Capítulo IV -
Acordei sobressaltada e olhei na direção de onde vinha a luminosidade. O sol já denunciava um novo dia, ou seja, mais uma batalha se iniciava. Antes de chegar na escada, encontrei Moggie no corredor. Ela me olhou inteira e entortou os lábios – estava desaprovando meus shorts, com toda certeza – todavia, relevou e sorriu para mim, desejando bom dia.
— Pensei que eu fosse última a ter acordado.
— Considerando seu histórico. – Ela soltou um som de inquietação, como um arrufo. — Mas eu já estava acordada, só vim buscar um livro.
— Tenho outros em meu quarto. Obrigada.
Ela me estendeu mas neguei com a cabeça juntamente às palavras de dispensa. A tutora segurou o livro com uma das mãos e enganchou seu braço no meu com a que sobrava. Fomos juntas até as escadas, conversando um pouco.
— Tem certeza que não precisa arrumar distração?
— Não tinha intenção de lhe ofender ontem. Eu gosto da sua companhia.
— Senhorita, não precisa se desculpar. Eu compreendo que jovens precisam de aventura, de desafios, de viver... Já fui jovem também, lembra?
Eu ri e ela também me fazendo carinho na cabeça.
— Talvez eu dê uma volta mais tarde.
— Como quiser. E antes que eu me esqueça... — Ela me parou e segurou em meus ombros. — Acha que seu tio aprova suas roupas?
— Acho que se dependesse da aprovação dele eu nem estaria aqui.
Moggie suspirou cabisbaixa mas não podia discordar. Acho que ela depositou muita expectativa em mim e acabou se frustrando.
— Tente fazer essa convivência dar certo, precisamos de um teto.
— Eu faço minha parte mas você vê ele se esforçar para fazer o mesmo?
Tio James surgiu no topo da escada naquele exato momento.
— Estavam falando de mim? — Nós duas nos voltamos para ele. Enquanto o homem descia os degraus, nossos olhos o acompanhavam. — Posso saber o que era?
— Era sobre nossa convivência em família.
Dei as costas para os dois e segui para a mesa de café. Ao nos ver chegar, todos juntos, Cavanaugh se iluminou.
— Bom dia.
— Igualmente, Cavanaugh.
Em menos de dois minutos percebi duas coisas: Moggie e Cavanaugh estavam interessados um no outro e meu tio tinha ressalvas sobre nosso contato com os empregados e não fazia a menor questão de esconder seu descontentamento. Mas por quê?
— Cavanaugh, sirva-nos. Tenho pressa.
O brilho nos olhos deles se apagou momentaneamente. Após o café ele saiu. Comecei a desconfiar, não de suas saídas, afinal de contas ele devia trabalhar para manter seu estilo de vida, mas sim de seu comportamento. As pessoas estavam sempre me escondendo algo, James não seria exceção.
Era apenas mais um dia entediante e infelizmente, evitar os corredores não era mais uma opção. Moggie e Cavanaugh já estavam achando aquilo muito estranho. Passei a ter receio de transparecer o medo que eu estava sentindo – o que só acabou fazendo-o aparecer. Fui até a varanda respirar um ar puro e olhei para o céu. Estavam se formando nuvens de chuva, o que significava mais tempo presa dentro de casa. Em Leeland, dificilmente era possível presenciar essas manifestações da natureza. Na maior parte do ano só fazia frio e ventos muito fortes atingiam as áreas urbanas, causando destruição. Naquele lugar, as coisas eram diferentes. A natureza era abundante e o regime de chuvas, assim como as condições climáticas, eram muito favoráveis. A chegada dela trouxe consigo o tio James, que frustrou meus planos de dançar na chuva temendo menos ser queimada por sua acidez.
— Entre agora, Lizlee. Está chovendo. – Ele desceu de seu cavalo e veio correndo em minha direção.
— É mesmo? Nem percebi.
Gritei em meio ao som da chuva, que abafava minha voz. Ele segurou em meu braço e me levou para dentro de casa.
— Não quero que pegue um resfriado.
— O que você não quer é que eu saia dessa casa ou que eu converse com as pessoas... — Despejei contra ele, sem pensar duas vezes. As gotas de água iam descendo e formando uma poça ao nosso redor. — Uma chuva não vai me matar, mas caso aconteça... — contive o tom de voz e prossegui — você ficaria feliz, porque aí coloca as mãos na minha herança de uma vez por todas.
