Capítulo V -
Era como se eu realmente estivesse lá. Não era como se presenciasse apenas em sonho, mas sim, como se meu corpo realmente estivesse naquela sala. E eu podia ouvir meu nome sendo chamado, várias vezes. O som doce e suave da voz daquela mulher desconhecida, se impregnava a cada átomo do ar que preenchia a sala. E então o frio e a escuridão deram lugar ao calor e à luz. Seria apenas uma coincidência o fogo ter se iniciado no momento em que eu tentei sentir a tapeçaria sob minhas mãos? Não sei explicar como, mas aconteceu. Em um instante, aquela figura que meus olhos contemplavam, se tornara cinzas.
Quando despertei, tive até que conferir se meus dedos não estavam queimados de tão vívido que fora aquele sonho. Me espreguiçei, ainda sonolenta e cogitei voltar a deitar quando olhei para a direção das janelas. O sol estava alto no céu. Dei um salto na cama, me arrumei depressa e desci as escadas correndo sem nem olhar nada em minha volta. Moggie odiava quando eu não seguia à risca os horários e odiava mais ainda ficar sozinha.
— Estou muito atrasada? Eu não percebi que era tão... que horas são mesmo? — Perguntei para minha tutora assim que a vi no hall de entrada.
— Deixe-me ver. São meio-dia, agora.
Mordi o lábio e coloquei as mãos para trás enquanto ela conferia no relógio dourado de ponteiros em seu pulso. O semblante de desaprovação, com uma sobrancelha arqueada e a cabeça ligeiramente inclinada para a frente que ela sempre fazia, me deu ideia do que se passava em sua mente.
— Eu perdi a hora, peço desculpas...
Olhei por cima do ombro de minha tutora e interrompi minha própria fala ao avistar tio James, através da janela, andando de um lado para o outro lá fora na varanda.
— O que aconteceu com ele? — Apontei com a cabeça. Ela percebeu que mudei de assunto e também se virou para olhar.
— Ah, eu não sei. Talvez alguma questão o preocupe.
— Ele não é o único.
Suspirei e respondi apenas para mim mesma. Sentei no último degrau da escada com o queixo apoiado nas mãos e permaneci ali observando meu tio que, de repente, pareceu ter mudado o seu humor e saiu resoluto pelo caminho da entrada da casa.
— Senhoritas? — Olhamos ao mesmo tempo e na mesma direção. — O almoço está servido.
Moggie fez um sinal, me mandando levantar e ir almoçar, ao que obedeci.
— Cavanaugh, sabe nos dizer o que aconteceu com o tio James?
— Creio que não tenho autorização para falar dos assuntos pessoais do senhor Deskran.
— Ele te proibiu, suponho.
— Exatamente.
Abaixei a cabeça, frustrada por não conseguir tirar nada dele. Ele deixou uma travessa na mesa cheia de pedaços de alguma coisa que exalava um cheiro delicioso e de uma aparência também muito convidativa.
— Eu sei que você acha o senhor Deskran um pouco ranzinza.
— Só "um pouco"? Não tenho culpa de ter caído de paraquedas na vida dele. Mas se sou um peso, ele só precisa dizer e eu ficarei feliz em procurar outro lugar para viver.
— Lizlee, basta! Já conversamos sobre isso.
Moggie me repreendeu. Eu arqueei uma sobrancelha e respirei fundo. Depois, me inclinei e ergui o braço para alcançar a travessa e pegar um pedaço daquilo que eu não fazia ideia do que era, mas parecia tão apetitoso.
— Ele realmente pode parecer uma pessoa difícil de se lidar, mas você é uma garota esperta, consegue entender que há bem mais em cada um de nós do que a camada superficial. Talvez só precise rompê-la.
— Eu sei, Cavanaugh, mas a questão é exatamente essa. Ele não quer que eu seja parte da vida dele. E eu não me importo com as particularidades do meu tio, só me importo com essa paranoia dele e com essa necessidade ridícula de manter segredos, de se fechar e se esconder atrás de um muro para viver fingindo que os outros não existem. Ele querendo ou não, é igualzinho ao meu pai.
Empurrei o prato e me inclinei para deixar a mesa ao que Moggie respondeu pegando em meu braço e me impedindo.
— Sente-se. Você nem tocou na comida.
— Perdi a fome.
— Senhorita Deskran... — Cavanaugh se mostrou inquieto.
— Já disse que pode me chamar de Lizlee.
Ele se aproximou de mim, contrariando as ordens sem nexo de meu tio. Já era algum avanço.
— Não pense dessa forma. Às vezes as pessoas pensam que "mentir" ou "omitir" algo é o mesmo que "proteger". Mas não deixe que isso lhe afete.
