Capítulo VI -


Me recompus ou ao menos tentei e acabei indo me sentar na varanda da casa. Escondi a cabeça entre as mãos, como se isso fosse fazer a enxaqueca desaparecer. O que acabara de descobrir me deixou intrigada e, por algum motivo, abalada.

Fim do mundo? Eu havia acabado de me mudar para esse lugar, que era um paraíso se comparado à Leeland, e agora tudo ia acabar? Eu nem havia conhecido mais do que as redondezas dessa casa.

Tiro as mãos da frente dos olhos e vejo meu tio chegando pelo caminho da entrada.

— Está tudo bem com você?

— É só uma dor de cabeça.

— Então vamos lá para dentro.

Ele estendeu a mão. Eu neguei, mas sem qualquer menção de grosseria, embora aparentemente ele não tenha considerado isso. James me puxou por debaixo do braço, fazendo com que eu fosse obrigada a ir.

— Ei, me solta. Eu sei o caminho de casa.

Vociferei contra ele e numa ação involuntária de empuxo, projetei uma rajada de ar que o fez girar meia volta e se afastar alguns metros de mim. Percebendo o que havia acabado de fazer, arregalei o olhos e me aproximei dele. Ele havia percebido? Agora sim, estava tudo perdido.

— Olha, me desculpa. Não foi minha intenção.

Ele que já era mais alto do que eu, naquele momento se tornou um gigante.

— Entre agora, Lizlee Deskran. E dessa vez, não discuta comigo.

O homem apontou para dentro da casa e eu fiquei confusa notando sua expressão carregada de preocupação e não de raiva pelo que fiz a ele. Mal coloquei os pés lá dentro, tio James me chamou novamente. Virei de lado e evitei olhar diretamente para ele.

— Faça o que fizer, só não saia dessa casa.

Entrei ainda sem entender o que ele temia que eu encontrasse lá fora. Quando olhei para trás ele estava na varanda, como no outro dia, andando de um lado para o outro e passando a mão pelos cabelos pretos, bagunçando-os. Parecia nervoso ou estressado e eu não compreendia se era por eu o ter jogado para trás com meus poderes recém-descobertos que eu não sabia controlar e vinham quando bem entendiam, ou se por outro motivo – não que ele tivesse tentado me explicar.

— O que está acontecendo? Ouvi vocês discutirem. — Moggie chegou vindo da sala de visitas.

— Eu simplesmente estava lá fora e ele me mandou entrar. Não estava fazendo nada demais.

— Fez ou disse alguma coisa que o enfureceu?

Baixei os olhos e fiz que não. Não sabia se era o melhor dizer a ela que o empurrei manipulando o ar com meus poderes novos que não fazia ideia de como surgiram.

— Lizlee, venha comigo. — Olhei para meu tio, que acabara de entrar e ia em direção à escada.

— O que o senhor quer com ela? — Moggie veio atrás, como já era de se esperar.

— Não se preocupe, é só uma medida de segurança.

Ele parecia estar realmente determinado a fazer tudo o que dissesse, mas não soou irritado ou grosseiro quando o disse. Paramos em frente à porta do meu quarto e ele depositou suas mãos em cada um de meus ombros, inclinando sua cabeça para me olhar nos olhos.

— Tio, está tudo bem? — Moggie e eu nos entreolhamos estranhando aquela reação.

— Vá para seu quarto e não saia até segunda ordem. — Depois disso ele abriu a porta e me conduziu até lá dentro.

— O que tem de errado em eu sair? O que tem lá fora?

O corpo dele buscava transmitir uma mensagem e sua fala transmitia outra.

— Fique aí e logo isso vai passar.

Uma vez trancada lá dentro, fiquei longos minutos parada, perplexa, olhando para a porta. E o silêncio reinou, apesar de minha tutora ainda estar do outro lado da porta, o que só percebi quando obtive uma resposta as minhas reclamações, o que já nem esperava ter.

— Me tire daqui. Eu imploro. Eu peço desculpas, não quis fazer o que fiz...

— Seu tio está com as chaves. — Ouvi a voz da minha tutora e me sentei no chão com as costas contra a porta.

— E agora, o que faço? Espero ele mudar de ideia? Já vi que vou ficar aqui para o resto da minha vida.

— Posso tentar conversar com ele.

Fiz uma cara desanimada pois não acreditava que ele daria ouvidos às súplicas dela. Seus passos se tornaram inaudíveis e assim eu soube que estava completamente sozinha. Olhando em volta, percebi que retiraram a tapeçaria do meu quarto. Com certeza era mais algum segredo que pretendiam manter enterrado. Mas, ou não estavam fazendo bem esse trabalho ou havia alguém muito interessado em desenterrá-lo. Melhor, querendo que eu desenterrasse. Sem contar que a reação de meu tio naquele dia me fez acreditar que seu conhecimento acerca daquela mulher era bem maior do que eu imaginava.