— Cale-se. Não quero ouvir mais nenhuma palavra.
Ele soltou meu braço e saiu pisando alto. Uma brisa soprou pela janela e eu tive que me apressar em retirar aquela roupa molhada ou logo realmente poderia terminar resfriada. Não vi o meu tio pelo resto do dia. No jantar, ele esteve presente porém o silêncio se estendeu. Nessa hora, até Moggie tagarelando idiotices, seria melhor do que aquele silêncio constrangedor. Eu quase podia escutar o piano tocar outra vez. Tinha quase certeza de que eu era única e que estava transbordando de medo. Meus olhos faziam um zigue-zague pela mesa em todos os objetos e pequenos detalhes. Minhas mãos tremiam enquanto eu levava a comida à boca. Busquei me concentrar na refeição. O som do instrumento, que antes aparentava estar distante, agora enchia a casa inteira. Como se estivesse na sala ao lado. Ou dentro da minha mente. Comecei a sentir umas pontadas na cabeça. A dor aumentando gradativamente à medida que eu me forçava a acreditar que era apenas o meu psicológico que estava abalado.
Demorou alguns minutos, mas quando finalmente a música cessou, peguei um copo e o enchi de água – na esperança de estar certa que aquilo não passava de um mau estar causado pelo calor que estava fazendo. O ergui até a altura de meus lábios. Neste instante, meus olhos visualizaram algo espantoso. A mulher que aparecia todas as noites em meus pesadelos, agora estava refletida no vidro polido do copo. Ela depositou a mão direita em meu ombro e sorriu. Extremamente apavorada com a visão, soltei um grito e joguei o copo no chão.
Ele se estilhaçou em vários pedaços. Minha ação desencadeou uma série de reações. Moggie também deu um grito de espanto e se levantou pra me ajudar. Cavanaugh se prestou a limpar aquela bagunça e o tio James não se manifestou imediatamente, observou calado. Olhei e vi que ele conservava a expressão tranquila, mas seus olhos mostravam ligeira aflição. Eu não sei exatamente o que se passava e nem porquê daquela perturbação quando eu o olhava, mas sei é que o homem se ergueu em retirada e abriu a boca para dizer algo mas depois desistiu. Depois de passado o momento de susto, minha tutora me perguntou o que aconteceu e não tive forças para dizer. Também não consegui terminar a refeição – tamanho o choque. Acabei subindo bem devagar, como se houvesse um peso amarrado em minhas pernas. Só não queria sucumbir à loucura. Não queria que aquele lugar me atormentasse e me destruísse. E por incrível que pareça, depois daquela aparição, eu não sofri pesadelos durante a noite. No outro dia, quando apontei na sala, tio James foi bem direto.
— Sua atitude na noite anterior me fez decidir que Morgana não tem sido a melhor pessoa para cuidar dos seus estudos. — O encarei. Ele era um ordinário mesmo.
— E quem seria a melhor pessoa para isso?
— Está olhando para ela.
Tive que segurar o riso para não parecer rude. Mas não dava pra acreditar naquilo, mesmo que utilizasse toda a racionalidade do mundo.
— Você? Desculpe a franqueza, mas você realmente acredita que é a pessoa mais apropriada para isso?
— Está vendo? É por isso que você precisa de alguém que te coloque nos trilhos.
Gargalhei por um breve momento, enquanto ele continuava a expressar suas impressões sobre mim.
— Você é mimada e arrogante. Ninguém nunca tentou impor limites às suas ações e acabou como está agora.
— Como você se atreve? O pouco que sabe sobre mim não lhe dá direito de me tratar como bem entende.
Ele se sentou à mesa e fez sinal para ser servido, ao que o empregado logo obedeceu e depois, ficou bem ali no cantinho sem dar uma palavra.
— É impressionante a sua falta de consideração pelo esforço que estou fazendo em acolhê-la.
— O seu esforço não tem nada a ver com sentimentos ou com laços familiares. Tem a ver com a minha herança.
Ele sorriu de canto de boca. O comportamento dissimulado dele me fazia nutrir um sentimento ruim com respeito ao futuro da nossa relação. Se é que ela tinha futuro.
— Não tem outro jeito. A decisão já está tomada.
Bati com as mãos espalmadas na mesa e me inclinei em sua direção.
— Está comprando uma briga enorme.
Ele também se levantou e me encarou, de cima para baixo, com desdém.