O homem ficou calado. É lógico que não era algo tão insignificante quanto ele queria fazer parecer. Entretanto, também não havia como eu afirmar que tio James escondia algo que me envolvia. Talvez Cavanaugh soubesse do que se tratava e também estivesse dizendo essas coisas para acobertar o tio James. Talvez a paranoica, na realidade, estivesse sendo eu. Após um instante um tanto quanto silencioso, ele retomou a palavra.
— Você deve ter coisas muito mais importantes com que se preocupar, se empenhe nelas.
Ele deu uma piscadela para mim. Seriam aquelas palavras uma espécie de conselho? Ele teria descoberto minhas habilidades? E se descobriu, como? Eu fui tão cuidadosa em não fazer aquilo de novo. Respirei, não havia como ele saber.
— E nunca se esqueça que pode contar conosco.
Moggie fazia questão de deixar isso bem claro, mas eu não tinha certeza se, nesse caso, me abrir com ela seria de algum proveito.
— Senhorita, quero dizer, Lizlee. — O mordomo, se embaraçou um pouco. — Se me permite dizer, antes que eu me esqueça, percebi que estar aqui pode ser um pouco entediante para alguém da sua idade. Então, conversando com a senhorita Hapstall, soube que a senhorita tem uma paixão por livros e por música. — Respirei fundo, porém sem ignorar a tentativa dele de me animar. — Imaginei que quisesse ir até a biblioteca passar algum tempo, lá também tem um piano.
Cavanaugh balançou um pequeno molho de chaves no ar e um sorriso se acendeu em meus lábios.
— Biblioteca?
Peguei as chaves, agradeci rapidamente e sem nem perguntar como fazia para achá-la, corri pelos corredores tentando abrir cada porta que encontrava pela frente. Depois de uns quinze minutos encontrei o que queria. A biblioteca era uma sala ampla, arejada e clara. As janelas enormes possibilitavam a visão de um pequeno jardim dentro de uma espécie de estufa, o teto dela era de vidro e dava uma iluminação natural ao ambiente. Havia também uma mesa para leitura e um piano – provavelmente aquele que eu sempre ouvia ser tocado, mas nunca sabia se realmente existia. Esse era, de longe, o lugar mais bonito da casa e onde eu poderia passar meus dias inteiros. Meus olhos percorreram toda a extensão do lugar, das estantes repletas de livros até as flores do jardim. Peguei um livro qualquer e comecei a ler, parei quando percebi que era um romance desses melosos que eu não gostava muito. "E viveram felizes para sempre", como se isso pudesse ser aplicado à realidade, já que a imortalidade era apenas um mito e todos sabemos que não é possível ser feliz o tempo inteiro, principalmente em um lugar como o Grande Lizma.
Enfim, Cavanaugh estava certo. Era muito mais interessante ficar na biblioteca do que olhando para o teto todos os dias. Naquele lugar eu conseguia esquecer todo o resto. É lógico que todos os pensamentos e sentimentos negativos não se afastariam definitivamente, mas pelo menos poderiam ser amenizados se eu começasse a focar em alguma atividade, pois, como meu pai dizia: "O tempo ocioso nos faz ansiosos", ele não errou. Mais tarde, compartilhei com o mordomo e minha tutora o quanto aquilo tinha me feito bem e agradeci novamente por se importarem com meu bem estar. Então, quando finalmente o tio James chegou, eu me calei. Por algum motivo, a energia que ele carregava consigo, minava minha alegria. Me concentrei em comer algo, já que não estava me alimentando direito há dias.
— Sobre o que falavam? Você parecia tão feliz.
Fiquei surpresa ao ver ele demonstrando se importar. Surpresa e desconfiada. Olhei para o mordomo e ele pediu, através de um olhar, que eu fosse discreta com relação à contar quem lhe dera a ideia da Biblioteca.
— Não era nada. — Dei de ombros, fingindo não dar importância.
— Bom, nesse caso, não haveria problemas em me contar.
Naquele instante, a minha conversa de mais cedo com o Moggie e o mordomo retornou à minha memória. Não, realmente não há problema algum em contar, quem sabe não possa fazer o mesmo, pensei.
— Falávamos sobre a minha descoberta de hoje. Mas não acho que queira perder seu tempo ouvindo.
— E qual foi? — Ele sorveu um longo gole de água após a pergunta.
— Eu encontrei a biblioteca. Finalmente estou me ocupando com algo realmente "educativo". — Olhei de soslaio para ele esperando que sentisse a alfinetada.
— Achou algo interessante lá?
