Capítulo II -


Acordei desnorteada e com muita dor de cabeça. O relógio marcava dez da manhã. Estava vestida com um vestido pouco acima do joelho, bem como com uma meia calça, luvas – e até sapatos – tudo na cor preta. Só então retomei a consciência de que nada daquilo fora um pesadelo. Era real. Meu pai havia falecido. Como reagir a isso? Haveria um plano traçado para quem acabara de assistir o assassinato de seu próprio pai ou eu estaria jogada à própria sorte? Sinceramente, eu não sabia o que pensar, o que fazer e nem para onde ir.

Sem forças para me erguer da cama, permaneci deitada. Fui me encolhendo cada vez mais, sentindo o mundo desabar na minha cabeça.

Moggie adentrou o quarto sem fazer alarde, pois sabia que eu não me encontraria em um bom estado, e veio se deitar junto comigo na cama acariciando os meus cabelos numa forma silenciosa de consolo. A abracei e me derramei em prantos. Já que talvez ela tenha sido a única pessoa que me restou, não tinha receio de chorar em sua frente. Passamos um bom tempo ali, até que, ela finalmente conseguiu me fazer descer para o enterro.

Quando chegamos lá embaixo os empregados da casa e alguns da empresa formavam duas fileiras, uma de cada lado, de forma que nós duas pudéssemos passar no meio. Tentei não reparar muito em seus rostos, pois sabia que choraria mais, mas o silêncio dizia tudo.

No enterro estavam presentes vários amigos, outros empresários, sócios e funcionários da empresa prestando suas últimas homenagens e eu, que nunca fui muito boa em despedidas, fiquei totalmente calada diante da situação. O vento soprava frio naquela manhã cinzenta. Parecia que a natureza compartilhava da minha dor. E mais uma vez, fui tomada daquela estranha sensação de estar só em meio a uma multidão.

Enquanto fingia que escutava as palavras do padre, caminhei até o caixão e depositei rosas sobre a superfície de madeira escura. Mais uma vez um vento gélido passou causando arrepios por todo meu corpo. Apertei o sobretudo e enfiei as mãos no bolso. Desviei o olhar do caixão por um breve instante e me deparei com a estranha visão de uma pessoa, trajando roupas alvas como neve, nos observando. Gradativamente esta figura foi desaparecendo como uma fumaça.

Amedrontada, voltei os olhos para Moggie que fez um sinal para que eu fosse até ela. Mas, por algum motivo inconsciente, não conseguia evitar a vontade de olhar mais uma vez – mesmo que somente para ter certeza de que era coisa da minha cabeça. Quando enfim venci o medo, a pessoa havia desaparecido completamente e então fui me juntar à Moggie.

Após o enterro e o fim das homenagens, fui avisada de que o senhor Bolton, advogado da família, me esperava para discutir meu futuro. A notícia me deixou um pouco irritada. Era como se não houvesse outra hora para tratar de assuntos financeiros. Mesmo assim, fui recebê-lo na sala de visitas. Tentei assumir uma postura um pouco mais madura e menos abalada. O cumprimentei com um aceno de cabeça e estendi minha mão para um aperto, ao que ele hesitou num primeiro instante mas logo o fez.

— E então?

Perguntei ao me sentar na poltrona que era de meu pai, a sensação era a de estar invadindo o espaço dele.

— Senhorita Deskran, em primeiro lugar queria demonstrar meus sentimentos pela morte de um homem tão justo e honrado quanto o seu pai.

Indiquei um assento e ele se sentou, colocando a maleta sobre a mesinha de centro.

— Por favor, vamos direto ao assunto.

— Sim, como quiser. – Concordou, meio desconcertado. — O seu pai deixou uma quantia muito alta em seu nome.

Senhor Bolton começou a retirar da maleta todos os documentos e os segurou em minha frente. Peguei os papéis e analisei, enquanto ele continuava a explicar a situação.

— Todos os seus bens e o comando das Indústrias Deskran são sua herança por direito e legitimidade. Porém...

Peguei uma pasta e comecei a folhear sem me atentar ao conteúdo por conta daquele porém. Sempre haveria um porém. Porque sou mulher e também não havia atingido a maioridade estipulada no Grande Lizma, entretanto, sabia que era perfeitamente capaz.

— Continue.

— Porém, é de nosso conhecimento que acaba de completar dezessete anos, o que não configura idade suficiente para ter autonomia sobre os bens dispostos em seu nome.

Neste momento ele retirou um documento e o colocou na minha frente. Parecia importante, do contrário teria deixado bem na minha cara o tempo inteiro.

— E o que isso quer dizer realmente?

