Capítulo VII -

Quando enfim abri os olhos, minha cabeça latejava de dor. Levei a mão ao local e senti sob os dedos o sangue que havia escorrido da ferida já um pouco seco. Me apoiei na cama para ficar de pé. Com algum esforço, andei até a porta – que estava trancada – mexi na maçaneta e bati na porta. Ninguém ouviu. Desisti de tentar sair, aquele esforço estava me cansando mais rápido. Fui até a penteadeira e, olhando o meu reflexo no espelho, notei que estava um pouco pálida e em seguida pude perceber que havia alguma coisa na cadeira. Me levantei, ainda cambaleante, e segui até o objeto de minha curiosidade. Antes de alcançar o que quer que aquilo fosse, escutei o barulho da maçaneta acompanhando a voz de minha tutora e virando rápido demais, senti uma pontada de dor na nuca que me fez levar a mão ao corte  fazendo careta em seguida.

— Bom dia, senhori... – Ela notou o meu desconforto e correu até mim. — O que aconteceu?

— Eu bati com a cabeça. Acho que preciso de um remédio, me sinto um pouco tonta. 

— Deixe-me ver isso.

Ela me pegou pela mão, como se eu fosse uma criancinha e me fez sentar na cadeira em frente a penteadeira. Depois de examinar bem o corte, como se fosse uma especialista, por fim chegou à uma conclusão.

— Não é um corte muito profundo. Venha comigo até lá embaixo procurar algo para limpar e fazer um curativo.

Chegando lá, tio James que ocupava a cabeceira da mesa, me encarou.

— O que aconteceu com suas roupas, senhorita?

Olhei para baixo e só então percebi que ainda vestia pijama e andava de pantufas. Moggie foi quem respondeu por mim.

— Estamos procurando algo para fazer um curativo.

— O que aconteceu? – A expressão dele mudou de sarcástica para interrogativa.

— Bati com a cabeça. – Minha tutora me virou para ele e mostrou o corte em minha nuca em meio ao meu cabelo.

— Venham comigo. Vou te examinar melhor e providenciar tudo o que precisar.

Não esperava que ele fosse cumprir isso mas, para minha surpresa, ele o fez. Chamou Cavanaugh que apareceu logo após chegarmos até seu escritório com uma maleta de primeiros socorros e uma jarra de água.

— Sente alguma dor nessa região?

Tio James perguntou, enquanto colocava luvas de um material branco leitoso e em seguida apalpava o local da pequena lesão. Fiz careta brevemente ainda ouvindo seus comandos de fazer movimentos com a cabeça e tentando obedecer.

— Está perguntando porque realmente se importa ou porque tem medo de que aconteça algo pior comigo e se torne o principal suspeito?

Ele continuou fazendo seu trabalho e sinalizou, com um estalo dos dedos pedindo ao mordomo um objeto no formato de uma caneta que depois se revelou mais com a função de uma lanterna. Clicou em algum lugar e lançou aquele feixe de luz em cada um dos meus olhos, solicitando que os mantivesse bem abertos. Outros testes foram feitos e também perguntas sobre de que altura caí, o local contra o qual minha cabeça se impactou, se cheguei a desmaiar, se vomitei, se convulsionei ou se me sentia confusa. Felizmente ele não perguntou o que havia acontecido antes da queda.

— Mas, senhor Deskran, ela se machucou gravemente?

— Ela só teve uma concussão, aparentemente, nada muito grave. Necessita fazer repouso e evitar atividades estressantes por enquanto. Vamos continuar observando a sua evolução e se não irão aparecer novos sintomas nas próximas horas ou dias.

Depois, erguendo uma sobrancelha ele encarou o criado que entendeu o sinal pois estava mais habituado, até mesmo pela convivência com ele, e que pediu à Moggie que o acompanhasse. Em questão de segundos, eles saíram, nos deixando sozinhos na sala. Os móveis eram sérios, de uma madeira escura e forte que eu acreditava ser mogno, bem polida e com entalhes muito bonitos. A decoração era muito sóbria, nada muito extravagante, porém, chegava a ser sem vida – possivelmente, pela própria ausência de cores e de objetos que dessem teor pessoal ao lugar.

— Por que você pensa isso sobre mim? – O assunto retornou ao início. — Digo, que eu gostaria que se machucasse ou algo pior?

— O senhor não parece gostar muito da minha presença nessa... – pensei por um instante: — na sua casa.

Tive medo de olhar nos olhos frios e acizentados dele. Já era estranho estar ali sozinha com ele e sem saber ao certo o que me fazia sentir assim.

