dela me fazia cair. Então, em meio a toda aquela poeira e pedras, vejo uma luz. Ou melhor, uma chama. Estava quase me esquecendo que o garoto estava ali, até ele retornar e golpear o rosto de Sandelize com seu fogo impiedoso. Me livrei da mulher e me agarrei a mão que ele me estendia, sendo puxada para fora dali. Uma vez que podia me considerar segura, lancei-me deitada com as costas viradas contra chão e respirei aliviada.
— Se eu fosse você, não daria esse mole ao inimigo.
Coloquei a mão na frente dos olhos para tampar um pouco dos raios do sol.
— Mas eles estão dentro do buraco.
— O que não significa que nos livramos deles.
Bufei, entediada e estendi a mão para que ele puxasse, meneando a cabeça como se pedisse sua ajuda. O garoto olhou e simplesmente deu de ombros ignorando.
— Levante logo daí antes que eles saiam e te peguem.
— Você não está falando sério, não é? — Quando percebi que ele já estava se distanciando, me levantei e corri para alcançá-lo.
— Ei? Como é o seu nome mesmo? — Fui ignorada novamente, o que me deixava bastante irritada. — Olha, se você não quer que eu o chame de garoto do fogo, Lorde Pau Mandado, sequestrador infame ou manipulador do mal, é melhor...
— Eirie. Meu nome é Eirie.
Bati a roupa, tirando um pouco da poeira. O chão voltou a se movimentar ou algo estava acontecendo comigo. Os pensamentos embaralhados de novo.
— Então, Eirie...
Creio que o líquido que Dália injetou em mim fora o responsável por aquela estranha sensação de não saber distinguir o real do irreal. Eu racionalmente tentei me tranquilizar, evocando pensamentos de que só estava alucinando, mas naquele momento, meus olhos viram tudo saltando e se retorcendo e sentia como se a minha alma estivesse saindo do corpo.
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