— Quer dizer que o seu novo responsável legal é quem cuidará dos seus bens até que possa fazê-lo você mesma. Quanto às Indústrias Deskran, as ações do seu pai podem ser vendidas ou podem permanecer sob o domínio da família Deskran... mas isso veremos outra hora. Não quero sobrecarregá-la. Compreende isto?

Relevei o fato de que ele falava como se do outro lado houvesse uma criança. Já não bastava ser inconveniente em um momento de luto. Aquela era basicamente uma insinuação de que queriam desocupar a casa e se livrarem de mim no processo.

— E quem ficará com minha guarda? Eu não tenho mais família até onde sei.

— Aparentemente, você tem. Ele se chama James Deskran, é irmão mais velho de seu pai.

O homem sacou uma caneta do bolso do paletó e segurou virada para mim.

— Qual a finalidade disso?

— Preciso que assine esses termos atestando que está ciente de que daqui para frente seu tutor legal é quem administrará os bens, em seu nome, até que complete a maioridade ou se emancipe, é claro.

— Ele pode fazer o que quiser com o meu dinheiro?

— Não "o que quiser", mas ele pode usar o dinheiro para suprir as suas necessidades. – Senhor Bolton balançou a caneta e me encarou como incentivo.

— Para onde estou indo? Eu tenho que me mudar, não é?

— Não se preocupe. Está no testamento e a leitura ocorrerá assim que estiver instalada em sua nova casa e familiarizada com seu tio. Seu pai tinha pensado em tudo e estava certo de que lá você estará bem protegida.

Protegida. Meu pai disse que queria me manter protegida e por isso não me contou sobre minha mãe. Mas, protegida em que sentido? Protegida de que ou de quem?

— Então, senhorita...

Ele balançava freneticamente o objeto, o peguei de sua mão ainda hesitante e assinei os documentos.

— Por que meu pai nunca comentou sobre esse homem?

— Seu pai nunca foi de manter contato com a família.

— Eu sei, mas...

Apressado como sempre estava acostumada a vê-lo, o homem acrescentou atropelando minha fala.

— Com certeza ele tinha seus motivos. Quem sou eu para questioná-los? – Ele puxou um paninho do bolso do paletó e limpou as lentes dos óculos. — Bem senhorita, a viagem será amanhã. Tenho certeza de que será bem recebida na nova casa.

E agora estava claro que o meu pai mantinha mais segredos escondidos de mim do que eu podia imaginar.

— Obrigada pelas notícias. Está dispensado.

— Passe bem, senhorita. E minhas mais sinceras condolências.

Não tinha certeza da parte do "sinceras". Se houvesse em suas intenções qualquer resquício de sinceridade, ele nem estaria ali. Já era estranho estar sendo praticamente empurrada para fora de casa quando meu pai havia acabado de ser enterrado, ainda acabara de descobrir que meu pai tinha um plano de me enviar para a casa de um completo desconhecido caso algo acontecesse. Isso significava que ele sabia que o perigo era iminente. Seu amigo havia dito algo a respeito de alguém nos rondando e sobre "continuarem vindo", mas quem eram e o que pretendiam? Por isso ele planejou tudo? Será que ele mesmo teria dado ordens de me mandarem para longe imediatamente após partir? Será que ele sabia que isso estava prestes a acontecer? O que significava tudo isso? Nada fazia sentido.

Ao ouvir a porta bater e notar a presença da minha alta, curiosa e nada discreta tutora, pedi que me desse um momento sozinha no escritório antes de ir descansar para a viagem. Não seria nada fácil enfrentar o luto. Da mesma forma que não seria fácil me despedir da casa em que vivi dezessete anos, não seria menos pesaroso suportar permanecer com tantas lembranças dolorosas. O tempo passou mais devagar do que nunca. Apesar de a mobília permanecer intocada, as salas estavam vazias e silenciosas. Eu sequer conseguia reconhecer o meu próprio quarto. Estava sem vida, sem luz. Me tranquei e despenquei na cama num pranto inconsolável e solitário. Nem vi o sono chegar.

Na manhã seguinte, estranhei ninguém ter vindo me importunar logo cedo, mas deixei para lá. Os empregados já haviam arrumado as malas e a condução. Olhei para aquilo e lamentei os meios de transportes terem se tornado quase primitivos quando os veículos poluentes foram proibidos no Lizma, por outro lado, achei bizarro e até mesmo um pouco engraçado que até eu já estava pronta. Refleti como nunca havia agradecido por tudo que os empregados sempre fizeram por mim. "Nada se valoriza tanto quanto aquilo que se perde", meu pai disse uma vez e era verdade.