— Nossa relação não tem sido nada fácil. Mas isto não significa que eu pretenda te fazer mal ou deixar que algo ruim te aconteça. Claro, o que acontecer com você agora é minha responsabilidade legal, mas não é só isso... você tem o meu sangue, seu pai confiou em mim para ser o seu guardião.

Eu fiquei séria. Não esperava por isso, acho que ele estava verdadeiramente preocupado comigo. Ele voltou a ficar em silêncio enquanto acabava de fazer uma ardida assepsia e o curativo.

— Pronto, está feito. Tome cuidado de agora em diante.

— Ah... tudo bem.

Pulei da mesa de madeira, calcei a velha pantufa e me dirigi à saída meio sem jeito.

— Muito obrigada por isso.

Apontei o curativo, em seguida, dei um sorriso sem graça e saí do escritório. Não sei ao certo o que aconteceu depois disso, Moggie me fez guardar repouso, mas tio James alegou estar indisposto e não desceu para o almoço. Meu interesse em comer era zero. Só me forcei a dar umas colheradas porque Moggie achava que tudo era culpa da concussão, até a minha falta de apetite. A dor de cabeça voltou à tarde, tomei o remédio que tio James havia instruído Cavanaugh a me dar nesse caso e me deitei no confortável e macio sofá da sala de estar, onde fechei os olhos para tentar aliviar. Passou-se um belo tempo quando senti um aroma delicioso preenchendo o ar. Não resisti e fui até a cozinha. Chegando lá, senti uma energia tão deliciosamente diferente. Era como estar em um outro ambiente, outra casa. As cores, os aromas, os sabores, tudo mais claro, aberto, maravilhoso e acolhedor. Provei alguns bolinhos do balcão e estavam divinos. Eu poderia muito bem dividir meu tempo entre a biblioteca e a cozinha, pensei.

— Boa tarde, senhorita Deskran. – Dei um pulo com o susto.

— Oi?

Apareceu uma mulher de baixa estatura, pele e olhos pretos ambos dos mais brilhantes que já vi em toda a minha vida, vestida com o uniforme branco completo de cozinha com o cabelo preso sob a touca.

— Parece que alguém descobriu o nosso cantinho.

Instantaneamente me senti tão leve na presença dessa mulher desconhecida que sorri até sem ver.

— Peter! Venha aqui. Temos visitas. – Ela chamou e no instante seguinte, o homem que encontrei lá fora no outro dia chegou.

— Eu acho que não me apresentei à senhorita em nosso primeiro encontro. Sou Peter, mas meus amigos me chamam de Mestre Pi.

— Que amigos? Você nem sai daqui. – A mulher interferiu, com ar de deboche e as mãos na cintura.

— Você não conhece meus amigos.

— Como conheceria? Eles não existem.

Peter ficou ruborizado e arqueou as sobrancelhas como se estivesse se sentindo insultado. Fiquei confusa se eles estavam realmente discutindo ou apenas brincando um com o outro. E eles gesticulavam bastante.

— Então vocês são os cozinheiros?

— Eu sou a chefe de cozinha e ele é o meu assistente.

Ele deu uma piscadela e mexeu nas alças do avental orgulhoso.

— Como você se chama? – Indaguei.

— Maya Aboywe, ao seu dispor.

— Sente-se. Sou a mente criativa por trás de tudo que encontrar em sua mesa. – Maya pigarreou para ele. — Tudo bem, de quase tudo... – A chefe de cozinha balançou a cabeça negativamente. — Bom, ainda estou tentando resolver isso com a chefe. Enfim, espero que esteja gostando do que comeu até agora. – Mestre Pi limpou um lugar no banco largo e enorme de madeira rústica. — Prove minhas novas criações. A chefe ainda não aprovou, mas tenho certeza que se alguém da casa aprovar, ela vai incluir no menu... algum dia.

Seu sorriso foi sincero e o cheiro também estava muito convidativo. Decerto, eu tinha tempo para provar. O que não tinha era a permissão de meu tio para conversar com os empregados. Mas eu já estava ali e discordava dessa ideia sem cabimento mesmo, então fiquei. Peter me deu alguns doces para comer e me explicou como fez para obter cada variedade de sabor. Era uma combinação mais estranha do que a outra, mas que no fim ficavam deliciosas. Em certa altura minha cabeça voltou a latejar. Levei a mão à nuca, reclamando da dor. Maya parou de abrir sua massa e me fitou.

— Peter, não vê que a senhorita se sente mal? Vá agora mesmo buscar umas folhas e prepare um chá de Chkwissa.