Estranhei o fato de, após dois minutos à mesa, ainda não termos discutido.
— Não houve tempo para leituras longas. Só consegui ler pequenos livros de contos de fadas, me fizeram lembrar da minha infância.
— Contos de fadas não existem. Devem haver coisas mais importantes para ler.
Baixei os olhos e preferi não iniciar uma discussão, apesar de pressentir uma a caminho.
— Eu sempre contei histórias desse gênero para ela quando pequena. Contêm muitos ensinamentos. — Moggie sorriu e olhou para mim.
— Bem se vê. Criou ilusões na mente da garota.
Não me contive e ergui os olhos para ele.
— É o tipo de história que toda a criança entende e estimula o desenvolvimento cognitivo, sabia?
Sua mãe não deve ter lido muito para você, pensei mas me contive para não verbalizar.
— A melhor forma de aprender é vivendo. E a vida não é essa ilusão de um mundo feliz e perfeito. – Ele pousou os talheres na borda do prato e se dirigiu a mim.
— Tentar enxergar o que há de melhor nas pessoas não é ruim, mas viver apontando apenas os erros ou defeitos de alguém, é.
Assenti para Moggie quando ela lançou essa frase porque concordava plenamente e também queria vê-lo desmoralizado. E acabei por acrescentar o pensamento dela com uma defesa.
— Além disso, ela nunca me iludiu. Eu sei bem diferenciar o que é real do que não é.
— Imagino que sim. — Sua voz soou um tanto irônica quase como zombaria.
— Moggie foi como uma mãe para mim. Não vou admitir que a ataque dessa forma ou questione seus métodos e muito menos que tente tirá-la de mim.
Notei a confusão se formando no rosto dela. Não pretendia que ela descobrisse dessa forma, mas também não havia motivos para esconder. Uma hora ou outra ela descobriria o que ele planejava.
— Ninguém vai me tirar de você, Liz.
— Eu vou. — Tio James a cortou e ela reagiu, lançando um olhar desesperado para ele. A mulher ficou atônita ao receber a notícia. — Passou da hora de impor limites a essa jovem.
— Mas senhor Deskran, eu sempre cuidei da formação acadêmica da senhorita Lizlee.
Ela tentou defender a continuidade do seu posto. Seus olhos estavam se enchendo de lágrimas.
— E olha o que deu. Bom, de qualquer forma, agradeço pelos seus serviços.
— Isso é ridículo! Você não tem esse direito.
Meu sangue ferveu de raiva. Precisei me retirar da mesa para não explodir e tomar uma péssima decisão. Não tardou muito para que ele se postasse na porta do meu quarto intencionado a me dar mais sermões, é claro.
— Lizlee, já está na hora de deixar essas infantilidades para trás. Cresça.
— Cresça você. — Gritei de dentro do quarto. Não era meu melhor insulto, mas foi o que me veio na hora.
— Você está me obrigando a aplicar medidas mais severas.
— Aplique o quiser. Não sou obrigada a obedecer.
— Ah, mas vai. Porquê se não o fizer, eu garanto que hoje mesmo a senhorita Hapstall faz as malas.
Nervosa com a chantagem, fui até a porta e abri.
— Se ela for, eu vou junto. E levo tudo o que é meu comigo.
— Pondere as suas palavras.
— Experimente fazer o mesmo.
Empurrei a porta com força e rapidamente o homem descontou dando um murro nela. Me afastei e esperei um tempo, até que escutei seus passos se distanciando dali. Dando com as costas para a porta, me deparei com alguma coisa na parede oposta a cama, ou seja, em frente dela. Recuperei um pouco de fôlego, passei as mãos pelo rosto e me aproximei lentamente. Depois ficando nas pontas dos pés puxei o pano branco que cobria. E bem na minha frente, ao alcance dos meus olhos, vi se descortinar a mesmíssima tapeçaria com que sempre sonhava. A única diferença é que agora era palpável. Repeli aquilo, balançando cabeça e esfregando os olhos. Mas ao abri-los, ela ainda estava lá. Com medo de que se eu a tocasse teria um incêndio no quarto – tal como no sonho – me afastei tanto que dei de costas com a porta outra vez. Meus olhos ficaram vidrados naquele desenho peculiar e igualmente assustador. Contudo, me detinha principalmente na mulher. Ela estava graciosa e com feições de felicidade. Fiquei imaginando quem seria ela e o que tanto queria me mostrar. Quando amanheceu, eu cruzei os dedos para não me encontrar com meu tio – embora morássemos na mesma casa. Eu não havia superado a discussão da noite anterior, então quando vi que ele não estava fiquei mais tranquila. Mas só até o momento em que ele surgiu.