Horas depois ouvi leves batidas na porta. Era o mordomo vindo avisar que o almoço estava pronto e dizendo que não contaria ao meu tio se eu saísse. Desci e me sentei, mesmo sem apetite, só pelo puro prazer de estar desobedecendo as ordens de tio James. Cavanaugh se aproximou da cadeira onde Moggie se sentava e cochichou-lhe algo. Depois que ela assentiu positivamente, ele se dirigiu à mim.

— Senhorita Deskran. — Iniciou.

Eu mexia na comida sem nenhum interesse real em ingeri-la.

— Sua tutora e eu, achamos que sua segurança não está em risco se permanecer aqui conosco. Em outras palavras, o senhor Deskran pode realmente ter exagerado um pouco. E contanto que retorne ao seu quarto antes que seu tio retorne, podemos deixá-la livre. Apenas tenha cuidado ou ele pode tomar uma atitude mais drástica.

Balancei a cabeça e debrucei-me sobre o prato, deixando ele um pouco de lado.

— Sei que estão tentando me ajudar, mas não quero deixá-los em uma situação ruim com meu tio por minha causa.  — Balbuciei.

— Só estaremos em uma situação ruim, se ele descobrir. – Moggie rebateu.

— Vocês têm certeza disso?

— Vá aproveitar seu tempo. Nós lidaremos com as consequências, se elas vierem.

— Obrigada. Posso me retirar agora? Não que eu não aprecie a comida daqui, na verdade é uma das únicas coisas que eu realmente gosto desse lugar, mas...

Eles se entreolharam e eu percebi. A resposta veio de Moggie que sorria com ternura.

— Não precisa se explicar. Vá logo, está perdendo seu tempo.

Me retirei andando bem devagar pelos corredores, apreciando minha liberdade condicional. Sempre que chegava naquela parte da casa eu me sentia livre. Ver as prateleiras cheias de livros e até mesmo o cheiro de pó sobre eles. Me sentar olhando para o jardim dentro da estufa, aquilo me fazia bem. Me causava um estado de paz. Naquele lugar eu não era mais a menina que viveu uma grande mentira, depois foi desiludida e perdeu o pai, tudo na mesma noite. Lá, eu continuava sendo uma garota cheia de fragilidades e temores, mas que encontrava fonte de energia e esperança.

Corri os olhos pelos títulos e cores das lombadas dos livros parecendo uma criança deslumbrada. Fiquei fixada, especialmente, em um livro sobre o púlpito. Caminhei até lá e li seu título, que aliás, me causou espanto. "A História de Una Royal". Na última vez que vim na biblioteca ele não estava neste lugar, mas nem isso me impediu de ler. Muito conveniente. Talvez alguém realmente estivesse se empenhando muito em me fazer procurar respostas. Fato é que, estava conseguindo o que queria. Abri a capa pesada e vermelha com detalhes entalhados em dourado. A textura das páginas era suave e não havia uma mancha sequer nelas, apesar de o livro ter a aparência antiga. Abri o sumário e localizei entre os títulos um que me chamou a atenção e que eu acreditei que resumiria o que eu estava querendo saber desde o início. O que aquele homem me disse algumas horas atrás, era verdade ou as pessoas determinavam como verdade a partir do que aprenderam com esses livros. Não poderia dizer.

O texto ainda complementava aquilo que o homem havia me explicado, dizendo que os Guers foram, durante anos, massacrados por serem considerados "aberrações da natureza". Mas houve um momento da história em que eles resolveram dar um basta e se uniram pela sobrevivência de sua raça, dissociando-se dos humanos comuns. Juntos, eles formaram o "movimento de fuga" e conseguiram chegar a um lugar seguro, onde seus semelhantes poderiam coexistir em paz. E assim criaram uma verdadeira civilização escondida dos olhos dos Não-Guers. Dividiram os indivíduos segundo o elemento que manipulavam e criaram as "Regências", que era o seu modelo de governo e autoridade civil. Os líderes dessas Regências eram os mesmos que encabeçaram e tornaram realidade o plano de sobrevivência guer, portanto, o povo não se incomodou quando eles se auto-elegeram "Regentes".