Na companhia daquelas pessoas com as quais convivia diariamente, eu aprendi muitas coisas. Retborn me ensinou a observar as constelações – algo que eu nunca realmente tive oportunidade de fazer devido ao céu sempre cinzento do Lizma. Madjen me ensinou a tocar piano e violino quando fiz birra com todos os professores de música e não os aceitava por seus rígidos métodos. Gaerth e Abdala me ensinaram a costurar e bordar – sendo que a segunda foi minha maior encorajadora a assumir meu estilo próprio, embora Moggie desaprovasse com veemência. Enfim, não importava qual a função exercida, todos sempre foram bons comigo e me ensinaram algo. Naquela manhã, quando cheguei na cozinha para o café, pedi que todos se reunissem e eles o fizeram.

— Eu não tenho um discurso enorme e nem nada elaborado, mas senti que precisava me despedir e agradecer principalmente. – Comecei, engolindo o choro que estava por vir. — Vocês sempre serviram a esta casa e à minha família com toda sua dedicação. Me ensinaram tantas coisas das quais nunca vou me esquecer. Por isso eu não poderia simplesmente ir embora sem dizer algo. Eu reconheço que parte da história dessa família, parte da minha história, só foi possível pelo trabalho que cada um de vocês desempenhou ao longo desses anos e também reconheço que ir embora é uma tarefa que se torna mais difícil quando se deixa amigos para trás, e é isso o que vocês são para mim: amigos. Eu só espero não ter sido muito exigente e que me perdoem caso eu tenha sido. Então, apenas... muito obrigada.

— Lamentamos sua perda, senhorita. – Se pronunciou a senhora Laverna Brisdon, a assistente do meu pai. — E esperamos que de alguma forma encontre conforto.

— Senhora Brisdon, eu deixo isto em suas mãos. – Entreguei a ela um envelope que havia encontrado no escritório do meu pai naquela manhã. — Com essa procuração a senhora tem autorização para acertar os pagamentos dos funcionários da casa, inclusive o seu. Meu pai confiava muito em seu caráter e profissionalismo, eu também devo confiar.

— Sinto muito, ma chéri. – Puxou a fila o chefe Bernardeau e depois dele outros funcionários também prestaram condolências.

— Não se esqueça de nos visitar algum dia. – Gaerth me abraçou e me entregou uma pequena bonequinha de pano que ela havia costurado para mim quando eu tinha mais ou menos uns sete anos. — Sentiremos imensamente sua falta, pequena flor de liz.

Sinceramente, aquelas despedidas me deixaram mais triste. Não sabia que todos tivessem tanto carinho por mim quanto demonstraram, exceto os que estimava profundamente. Por um breve momento, senti acolhimento e desejei ter me dedicado a enxergar as coisas mais simples que eles fizeram por mim quando eu ainda tinha tempo para retribuir. Após o café da manhã, me despedi adequadamente deles e me dirigi à nossa "carruagem". Não era como a gente ouvia escutar nos antigos contos de fadas, mas era basicamente isso que o veículo era: uma carruagem. Olhei pela janela e avistei a casa uma última vez. E foi assim que eu me despedi da minha antiga vida para ingressar numa jornada incerta. Uma viagem rumo à um lugar totalmente desconhecido. E foi como se o mundo, o meu mundo, se perdesse numa manhã triste e cinzenta.


Moggie falava o tempo inteiro. Reclamava que a viagem seria longa, do tempo seco, da velocidade em que nos deslocávamos, de como os buracos no caminho causavam-lhe náuseas. De vez em quando ela até bocejava, achando a viagem monótona. Mas o que esperava? Estávamos indo pro interior. Não que as metrópoles do Lizma fossem grande coisa. Um dia talvez tenham sido, mas hoje eram deprimentes e mórbidas. Já eu ficava olhando os campos secos, as pessoas com caras fechadas, as pontes ou antigas ruínas, os animais magros demais por causa da seca, os riachos de águas turvas e as montanhas. Tudo isso denunciava que já estávamos muito longe de casa.

À certa altura o sono me alcançou. Já estávamos viajando há horas e a noite não tardaria chegar. Pelo andar da carruagem – literalmente – só chegaríamos depois da hora do jantar, lá pelas nove da noite. O veículo passava por uma ponte estreita quando começou a tombar para um lado. O cocheiro nos gritou e acordei no susto. Moggie e eu conseguimos saltar, mas não pudemos fazer muito para impedir que o veículo tombasse quase completamente.

— E agora o que faremos?

— Acho que teremos que ir a pé. – Respondi para ela.

— Não podemos andar tanto com essa quantidade de malas.