— Bom dia!
Interroguei à mim mesma sobre como ele podia ser tão cínico. Moggie o respondeu apenas por educação antes de deixar a mesa – com certeza ela estava magoada. Eu simplesmente o ignorei.
— Espero que não se importe com minha ausência hoje. Tenho muitas coisas para resolver com relação aos seus bens.
— Pois aproveite.
Retruquei, sem levantar os olhos para ele. Acho que deixei bem claro que não me importava com sua falta pois logo o homem deu a volta e saiu. Cavanaugh veio da cozinha quase no instante depois, como se o esperasse sair para falar comigo e me encontrou distante. Apenas meu corpo estava ali, minha mente vagava em outro lugar que nem eu mesma sabia onde.
— Lizlee? — Ele abanou a mão na minha frente como se para me chamar a atenção — Está com a expressão abatida.
— Ah, não! Eu estou bem.
— Não está. Eu te conheço. — Minha tutora retornou já ingressando na conversa. — O seu tio não iria querer vê-la doente.
— Será mesmo?
— Tome o café.
Ela pronunciou as palavras com uma firmeza que até me convenceu pelo menos provar algo. Comi um bolinho e beberiquei do chá, depois abri os braços como se exclamasse "estão satisfeitos?".
— Cavanaugh, você sabe onde deixei minhas pastas com os documentos...?
Tomei um susto ao ouvir a voz de meu tio pois pensei que já tivesse partido.
— Não, mas posso ir procurar.
O mordomo respondeu e se retirou. Aproveitei o momento para tirar a limpo a história da tapeçaria.
— Achei bom que tenha voltado, — não achei, não – assim posso tirar uma dúvida.
— Pois não?
— Quem é a mulher na tapeçaria? — Vi que ele ficou ligeiramente nervoso com a pergunta, até gaguejou.
— C-como? Acho que não compreendi a sua pergunta.
— Tem uma tapeçaria no meu quarto, eu não sei quem a deixou lá, mas quero saber quem é a mulher representada naquela figura.
Imediatamente ele chamou Cavanaugh e o mesmo apareceu. Eles se afastaram um pouco de nós.
— Já não mandei queimar aquela coisa?
O mordomo se aproximou e confidenciou ao patrão mas eu pude escutar mesmo com alguma dificuldade.
— Já tentei isso, mas ela não queima.
— Então jogue no mar, não importa. Quero que suma com aquilo.
— Sim, senhor.
O empregado entregou a pasta e foi cumprir a nova ordem. Já tio James, foi pelo outro lado. Observei aquilo com certa desconfiança. Então, não era a primeira vez que a tapeçaria aparecia na casa e o assunto era um incômodo para o tio James.
— Querida. – Dei um pulo, estava distraída quando Moggie encostou em mim. — Sei que não tem obrigação de se abrir com ninguém, se não quiser, mas... me diga a verdade. Não está sendo nada fácil para você. É uma mudança muito drástica, principalmente depois da forma como perdeu seu pai. Eu realmente gostaria de fazer mais para ajudá-la com o luto.
— Bom, é verdade que não sei muito o que fazer ainda. Mas não precisa se preocupar comigo. — Ela deixou o seu lugar e veio me abraçar. — Eu vou ficar bem, prometo.
— Tem certeza?
— Tenho. — Hesitei um instante. Era lógico que não estava.
— Sabe que não importa o que aconteça, você me terá para sempre ao seu lado.
Eu sorri, mesmo sabendo que aquelas eram apenas palavras de consolo uma vez que, assim como meus pais, Moggie partiria algum dia. E não me referia apenas à morte, mas para viver sua própria vida e – por mais que fosse me fazer falta – isso era algo que me deixaria muito feliz.
Saí para dar uma caminhada. Eu estava precisando tomar um sol e respirar ar puro, livre das amarras de meu tio e daquela casa estranha. Um pouco afastado da casa, mas ainda na propriedade, encontrei um estábulo e alguns cavalos nele. Acariciei a cara de um deles, que tinha a pelagem de um tom dourado de marrom, primeiro com as costas da minha mão e em seguida com a palma. Ele relinchou e balançou a crina marrom escura trançada com fitas douradas. De repente, escutei uma voz desconhecida e dei a volta no estábulo para ver de quem se tratava. Do outro lado, acabo encontrando um homem de cabelos grisalhos. A julgar por todas as coisas que aconteciam neste lugar, nem liguei para o fato dele estar conversando com as plantas.
— Olá, senhorita Lizlee. Que surpresa maravilhosa!
— Como sabe meu nome? — Franzi o cenho, ficando com um pé atrás para o caso de precisar correr.