E eles realmente viveram em harmonia até o dia em que, sem saber, abrigaram inimigos Não-Guers dentro de sua nova civilização. Espiões enviados do governo Não-Guer se infiltraram em Una, viveram entre os outros e assassinaram pobres e inocentes crianças Guers no episódio que ficou conhecido como “A Noite Sangrenta de Dolkes". Os grandes líderes de cada Regência se revoltaram e decidiram deixar a posição de defesa para assumir a de ataque. Portanto, enquanto crescia e se desenvolvia o primeiro de sua raça e único ser de habilidades superiores aos demais – conhecido como Guer-matriz – , seu destino foi sendo traçado pelos Regentes que decidiram utilizá-lo como a sua principal arma contra seus inimigos. Ele guiaria a sua raça rumo à supremacia e domínio do, agora instaurado, Grande Lizma e para isso, suas habilidades seriam levadas ao limite, para garantir, que fosse capaz de triunfar sobre os Não-Guers.

Durante anos, até que o Guer-Matriz estivesse totalmente preparado, os guers planejaram a estratégia de vingança, realizando pequenos ataques como aviso de que ainda estavam ativos. Certo dia, as Divindades Maiores da Natureza, com sua senciência absoluta, perceberam que esse sentimento de ódio e de intolerância novamente colocava em iminência o risco de extinção da vida na Terra e, não permitindo um novo conflito mundial como o que havia assolado o Mundo Antigo, resolveram intervir levantando limites divinos invisíveis que tornaram os Guers prisioneiros, até o dia da Convergência de Unificação Dimensional, onde apenas os espíritos de união, harmonia e equilíbrio serão capazes de desfazer os limites e salvá-los do estigma de desaparecer, definitivamente, da face da Terra".

Eu me lembro de ter estudado nos materiais do Governo Cupular, que os Guers haviam sido extintos porque eram perigosos. Eu não sabia que haviam sido massacrados e que sofreram tanto. Finalmente, alguma coisa começava a fazer sentido. Talvez fosse disso que meu pai tanto queria me proteger. Ele só queria que eu não fosse excluída ou oprimida por ser diferente. Será que enfim eu estava descobrindo as peças que completariam esse quebra-cabeças? Bom, ali eu só tinha uma certeza: ficar presa naquela casa não me daria as respostas de que eu tanto necessitava para viver comigo mesma e aceitar minha condição, talvez, até me livrar dela.

No mesmo instante em que fechei o livro, ouvi aquela música sendo tocada no piano. Respirei fundo e me virei, ainda de olhos fechados. Se não fizesse isso agora, talvez nunca houvesse outra oportunidade. Segui o caminho até o instrumento e vi que as teclas dele se moviam sozinhas, ninguém tocava. Passeei com meus dedos em sua superfície clara e lisa admirando a estranheza da situação e me deixando inebriar pelas notas da canção, sentei ao piano e comecei a acompanhar a partitura. Quando percebi que já era tarde. Como não percebi o tempo passando? Deixei a biblioteca à passos longos e me esgueirei pelos corredores. Eles pareciam maiores à medida que eu passava correndo por eles. Subi as escadas que levavam até o meu quarto e cheguei tão ofegante pela corrida que já nem ligava para as sombras que se projetavam no cômodo. Me aprontei para o jantar em um estalo de dedos e me encontrei com eles lá embaixo.

— Boa noite, senhor. — Me inclinei para o mordomo, acabando por me desequilibrar e nós dois rimos.

— O seu tio pediu para avisar que houve um problema na estrada por causa das chuvas, por isso ele passará a noite na vila.

Lancei um olhar para a outra figura cabisbaixa, bem na minha frente. Moggie não estava falando pelos cotovelos como sempre e eu estranhei. 

— Está calada. — Observei.

— Estou? — Respondeu parecendo distante.

— Sim, está. Você costuma estar mais animada.

— Só estava esperando a hora certa para falar.

— Com todo o respeito, a senhora nunca perde a oportunidade de dizer algo.

Sem nenhuma intenção de feri-la, acabei dando uma risada e o mordomo me acompanhou, porém, mais formal e discreto.

— Como é?

— Eu acho que você deveria sair, dar uma volta... espairecer. Não faz bem ficar trancada o dia todo dentro de casa.

— Espairecer? — Ela arqueou uma sobrancelha e me mirou com um pouco de impaciência.

— Por exemplo, dar um passeio com o senhor Cavanaugh. Eu tenho certeza que ele conhece muitos lugares interessantes aqui em Una Royal.

Eles trocaram olhares. Ele ficou envergonhado e baixou os olhos, já ela transbordava nervosismo pela minha inocente insinuação. Na realidade, eu só estava tentando descobrir como sair da casa sem levantar suspeita. Por outro lado, que mal haveria se eles se divertissem um pouco? A Moggie merece um pouco de romance.

— Eu não acredito que insinuou que o senhor Cavanaugh e eu... que deveríamos ter um encontro... juntos! — Ela se inclinou um pouco para frente com as mãos na mesa e me encarou.

— Eu não insinuei. Apenas acho que vocês dois poderiam.