— Você tem dezessete anos, já passou da hora de deixar as brincadeiras de lado. Querendo ou não você terá que aprender a me respeitar.
Aquilo não me parecia certo. Moggie era a única família que me restara. Eu a conhecia desde que nasci e agora um intrometido queria tirá-la de mim? Antes de me dar as costas, ele lançou um olhar muito estranho para mim e eu devolvi. Tinha plena consciência de que, inflexível como ele se apresentava, eu teria muito trabalho para não perder a cabeça e agora essa era última coisa que eu poderia fazer.
Lá fora, a chuva foi ficando cada vez mais forte e aqui dentro já estava instalada uma tempestade. Parecia uma eternidade olhando os pingos baterem contra o vidro das janelas da sala de estar e seguirem o caminho até se encontrarem todas na parte de baixo. Naquela lenta e tediosa manhã, vi meu medo crescer. Medo de ficar sozinha. Às vezes eu dizia coisas sem pensar e provavelmente isso me custaria minha tutora. Poderia culpar o fato de ser jovem. Jovens fazem estupidezes. Só que não era hora de procurar a quem culpar, eu precisava dar um jeito de impedir os planos de James Deskran.
Durante o almoço, ele ficou evitando me encontrar. Pediu que levassem o almoço para ele no escritório e que ninguém o perturbasse. A súbita lembrança de meu pai acabou surgindo. Se eu soubesse o que viria depois, não teria passado as suas últimas horas de vida brigando. Então, ouvi batidas na porta e arrumei a saia rodada. Deduzi que fosse a Moggie, já que o meu tio estava muito ocupado em se esconder de mim. Fui abrir a porta para ela e descobri que estava enganada.
— O que está fazendo aqui? — Perguntei quando o vi na porta.
— Eu moro aqui.
— Quase esqueci. – Respondi em tom irônico ao que ele ignorou.
— Precisamos conversar.
Dei um passo para trás e ameacei fechar a porta.
— Morgana não possui a rigidez necessária. — Ele colocou o pé entre o batente e a porta e entrou no quarto. — Pelo contrário, ela tem muito afeto por você e isso acaba atrapalhando tudo.
— Já passei da fase de ser “educada” e Morgana fez o melhor por mim. Ela se esmerou para me criar.
— Bom, de qualquer forma me sinto na obrigação de lhe impor limites. Sua rebeldia pode causar grandes estragos.
Analisei se era apenas preocupação da parte dele ou se ele só queria me tornar uma marionete moldada pelas crenças ultrapassadas contidas naquela mente fechada que ele possuía.
— Você vai mandá-la para longe de mim?
— Não vejo motivos para que ela continue aqui.
Ele foi me deixando ali sozinha e eu fui ficando sem palavras. O nó que se formava em minha garganta me impedia.
— O que você ganha com isso? — Meus olhos miravam o chão.
Cada passo que ele dava naquela direção me causava uma fisgada no coração. E ele não tinha pressa, era como se sentisse que me afetava e não houvesse remorso algum em seu coração por isso. Talvez sua intenção fosse me fazer implorar para que ele não a tirasse de mim. E quando aquele homem se afastou, eu fui atrás dele e puxei a manga de seu blazer. Ele virou devagar com o semblante debochado.
— Desde que eu era uma criança... foi ela. Não você. Não meu pai. Ela pode não ser uma boa tutora aos seus olhos, mas para mim ela é a única família que restou. Agora saia do meu quarto e não volte a ameaçar tirá-la de mim.
— Só queria deixar bem claro que não é você quem decide o seu próprio futuro. Esta casa é minha e eu sou o responsável por você. Aceite!
— Saia daqui. Agora!
Quando ele finalmente saiu. Me joguei na cama chorando. Eu me sentia tão sufocada e solitária. Pior do que isso, não tinha para onde ir. Moggie seria tirada de mim e eu queria lutar para não perdê-la, mas como fazer isso?
— Liz, o que está acontecendo? — Ela surgiu ali minutos depois como se lesse meus pensamentos.
Me sentei na cama, sequei as lágrimas e encostei no ombro de minha tutora, que acabara de se sentar ao meu lado na cama. Logo em seguida, me agarrei ao seu tronco e a abracei.
— Eu pensei em vir aqui conversar sobre a forma como você e seu tio estão se relacionando.
Franzi o cenho, um pouco inquieta com o assunto.