Na mesma hora, ele largou a sua própria mistura à qual tanto se empenhava e foi apanhar o que ela ordenou, deixando a mulher sozinha comigo. Teria perguntado o que era essa coisa e para que servia, entretanto, simplesmente sentei em uma cadeira mais confortável que ela apontou e fiquei esperando que o assistente terminasse de preparar o chá. Quando estendi a mão para apanhar o copo que ele me oferecia, acabei o derrubando. Lembro que apenas pensei em tentar alcançá-lo para impedir que caísse e o líquido ficou flutuando no ar, embora o copo tenha se partido inteiro ao chão. Perplexa, movi lentamente o braço para cima, depois para baixo e para os lados. E ainda mais para o meu espanto, a água que o chá continha obedecia aos meus comandos motores. Manipulei sua forma, depois a conduzi  para a pia e fiquei confusa com o que fazer para que simplesmente caísse portanto a bolha permaneceu suspensa. Olhei ao meu redor e ambos faziam sinais para que soltasse, eu não tinha ideia de como fazer aquilo, porém apenas para testar, disse "Caia?" e ela despencou de uma só vez. Mestre Peter, não retirava os olhos de mim com um certo sorriso e ao mesmo tempo surpreso.

— Uma Guer manipuladora de água. – Maya concluiu. Peter se aproximou devagar e se sentou ao meu lado. Ela o repreendeu. — Nada disso, vá pegar mais chá para ela. – Maya ordenou, firme e impaciente.

— É, parece que é isso o que sou. Uma Guer.

Afirmei, ainda me familiarizando com o termo. Ao ver uma nuvem nublando a minha expressão, o seu olhar serenou. Suas mãos afagaram a palma das minhas.

— Mas você teme algo.

— Você tem razão. É que, de onde eu venho, as pessoas acreditam que eles, os Guers, estão extintos há milênios. Eu também pensava isso. Como pode não ser verdade?

Peter voltou a tentar se aproximar com um novo copo do chá quentinho. Tomei o copo em minhas mãos trêmulas. Eles perceberam que havia algo de errado.

— Nunca estivemos, minha cara. – Peter afirmou com convicção.

— Então os Guers nunca deixaram de existir, mas eu li que eram perseguidos e que fugiram. Como os Não-Guers ou a Cúpula dos Líderes nunca encontrou esse lugar? – Os dois me observavam com atenção e com uma ponta do que hoje sei que era esperança — Não, não pode ser. O limite... oh, meu Deus! Ele... ele não é só uma história, é real? Mas como?

— Pelo poder das Divindades Maiores da Natureza.

As engrenagens do meu cérebro começaram a funcionar. Como aquilo poderia ser possível? O limite era real e foi constituído por poder divino? Uma civilização inteira vivia ali há milênios e nós não sabíamos? Na verdade, depois que parei para pensar, só mesmo uma explicação não científica para dar conta de explicar essa situação estranha ou uma nova anomalia da qual o governo Cupular não tinha ciência. Peter insistia para que eu tomasse o chá e como a dor não passava – ao contrário, só aumentava – tomei logo.

— É tão real como nós estarmos aqui conversando. – Maya disse.

"Isso é impossível", sussurrei ainda tentando ser racional. Peter se levantou rapidamente e colocou as luvas. Seu cabelo ralo e grisalho, reluzia à luz do sol que entrava por todos os lados do ambiente.

— A raça Guer simboliza nossa última esperança de restauração da ordem no mundo. E as Divindades asseguraram nossa liberdade através dos Guer-Matriz.

— Guer-Matriz? Eu vi sobre isso em um livro na biblioteca, mas o que é?

— Quando as Divindades da Natureza concederam esses dons à raça humana, elas agraciaram somente um entre todos. Um escolhido que recebeu a capacidade de conter em si toda a magia elemental e a missão de harmonizar os seres, pelo equilíbrio natural que estava se perdendo. Ocorre que, os seres humanos encontraram uma forma "científica" de reproduzir esse poder e não para algo bom, mas para criar seus próprios exércitos e espalhar mais terror e opressão. Obviamente, as Divindades não ficaram satisfeitas ao perceberem que um dom puro como o do escolhido foi deturpado e corrompido. – ele explicou.

— Você disse “os” Guer-Matriz. Onde estão os outros?

Enquanto Peter foi retirar uma forma do forno, Maya tomou a palavra.