Moggie foi mais rápida e interrompeu.

— Não faça isso outra vez. Estamos entendidas? — Frustrada, pousei as bochechas nas mãos. — Ora, eu exijo respeito.

— Senhorita Morgana. — Cavanaugh se aproximou, lento e com medo de manter contato visual. — Ela não está tão errada. Eu gostaria muito disso, se a senhorita aceitasse é claro.

Olhei para ele que estava visivelmente apreensivo, depois novamente para ela, que aos poucos desfazia a cara amarrada e abria um sorriso envergonhado. Eu estava mesmo bancando o cupido? Dois adultos não poderiam simplesmente conversar e admitir estarem atraídos um pelo o outro?

— Ela vai sim. Ela aceita.

— Mas...

— Não discuta, ele está interessado em você. — Cochichei para ela.

Eu conhecia minha tutora bem demais para não perceber que ela também estava interessada por ele. Entretanto, ela sempre fora muito ligada a regras e convenções sociais, por isso eu me preocupava tanto em incentivá-la a ter um relacionamento amoroso e não se importar com o que diriam sobre isso. Além do que, não era nada escandaloso ou vulgar – a não ser que ele já fosse comprometido, o que eu não achava que fosse.

Depois de certa insistência por minha parte, ela aceitou e saíram os dois logo após o jantar. Foram dar um passeio não muito longe, por conta da possibilidade de chuva. Eu, por outro lado, não encontrei o que queria – meu tio sabia como esconder as chaves da casa – pelo contrário, só ficou bem claro que não seria fácil sair e não chamar a atenção. Mudei de planos e fui ficar observando os dois pombinhos. Até me diverti. Às vezes ele tentava se aproximar dela e ela recuava. Mas ele era paciente. Aliás, paciente e persistente. Algumas tentativas depois, ele quebrou a resistência e minha tutora lhe deu o braço e aos poucos, foi encostando a cabeça em seu ombro. Eles até que formavam um casal bonitinho. Não consegui ficar muito, só até o momento em que Cavanaugh ofereceu seu casaco à ela e pude notar o quanto os dois estavam envolvidos e confortáveis – não saberem que eu os espiava tornava tudo mais natural.
Retornei para dentro e senti aquela sensação incômoda que havia alguém me vigiando. Dei dois passos na frente, com os olhos fixos no topo da escada e em seguida, olhando para os dois lados. Não havia nada. De repente, meus músculos se retesaram e fiquei congelada. Alguém segurava em meu ombro.

— Lizlee, você não está me escutando?

Demorei alguns segundos para assimilar que era apenas o meu tio e mais outro para lembrar que eu estava desobedecendo suas ordens. Olhei por cima do ombro dele e vi Moggie e Cavanaugh chegando na porta de entrada com expressões apreensivas. Balancei a cabeça e levei as mãos à têmpora que começava a doer.

— O que está fazendo aqui embaixo?

— Vim fazer minha refeição. Só isso. — Não era de todo uma mentira.

— Volte ao seu quarto. — Ele ordenou, bem pausadamente e forçando um controle que eu sei que era só fingimento.

— Desculpe, tio James. Não queria desobedecê-lo.

As palavras saíram da minha boca com uma enorme facilidade. Até parecia que eu realmente pretendia dizer aquilo. A única coisa pela qual verdadeiramente me lamentava, era não ter conseguido descobrir onde ficavam as chaves da porta de entrada ou onde ficaria uma suposta porta dos fundos para que eu pudesse sair quando todos estivessem dormindo.

Naquela noite, quando consegui fechar os olhos, o maldito pesadelo retornou. "Venha Lizlee, venha!", a mulher chamava mas não ficava me esperando, pelo contrário, ela fazia com que seu cavalo se agitasse e empinasse como se só estivesse esperando o seu comando para partir em disparada. Para minha surpresa, ao chegar na beira do penhasco, ao invés de a mulher fazer com que o animal parasse, ela o comandou a acelerar ainda mais para em seguida caírem ambos do alto do precipício. Uma vez que já se encontravam na água, deixou-se submergir e nem se debateu, como se aceitasse o fim que ela mesma se dera, como se quisesse se deixar ir sem lutar.

Acordei sufocada, buscando me apegar em algo ao meu redor. Corri até a janela e a escancarei tentando respirar direito o que serviu apenas para fazer me arrepender pelo momento em que me atrevi a olhar para baixo, pois foi quando vi o cavalo branco correndo em círculos pela grama da propriedade. Aterrorizada com a aparição, me afastei da janela colocando a mão na boca para abafar o som do grito que iria liberar. Trombei na penteadeira e caí para trás indo bater com a cabeça na beira da cama. Imediatamente desmaiei com o impacto.

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