— Seria melhor para as duas partes se não tivéssemos de nos relacionar. — Disse baixinho, contra seu colo.
— O seu tio é responsável por você daqui pra frente. Se ele diz que deve fazer algo, faça. Se ele diz para não fazer, não o questione. — Depois de uma breve pausa, ela suspirou e concluiu. — Seu pai não nos enviaria para cá se não tivesse certeza de que esse homem te protegeria.
— Se soubesse o que ele está planejando, não o defenderia.
A mulher segurou minha mão, acariciando ela e dando um beijo na minha testa.
— Não é a ele que estou defendendo, minha querida. Mas imagina se ele resolve entregá-la para esses abrigos imundos?
— Eu ainda tenho essa opção?
Ela riu baixinho e deu alguns tapinhas em minha mão.
— Nem pense nisso. Eu só quero o melhor para você. Prometi aos seus pais quando você nasceu que a protegeria contra tudo.
— Então está na hora. Me defenda contra ele.
Ela não parecia concordar com minha opinião sobre meu tio. Como alguém podia não perceber o que estava havendo, se estava tão claro?
— É uma questão de boa convivência.
— Mas não adianta se só um dos lados considera a mudança. — Retruquei para ela que permanecia convicta.
— Essas discussões não os levarão à lugar algum.
— Tudo bem. – Suspirei. — Posso tentar ser mais cuidadosa com minhas palavras, embora não acredite que mudará muita coisa.
— Tenho certeza que sua mudança refletirá na dele.
— Assim eu espero.
Forcei um sorriso para mostrar que ela poderia ficar tranquila e despreocupada em relação a isto. Na verdade, eu tinha mais com que me importar, a menos que fingir gentileza com o Senhor Arrogância me poupasse perder Moggie. Voltei a me deitar, ela deu um beijo na minha testa, depois saindo do quarto. Naquela noite o pesadelo de sempre voltou para tirar meu sono. Neste, depois que abri a porta e o incômodo do excesso de luminosidade passou, adentrei uma sala onde a única fonte de luz era uma abertura no teto – o que era bem esquisito, a julgar pela luz que quase me cegou na entrada. Ela iluminava uma tapeçaria linda com um desenho de uma mulher de longos cabelos brancos, vestindo um cintilante vestido azul-claro, montada num cavalo branco. Era a mesma mulher dos sonhos anteriores. O maior enigma era: porque esta mulher estava sempre em meus sonhos e o que isso significava? Neste ponto, fui despertada por Moggie. Ela me sacudiu na cama e abriu as cortinas. Joguei o cobertor em cima da cabeça e me virei.
— Levante-se. Vamos senhorita Deskran, o café está na mesa e seu tio acabou de sair.
— Ainda está chovendo?
— Não. É um lindo dia. Pode até mesmo fazer aquele passeio que planejou.
Esperei a porta bater novamente, mas ela se sentou e ficou me encarando. Talvez só quisesse ter certeza de que eu não voltaria a dormir depois de sua saída. Tomei coragem e me levantei. Moggie foi até o armário, retirou um vestido azul turquesa de dentro dele e me entregou.
— Para que isso?
— Por que as suas roupas são um insulto aos meus olhos.
Gargalhei, por causa da entonação dramática com que ela colocou as palavras. Vesti o vestido, que já batia na metade das minhas coxas pela falta de uso, mesmo o tendo há tantos anos. Desci e tomei o café numa rapidez impressionante. Era a primeira vez que sentia fome de verdade naquela casa. Cavanaugh alegou não estar muito disposto e pediu nossa ajuda para dar uma geral na casa. Moggie quis bancar uma de enfermeira e depois de lhe medir a temperatura o mandou repousar, sendo assim, prometeu a ele que nós duas ficaríamos responsáveis por fazer algumas atividades domésticas. Como o lugar era muito grande, nós duas chegamos ao fim do dia exaustas. Não conseguia imaginar como ele fazia tudo sozinho já que nunca via outros empregados pela mansão e me fiz jurar que nunca mais deixaria nada sujo para que ele tivesse que limpar. A noite chegou e com ela as dúvidas: como era possível ter tantos e sucessivos sonhos com a mesma pessoa se eu nunca a havia visto? Haveria um enigma a ser desvendado? Pela minha nem tão vasta experiência, a resposta não despencaria do céu na minha cabeça. Nada despenca do céu na cabeça de ninguém.
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