— Eu trabalho aqui. Ouvi falar de você.
— Eu espero que bem. — Respondi e ele assentiu — Mas por que eu nunca te vi aqui ou qualquer outro funcionário?
— Eu trabalho na cozinha. E também seu tio é... seu tio, não é mesmo?
O homem usou um tom de obviedade, mas eu não poderia discordar. Coloquei as mãos no bolso e me balancei um pouco.
— Então... tenho que ir.
Achei realmente que o assunto tinha acabado por ali, mas fiquei sem jeito de sair de repente. Olhei para as minhas botas para fugir do contato visual quando ele fixou seu olhar em mim.
— Fique tranquila. Ninguém aqui quer te fazer mau. Mas não podemos garantir nada se você entrar na floresta, certo? Por isso, não entre lá. — Ele sussurrou essa última parte e deu uma piscadela como quem conta um segredo.
— Isso é tipo uma psicologia reversa?
— O que?
— Quando alguém diz algo com a intenção de influenciar outra pessoa a fazer o contrário.
Ele estreitou os olhos e bateu as mãos tirando a terra delas. Seu cenho de franziu em seguida.
— Não é isso.
— Aham. Mas, então... O que tem nessa floresta que eu não posso ir?
Falei no mesmo tom que ele usou, de confidência. Ele olhou por cima dos meus ombros sem muito esforço por conta da minha altura. Com certeza não estava olhando para mim e sim para a tal floresta.
— Não conhece a história de Una Royal?
— Para ser sincera, não fazia ideia da existência desse lugar até colocar meus pés nele. E também, não me lembro de já tê-lo visto nos mapas do Grande Lizma.
O homem começou a caminhar e depois de uns três passos parou.
— Você vem ou não? — Sem me dar ao trabalho de respondê-lo, o segui.
— Com a terceira guerra, o mundo se tornou um lugar inadequado para a vida humana. Uma mutação genética afetou parte dos habitantes do planeta. — Assenti sinalizando que sabia daquilo. Então, ele prosseguiu.
— Essas pessoas eram vistas com maus olhos pelas organizações governamentais e pelos civis comuns, sendo classificadas como “guers”. Essa rejeição foi ao extremo e fez com que essas pessoas fossem caçadas e precisassem fugir para longe e, por causa disso descobriram este lugar. Una Royal. Houve um tempo em que era um lugar de equilíbrio e paz. As pessoas usavam suas habilidades não só para manipular a natureza como também para revitalizar as áreas antes destruídas pelas mãos humanas, renovando assim os recursos necessários à sobrevivência que ficaram escassos depois das guerras e constituindo uma nova sociedade.
Nesse ponto, o homem de cabelo grisalho parou e suspirou. O tom da conversa começou a mudar a partir daí.
— Mas, infelizmente, a ganância e sede de vingança dos guers por terem sido caçados e torturados, obrigou as Divindades Maiores da Natureza a intervirem e criarem um meio para impedi-los de executar seus planos que visavam a supremacia da nova raça às custas de massacrar os humanos comuns. Como medida, elas uniram seus poderes e criaram o "Limite de Una", ele impede que não-guers acessem o lado de dentro e que os guers acessem o lado de fora. Desde então nos tornamos praticamente invisíveis aos não-guers. As Divindades querem instaurar a paz, embora todas as vezes que tentaram, os seres humanos não tenham aproveitado sua graça e benevolência. Portanto, dessa vez, as Divindades estipularam um prazo para o fim dessa raça caso não nos mostremos dignos de seus dons. Durante a Convergência Dimensional, um alinhamento de diferentes dimensões ocorrerá e nesse momento, será possível apenas aos escolhidos das Divindades, se unirem para evitar nossa extinção.
Ao escutar aquelas palavras, tive a sensação de que meu cérebro expandiu dentro da minha cabeça, o que me causou uma enxaqueca enorme. Tombei um pouco para trás encostando na parede.
— Está se sentindo bem?
— Não, mas vou ficar. Preciso ir.
Respondi mesmo sem ter certeza, porque eu realmente queria acreditar que eu ficaria bem. Agora mais essa história de Divindades dando poderes e de impedir o fim do mundo. Esse lugar era muito estranho. Só queria acordar e estar de volta na minha casa sabendo que aquilo tudo não havia passado de um pesadelo. Fugi o mais rápido que podia, tomada pelo medo de nunca conseguir me livrar daquele lugar esquisito, cheio de pessoas estranhas. Querendo ou não eu ainda era a garotinha de Leeland. A garotinha medrosa e facilmente derrotável por seus próprios medos.
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