— Não se sabe ainda. Os líderes guers pretendem se vingar pela perseguição que sofreram e estão usando o Guer-Matriz para promover a revolta. As pessoas o apoiarão, com certeza... mas se o poder dele fortalece ou enfraquece, o poder de todos Guers ganha ou perde força. Então as Divindades decidiram enviar novos Guer-Matriz para, além de dividir e evitar que todo o poder ficasse concentrado em alguém que já estava susceptível a um dos lados, também pudessem os usar caso fosse necessário impedirem esse escolhido de ir contra seus planos.

— Com "impedir" você quis dizer...

— Fazer o que for necessário. — Engoli em seco, isso significava ter que eliminar uma pessoa se fosse preciso? Muito conveniente nos usar para resolverem os problemas que sua própria criação causasse. — As Divindades são benevolentes, mas também são justas.

Eu esperava simplesmente conseguir resolver tudo em um diálogo com os outros escolhidos, jamais seria capaz de machucar outra pessoa. Mas deixei um pouco de lado, tinha certeza de que os outros entenderiam. Naquele momento estava muito feliz por ter encontrado alguém que soubesse me explicar alguma coisa apesar de não crer em Divindades.

— A cada ciclo dimensional temos uma convergência. — O cozinheiro cortou um pedaço de torta e me entregou retomando a palavra.

— Ciclo?

Maya, que estava sempre completando o que ele dizia, me respondeu:

— O Ciclo de Una prevê uma ordem: Fogo, Ar, Terra, Água e Forças Místicas. A cada pequeno ciclo o elemento ao qual pertence o receptáculo é o mais forte e, depois que surgem os cinco escolhidos entre todos os indivíduos que regem cada uma dessas forças, ocorre a Convergência Dimensional de Unificação.

— Embora não tenha-se tido notícias de novos Guer-Matriz, acreditamos que eles possam apenas não terem manifestado suas habilidades ainda. Mas precisamos manter a esperança na palavra das Divindades.

Peter trouxe uma torta para sua colega também, se sentou do meu lado vago e continuou.

— Apesar de alguns descrentes, as Divindades não fazem acepção. Logo, o novo ou nova Guer-Matriz estará entre nós e todos, sem exceção, poderão ser salvos.

Fechei os olhos. Balancei a cabeça ainda me negando a acreditar. Respirei fundo, levantei e olhei para as minhas mãos. Eu sabia o que isso significava. Eu não era apenas uma Guer comum como a maioria provavelmente era. Em seguida, caminhei até o fogão. Olhei bem para as minhas mãos, recordando o dia em que derreti aquelas correntes com os pulsos em brasa. Me forcei a lembrar do que pensei e senti. Os dois cozinheiros permaneciam na mesma posição e me encaravam. Então eu imaginei e fiz novamente, o que no segundo anterior era apenas pele de repente se tornou uma chama fraca e inconstante percorrendo meus braços. Eles ficaram surpresos com o que viram diante de seus próprios olhos também entendendo do que se tratava.

— Você não faz de ideia de por quanto tempo foi esperada: menina tocada pelo fogo. — O brilho dos olhos de Peter me comoveu.

— Eu não sei como fazer isso parar. — Me referi às labaredas subindo pelos meus braços. Tentei apagar sem muito resultado, as chamas pareciam ter vontade própria.

— Você precisa treinar isso, garota.

Maya foi até a pia e encheu um balde com água. Depois derramou em meus braços, apagando as chamas.

— Obrigada. E eu sei que tenho que aprender a controlar isso tudo, mas não sei como começar. É tudo tão novo e estranho. Vocês conseguem controlar?

— Claro, você nos vê pegando fogo por aí? — Ela questionou. Achei engraçado.

— Vai devagar. Não somos especialistas, mas podemos dizer que não se constrói uma fortaleza da noite para o dia. Se quiser ter base sólida para dominar as suas habilidades, precisará se dedicar inteiramente à compreendê-las e treinar bastante e com disciplina.

— Peter, eu sei. Mas se eu tenho um papel importante assim como dizem, não há tempo a perder. Não posso expor tantas vidas à um risco tão grande como o de extinção.

— Você pode colocar muitas vidas em risco se não dominar seu poder, em primeiro lugar. E, embora não te ajude a se desenvolver mais rápido, vamos continuar fazendo chá de Chkwissa para você. — Maya apontou meu ferimento com uma colher de pau — É para que se recupere o mais brevemente possível e sem sequelas.

— Pelo visto, só posso aceitar.

— Não está quase na hora do jantar? Se eu fosse você...