— Alguém vai na frente e pede ajuda. A casa não é tão longe daqui. O caminho é seguro.

O cocheiro interveio dando uma sugestão. Nos entreolhamos, ela e eu.

— Eu vou! – Me voluntariei.

— Tem certeza?

— Ele disse que é aqui perto. Só esperem aqui.

Ela fez que sim e eu segui o caminho. Não haviam casas por ali e depois de uns três quilômetros à frente a paisagem começou a mudar drasticamente. Era como estar em outro lugar. Comecei a achar estranho, no entanto, olhei para trás e paisagem era a continuidade da que via à minha frente e não o total oposto como eu tinha certeza de ter passado. De repente, vindo logo à frente avistei quatro pessoas com roupas pretas. Minha primeira reação foi correr. Só não contava com a velocidade com que eles chegariam até mim – acho que ninguém contaria – e me vi cercada. Um deles veio e me segurou por trás, suas mãos pareciam brasas contra minha pele de tão quentes. Gritei por causa da queimadura.

Tentei me soltar mas outros vieram e, com movimentos rápidos e precisos, me amordaçaram e amarraram. Senti o medo e a adrenalina correndo em minhas veias. Meu coração acelerado, o sangue bombeando depressa, parecia que ia explodir. Porém não foi ele que explodiu e sim as minhas mãos. Foi surreal. Minhas mãos se transmutaram em fogo e transformaram em pó a corda nos meus pulsos. Mesmo assim, um deles insistia em me segurar, como se sua vida dependesse daquilo. O calor das mãos deles me dava a impressão de que eu estava derretendo.

Outra vez, inexplicavelmente a minha pele se transmutou, agora tornando-se água. O vapor pelo contato dos elementos opostos fez com que ele se afastasse, mas não por muito tempo. Ele voltou manipulando grossas correntes de metal – que não vi de onde surgiram porque estava ocupada tentando fugir – e de algum modo as ordenou para que se envolvessem em meus pulsos. Em seguida, com força impressionante ele puxou meus braços para trás. Não pude evitar a queda. O garoto que parecia ser o líder do bando, puxou as correntes e me fez levantar.

Mas desistir não era do meu feitio. Como se fosse a coisa mais natural do mundo para mim, invoquei uma corrente de ar que o empurrou para trás. Ele revidou usando a mesma corrente que eu lancei. Fui arremessada pela força do vento alguns metros para trás e saí rolando pela estrada de terra. Para finalizar minha humilhação, ele puxou as correntes e me trouxe de volta rolando até seus pés.

Quando se aproximou e agachou em minha frente, pensei que fosse me dar um belo soco na cara. Ao invés disso, ele segurou firme em meu queixo e deslizou sua mão – fria e vagarosamente – até o meu pescoço traçando a linha da minha jugular com o dedão. Eu teria morrido ali mesmo não fosse um dos outros três ter intervido. Uma vez distantes eles se comunicaram em uma linguagem que eu não compreendia. Lembro quando Moggie contou que antes do Grande Lizma haviam diversos idiomas pelo mundo. Provavelmente aquelas pessoas tinham acesso ao que eu não tive e estudaram idiomas antigos na escola.

Aproveitei o momento para desferir um chute no ar que lançou uma labareda no grupo. O fogo acabou atingindo um deles no braço e o outro se defendeu habilmente levantando um escudo de água que acabou se tornando vapor antes de atingi-lo. Furioso por ter sido ferido, o rapaz quis retornar até mim mas o outro o puxou pelo colarinho e gritou com ele. Depois disso, eles partiram. Desaparecendo tão repentinamente quanto surgiram. Uma vez sozinha, derreti as correntes. Demorou um certo tempo, porque eu estava muito nervosa com tudo que fiz e presenciei.

Até que em um estalo, me lembrei de toda história desconexa sobre o Grande Lizma que conheci através do diário e de teorias conspiratórias que os funcionários da mansão comentavam entre si sem que soubessem que eu escutava. Uma nova raça que podia manipular os elementos e os metais e também sobre a extinção deles. Mas não. Eles não estavam extintos. Eu acabara de ver a manifestação do poder deles. Pior, eu acabara de manifestar os poderes deles.

Atônita, passei longos minutos andando e buscando respostas dentro de mim, até que uma carroça de metal enferrujado parou ao meu lado e Moggie gritou lá de cima para que eu subisse. Nosso ponto de chegada se encontrava a ridículos dois quilômetros e era uma casa enorme. Chegando lá, fiquei receosa de revelar qualquer coisa à Moggie e afastar a única família que eu tinha por ser uma "aberração".

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