Antes que Mestre Pi terminasse de falar, eu já estava saindo pela porta e me dirigindo ao meu quarto. Logo seria a hora do jantar e quanto menos atraso, menos desconfiança. Quando cheguei, apenas Moggie estava presente – pois já era hábito dela me esperar na mesa e começar um interrogatório.

— Por onde andava a senhorita?

— Na biblioteca, lógico. Onde mais? – Não sei se a convenci, mas deixei pra lá. — Eu fiquei entretida lendo livros e perdi a hora.

— E eu fiquei preocupada procurando você.

— Me desculpe. Não vai acontecer de novo.

Dobrei o guardanapo sobre o colo e provei a comida. Dessa vez eu sabia quem havia feito e isso me um certo prazer em desfrutar da refeição.

— Começaram sem mim?

Tio James deu a volta e veio se sentar na cabeceira da mesa, seu lugar de sempre.

— Não sabíamos se o senhor viria ou não, então...

— Tudo bem, senhorita Hapstall. Mea culpa, não avisei que viria.

Depois do que aconteceu no escritório dele mais cedo, ele parecia estar tentando ser menos idiota. Só que por mais que ele tentasse, já existia um certo distanciamento entre nós antes de eu o conhecer e depois ele mesmo se encarregou de fazer com que só aumentasse. Eu ia precisar de tempo pra me acostumar com as demonstrações de afeto repentinas dele.

— E como vai o machucado?

— Melhor.

Retruquei, relembrando o milagre que era o tal chá de Chkwissa. Eu nem sei do que se tratava, mas agradecia pois a planta deu um jeito na ferida.

— Eu posso ver?

Arregalei os olhos. O corte em minha nuca estava praticamente curado, ele certamente desconfiaria de algo.

— Não. Quero dizer, está tudo bem. Nem sinto dor.

— Deixe de bobagem. Cuidado nunca é demais.

Ele se levantou e andou até as costas da minha cadeira. Se posicionando para olhar minha nuca, inclinou-se e examinou. Fiquei paralisada imaginando como seria sua reação ao ver aquilo.

— Nossa, quase não se vê mais o corte. – Ele disse, já se sentando novamente.

— É. Eu tenho uma ótima cicatrização.

Sorri para disfarçar o temor na minha voz. Cavanaugh surgiu com uma bandeja nas mãos, onde havia um copo. Depois de me servir, ele cochichou em meu ouvido "Maya e Peter recomendaram que tomasse tudo". Acenei assertivamente, sorrindo.

— Parece que tem mesmo. Continue se alimentando bem, isso ajuda bastante.

— Desculpe perguntar, mas o senhor é médico?

Ele fitou o prato de comida e ficou refletindo por alguns instantes. Achei esquisito, já que se tratava de uma pergunta tão simples.

— Sim. Eu sou. – Até Moggie largou os talheres para não perder a revelação e nem era algo tão grande ou impactante.

— E é isso o que senhor vai fazer na vila praticamente todos os dias? Atender pessoas, salvar vidas?

Relutante em responder e tentando manter a frieza, tio James mastigava devagar a sua comida, para prolongar a dúvida. Ele não parecia estar confortável em responder as perguntas.

— Sim.

— Porque no outro dia, o senhor ligou dizendo que não poderia voltar e acabou voltando? O seu transporte foi consertado?

Olhei com medo de que ele surtasse com tantas questões. O que não seria uma surpresa, já que ele se revelava um homem um tanto volúvel. Traindo as minhas expectativas, ele respondeu sereno e sem titubear.

— Alguns dos meus pacientes não resistiram. Especialmente um amigo, que faleceu durante uma cirurgia de emergência.

— Oh! Sinto muito. – Moggie exclamou.

Cavanaugh não parecia estar surpreso, apenas triste. Deduzi que ele conhecesse as pessoas de quem tio James falava.

— Eu não quis... eu peço desculpas, tio James.

Ele acenou com a cabeça. Quando terminou, limpou-se com o guardanapo e retirou-se da mesa.

— Foi bom ter a companhia de vocês, mas preciso ir. Tenham uma boa noite.

Me perguntei se talvez ele considerasse essas algumas perguntas pessoais por se tratar de seus pacientes ou se simplesmente não gostava de comentar sobre seu trabalho em casa. Ele parecia triste quando saiu e escolhia não compartilhar sua dor. De uma maneira ou de outra, ele encontrou uma forma de fugir do que sentia a respeito.

Naquela noite, não parou de chover um só instante. Sabia disso porque passei muito tempo acordada pensando sobre tudo que eu teria que enfrentar. Segundo a história, havia um prazo para impedir que os Guers fossem extintos e haviam outros que eu ainda tinha que encontrar. Quanto tempo ainda tínhamos? Onde estavam os outros?

No sonho daquela noite, percebi que a mulher também vivia um impasse. Ela estava em dúvida entre salvar a tapeçaria que pegava fogo ou o cavalo que se afogava. Eu conseguia ver a aflição, estampada em seus olhos. Eu vi lágrimas de tristeza e dor rolarem por sua face. Qual seria a sua decisão? Acordei com um nó na garganta, a luminosidade atravessava o vidro da janela e incomodava meus olhos. Meu olhar varreu o cômodo, como se algo estivesse fora do lugar e foi se encontrar diretamente com a cadeira onde estava o embrulho como um ímã que atraía meus olhos. Curiosa, desamarrei e tirei as várias fitas, nas cores douradas, vermelhas e pretas. No exato momento em que ia abrir o embrulho, ouvi batidas na porta e escondi tudo outra vez.

— Quem é?

Ela entrou cantando sua resposta e sustentando a última letra numa nota, tapei os ouvidos e fiz careta.

— Bom dia, para você também, senhorita. Deveria ser um bom dia para todas as pessoas do mundo.

— Alguém está feliz hoje. E será que eu posso saber por que? Ou melhor, por causa de quem?

— Lizlee, mais respeito. Eu só estou muito feliz. Há algum problema nisso?

Decifrar o motivo da alegria de Moggie, não seria uma missão impossível. Logo que ela viu o sr. Cavanaugh seu sorriso se abriu mais – se é que isso era possível. Eu definitivamente, banquei o cupido. Mesmo sem querer acabei unindo duas almas gêmeas. Tomei um pouco do café e fui aproveitar que o céu abriu e o sol brilhava. O estábulo era pertinho dali, então dei a volta na casa e fui até lá – não havia sequer, um cavalo branco parecido com o do sonho. Estava distraída e não percebi que alguém se aproximava, mas meu estado de alerta nunca se desativava.

— Lizlee.

Tio James se aproximou cauteloso, talvez não tenha superado o que aconteceu no outro dia, mesmo que eu não tenha feito para machucá-lo. Me voltei a ele com um meneado de cabeça.

— Gosta de cavalos?

— Gosto.

— Sabe montar? – Ele passou a mão em um dos animais.

— Eu nunca montei. Por que?

— Porque talvez eu esteja te convidando para dar um passeio.

Olhei de soslaio para ele, que estava um tanto apreensivo.

— Está bem. Eu aceito.

— Vou mandar Cavanaugh selar os cavalos.

Sua mudança brusca na maneira de me tratar, me causava espanto. Todavia, se no fim das contas ainda teríamos que conviver por muito tempo, que fosse de uma maneira amigável.

Mais tarde com os cavalos escovados e selados, estávamos prontos para dar uma volta experimental.

— Esse é o Relâmpago. Apesar do nome ele vai saber esperar seu tempo. – Me apresentou ao animal de pelagem preta e brilhosa.

— Espero que tenha paciência comigo, Relâmpago.

Tio James sorriu pela primeira vez desde que cheguei. Moggie não se opôs ao divertimento como geralmente faria. Com esse pequeno indício que meu tio se dispunha a tentar fazer com que nos déssemos bem e a possibilidade de Moggie e Cavanaugh formarem um casal, até eu me peguei sorrindo. Cavalgando pelos campos os meus olhos se encheram com a paisagem. O céu azul, o sol forte, tantas árvores e flores multicoloridas num campo plano a perder de vista. Eu que havia me habituado a uma vegetação pobre, temperatura fria, céu nublado e poluído de Leeland, fiquei deslumbrada. Entretanto, na vila, onde achei que encontraria muitas pessoas nas ruas e mais vida, o que havia eram pessoas amedrontadas. Quando olhavam para mim chegavam a se esconder ou cochichavam entre si.

— Eles não são sempre assim, vou ver o que pode ter acontecido. Quer vir comigo?

— Acho que vou ficar um pouco aqui.

— Então, tome cuidado.

— Vou tomar.

Apeamos um pouco mais à frente, meu tio me ajudou a descer. Acenei para ele que entrou logo depois no pequeno hospital. Fiquei bastante incomodada quando até as crianças se afastaram de mim e gastei algum tempo tentando entender o que significava essa atitude. Foi quando percebi que eu poderia não ser o motivo.

As pessoas que ainda permaneciam na rua, juntaram suas coisas e entraram em suas casas ou pelo menos tentaram fazer isso a tempo, quando um bando montado em cavalos, trajando roupas e capas pretas, cobrindo seus rostos, surgiu no pequeno vilarejo. O espanto foi geral e não era para menos. Observei a certa distância que estavam ali para saquear. Corri o mais rápido que meu despreparo físico pôde deixar. A porta do pequeno hospital onde meu tio se encontrava, estava trancada.

Voltei a correr, dessa vez me enfiando pelos becos, buscando algum lugar para me esconder, enquanto ouvia alguns gritos e o choro de um bebê vindos de algum lugar. Enquanto tentava não olhar pra trás, escutei uma voz suplicando por ajuda. Era uma mendiga. Dei meia-volta mas não consegui fazê-lo a tempo e presenciei o momento em que um dos homens desceu do cavalo e ateou fogo àquela mulher, sem nenhum escrúpulo. Cobri a boca para abafar um grito e tentei me manter de pé sob minhas próprias pernas. Em outros cantos do pequeno lugar, pessoas apanhavam e comércios de rua eram revirados. Entrei em um beco sem saída e me enfiei debaixo de um pouco de lixo e madeira velha, fazendo o máximo de esforço para passar despercebida. Mas, em meio à tudo aquilo, alguém me encontrou. Fui puxada para cima e para fora do lixo e por impulso, acabei acendendo minhas mãos. O fogo fez o rapaz recuar um pouco, então ameacei.

— Afaste-se ou... ou... ou eu te queimo. – Ele levou a mão à minha boca, tapando-a. Esperneei, dando chutes no ar e grunhindo.

— Calma garota. Eu não quero machucar você. – Ele disse quase murmurando. — Eu vou te soltar, mas você tem que prometer que não vai gritar.

Seus olhos azuis eram tão calmos e se fixavam dentro dos meus, me transmitindo uma estranha sensação de segurança.

— Eu sei que você não tem motivos para confiar em mim, mas não faça barulho até eles passarem e eu prometo que a deixo ir.

Estreitei os olhos, não dava para confiar. Arqueei a sobrancelha. Eu estava assustada demais e ainda tentando me soltar. Então, ele tirou o pano que cobria seu rosto e baixou o capuz, deixando à mostra não só os seus olhos azuis como também a sua pele clara, pálida e seu cabelo que à luz do sol até parecia ser branco e estava levemente bagunçado.

— Eu me chamo Philip. Melhorou para você? Digo, saber quem eu sou? 

Fiz que não e continuei respirando rápido demais com medo.

— Tudo bem, vou te soltar agora.

Ele realmente cumpriu com o que prometeu. Fiz o mesmo, ficando quieta.

— Lógico que vai me deixar ir. Estaria correndo um grande perigo se não o fizesse, Philip. – sibilei.

Ele sorriu meio de lado, como se soubesse que eu não seria capaz de machucar uma nosca, os seus dentes eram tão alinhados e claros.

— Pode me chamar de Phil. E você é?

— Lizlee. Eu me chamo Lizlee. – Hesitei por um instante.

— Prazer, Lizlee. – Ele deu uma boa olhada em volta, provavelmente analisando o perímetro.

— Tem algo de diferente em você. Familiar. Você não parece ser como os outros do seu bando. Eu vi um deles queimar uma mulher viva. — Minha voz embargou com a lembrança. Foi uma cena terrível.

— Tudo bem? – Ele se aproximou e eu recuei. — Eu já disse que não vou te machucar, acha que estou mentindo? Se eu fosse fazer isso, quais motivos teria para estar te ajudando?

— Talvez não esteja mentindo sobre isso ou eu não sei como estaria agora. Mas eu não te conheço, como poderia confiar?

— Você tem toda a razão. – Ele olhou novamente ao redor. — E eu vou embora antes que os outros me procurem.

— Espera. – Segurei nas mangas de sua jaqueta. Ele se voltou para mim.

— O que foi?

— Ai, que isso? Você está gelado. 

O garoto me estendeu a mão. Hesitei. Ele colocou o dedo indicador contra os lábios pedindo silêncio.

— Ouviu isso? – perguntou.

Com a mão ele formou e atirou blocos de gelo na direção da rua. Tudo que vimos foi um gato saltando do meio do lixo. Nada por ali. O garoto puxou a minha mão e corremos até a saída do beco.

— A barra está limpa. Foi muito bom te conhecer, Lizlee.

Ele pôs o capuz na cabeça, amarrou o pano no rosto e pulou o muro. Fiquei sozinha na rua, parada observando ele se movimentar velozmente até se juntar ao seu bando. Voltei pelas ruas vazias, com várias coisas espalhadas pelo chão e outras ainda queimando. De repente, ouvi uma voz familiar chamando meu nome. Era meu tio. Quando respondo, minha voz sai rouca e falhada, um reflexo do que se passava dentro de mim.

— Eu estou aqui. Estou aqui...

Corri até onde minha mente reconhecia, que era onde estavam montadas algumas barracas e avistei ele agachado depositando uma lona preta em cima de alguma coisa. Segui até ele, que ao me ver levantou bem depressa.

— Lizlee, você está bem? – Me apalpou a cabeça e depois os meus braços visivelmente preocupado.

Ele me abraçou, o que me deixou surpresa. O momento passou rápido, mas eu senti que foi verdadeiro. Vindo dele qualquer demonstração de afeto era inesperada. Tudo que fizemos depois foi estranho. Ele voltou a agir como antes. E no caminho para casa, tudo ficou silencioso. Me entristecia ver um dia que começara tão bem, terminando daquela forma. Peguei nas rédeas do meu cavalo e o coloquei para correr.

— Você não vem? – Chamei.

Vi que ele me seguiu e coloquei mais empenho na corrida, para que ele não me apanhasse. Cavalgamos pelos campos, sentindo o vento nos cabelos. O sol estava se pondo no horizonte e finalmente eu conseguia me sentir feliz mesmo com os recentes acontecimentos. Repentinamente, o cavalo de meu tio parou, o escutei gritar que também controlasse o Relâmpago. Ele não respondeu ao comando e continuou correndo em direção à floresta. Puxei as rédeas, gritei e meu tio também gritou. Quando restava bem pouco, o animal parou bruscamente e fui arremessada para o chão, indo parar a poucos metros da entrada da floresta.

— Lizlee... – saiu correndo para me ajudar. — Vamos para longe daqui. – Sua expressão era de preocupação. — Você se machucou?

Na minha mente eu dizia que sim, mas meu corpo que ainda sentia o impacto da queda, não conseguiu responder. Percebendo isso, ele me pegou no colo e me levou até o seu cavalo. Com uma mão puxava o outro cavalo, enquanto seu outro braço me envolvia pela cintura, para não me deixar escorregar.

Cheguei em casa nos braços de meu tio. Moggie, saiu em disparada com aquele instinto protetor de sempre e continuou comigo de quando tio James me examinou, fez a assepsia, curativos e me medicou até a hora que eu peguei no sono. Seu rosto foi o último que vi e isso me deixou confortada.

Comecei a escutar uma voz chamando meu nome e me mandando ir até a floresta. Corri a cobrir a cabeça com o cobertor. A voz não cessava, não desistia. Me chamava várias e repetidas vezes. Eu já não sabia o que fazer. De repente, ouvi o ranger da porta se abrindo. Meu coração acelerou. Olhei por uma fresta no cobertor e não havia ninguém ali, mas a porta estava aberta. A voz se calou. Tomei coragem e descobri a cabeça, tremendo de medo. Meu corpo estava inteiramente dolorido. Esperei calada por um minuto, respirei aliviada porque poderia descansar em paz. Mas não, não podia.

O piano começou a tocar novamente aquela canção. Mesmo dolorida, desci as escadas com cuidado para não acordar ninguém e fui até a biblioteca. O piano ainda tocava durante todo o percurso. Eu imaginava o que acontecia para que só eu escutasse. Andei pelos corredores vazios e escuros, obstinada a desvendar o mistério. Chegando em frente à porta onde ficava o instrumento, mexi na maçaneta e estava trancada. Mexi na maçaneta mais uma vez indignada demais para perceber que estranho seria se a porta se abrisse. As notas da música tocando incessantemente, entrando em minha mente. Bati na porta várias vezes, gritando.

— O que você quer de mim? – Enchi de socos e chutes a enorme porta de madeira. — Porque não quer me deixar em paz?

Esmurrei a porta com os dois punhos cerrados, usando toda a minha força e minha raiva. Passei muito tempo ali num esforço confuso e enfurecido até que desabei a chorar, ao mesmo tempo que batia e gritava na porta da biblioteca. Sempre repetindo as mesmas perguntas mesmo sabendo que elas não seriam respondidas pois não havia ninguém ali. Quando cansei, deslizei com as costas na porta e acabei abraçando as pernas junto ao corpo. Permaneci no mesmo lugar até cair no sono, ali mesmo, no chão frio do corredor coberto pelas sombras da noite.

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