Capítulo I -

Eu me chamo Lizlee Deskran. Nasci em Leeland, capital do Grande Lizma. E embora nunca tenha sido uma pessoa extraordinária, a minha história é uma pequena parte de uma história maior ainda.

Meu pai era um homem de negócios. Nossa família era proprietária de uma empresa que produzia e distribuía energia eólica. Por esse motivo, quase nunca nos víamos. Nossa convivência se resumia à alguns eventos especiais e, se tivéssemos sorte, quando um de nós adoecesse. Eu era órfão por parte materna e atribuía a este fato o motivo pelo qual meu pai acabou se distanciando de mim. Durante muito tempo eu realmente acreditava que ele só trabalhava muito para me dar o melhor – já que as atividades econômicas demoraram muito tempo para entrar em um eixo aceitável aos novos padrões pós-reconfiguração mundial e sofriam longas instabilidades de tempos em tempos – mas chegou um ponto em que eu tinha tudo e mesmo assim ele não parava. Então, eu entendi o que ele estava fazendo. Sua intenção era criar um abismo entre nós. Para conviver com isso, ao invés de procurar ajuda profissional eu criei uma teoria de que meu próprio pai evitava contato porque minha mãe escolhera se sacrificar para que eu nascesse e com isso acabou abrindo mão de estar com ele. Em outras palavras, eu achava que ela havia morrido durante meu parto, mas a verdade era outra.

  Enfim, eu inevitavelmente cresci. Foi uma vida solitária. Eu fui uma criança sem amigos e muito dedicada a impressionar quem quer que fosse – em geral, adultos – com minha polidez e educação, na maioria das ocasiões ocultando minha verdadeira posição sobre diversos assuntos. Até que, exatos dezessete anos que eu vim ao mundo, tudo mudou.

Dadas as circunstâncias dos meus progenitores, fui criada por uma espécie de tutora, a figura materna-paterna que me manteve viva. Ela sempre foi meio excêntrica e não havia nada no mundo que a fizesse desistir de me proteger contra tudo. Moggie me contou que fez uma promessa à minha mãe e que nunca a quebraria, por isso, só me restava aceitar estar sob supervisão vinte e quatro horas por dia. Não posso mentir, sou extremamente grata à Moggie, sem ela eu não estaria aqui. Sem ela eu com certeza não saberia fazer coisas mais básicas. O fato é que, Moggie esteve presente em todas horas que preencheram meus dias, em todos os dias da minha vida até aquele momento. Mas ter uma tutora não era o mesmo que ter uma mãe. Moggie não era bem uma pessoa estável em questões emocionais e eu nunca soube porquê, mas naquela data ela estava especialmente agitada. Diria até que estava incomodada com algo. Poderia ser pelas empresas de meu pai voltando a crescer após uma grande recessão ou por ter sido incumbida de organizar uma grande festa dada para comemorar este salto positivo.

A casa inteira estava um burburinho que só. Moggie indo de um lado para o outro mandando costureiras me apertarem e me fincarem com suas agulhas habilidosas enquanto, na cozinha, chefe Bernardeau coordenava a equipe que preparava um jantar “espantosamente esplêndido” – palavras dele mesmo. Por todos os lados na casa só se falava disso. Parecia que todos se esqueceram que dia era aquele. Eu não tinha a pretensão de ser o centro das atenções mas todos os meus aniversários eram assim. Eu os passava lamentando a morte da minha mãe que sequer cheguei a conhecer ou dividindo com outras coisas que meu pai inventava de marcar. Queria pelo menos uma vez ter a oportunidade de comemorar mais um ano de vida. Entretanto, eu aceitava o que me davam e acabava sempre no mesmo lugar. O jazigo da família ficava dentro da propriedade, mas devido ao jantar ainda não havia tido tempo de visitar. Sentada em frente ao espelho penteando meus longos fios cor de fogo, me encontrei perdida nesses pensamentos. De repente, o ranger da porta me desconcentrou.

— Senhorita.

— Moggie! — Me viro em sua direção, ainda sentada. — Olha, se for me dar um sermão, as costureiras que saíram por conta própria, eu juro que não as espantei dessa vez...

— Não. Eu mandei elas saírem. — Completou a mulher com o cabelo um pouco desgrenhado, o que era estranho pois sempre estava impecável em seus penteados. — Precisava conversar a sós com você.

— O que pode ser tão importante assim para não falar na presença delas?

Dei uma risada descontraída tentando não parecer muito feliz e animada por pensar que alguém teria tirado alguns minutos de seu tempo para vir falar comigo.

— Vim lhe trazer um presente. E também desejar um feliz aniversário.

— Um presente? Para mim? — Tomei em minhas mãos a caixinha que ela me entregava.

— Sim. E era da sua mãe.

Olhei para ela, certamente com expressão de surpresa, não estava acostumada a ter nada que um dia houvesse pertencido à minha mãe.

— Abra. Era para entregar-lhe quando completasse dezoito mas não vou conseguir esperar. Nunca se sabe o dia de amanhã.

Abri a caixinha e dentro dela havia um colar um tanto quanto rústico com uma pedra arredondada e azul pousado na superfície aveludada. Girei a pedra entre os dedos e sorri largamente.

— É muito lindo. Obrigada Moggie.

— Você merece, minha querida. Não é meu, mas é meu presente de aniversário para você. — Deu um beijo em minha bochecha. — Vamos colocar em você para que use hoje no jantar. Quando seu pai te tirar para dançar e vir esse cordão ele vai morrer...

Levantei os olhos do pingente no cordão e os cravei nela através do espelho: — Morgana Hapstall...

— Ai não. Eu deveria manter segredo. – Levando as mãos à boca, tampou-a. — Perdão senhorita, mil perdões. Você me conhece muito bem, eu falo demais. Apenas finja que ninguém nunca te contou.

— Tudo bem Moggie. Não foi nada.

— Você está tão linda... — Ela me olhou frente a frente, sorriu junto comigo e respirou aliviada. — ... Tão parecida com a sua mãe. — Ela passou os dedos nos meus cabelos, parecia orgulhosa da garota que criara.

— Será que eu poderia ficar um pouco sozinha antes de todo mundo voltar?

— Claro. Me chame caso precise de algo. Estarei lá embaixo supervisionando tudo.

Apenas sorri e assenti. Assim que ela trancou a porta, olhei o colar e depois a janela. Já entardecia e eu não havia visitado o túmulo de minha mãe. Decidi ir naquele instante mesmo. Desci as escadas à procura de uma saída livre mas parei quando ouvi a voz do meu pai conversando com um amigo e me atentei no conteúdo da conversa.

— Não Otto. Ela não pode nem desconfiar disso. — Ele dizia com a voz já alterada.

— Acredito que você não tenha mais tempo. A garota tem que saber a verdade e é melhor que seja por você.

— Não é tão simples assim. Ela não vai reagir como se não houvesse nada de errado acontecendo.

— Ela não pode mudar o que aconteceu, mas pode lidar com o que está por vir. — O outro homem suspirou e colocou a mão no ombro do meu pai. — Charlie, meu amigo, Lizlee não é mais uma criança.

Meu pai levantou, andou de um lado para o outro visivelmente nervoso e com um copo de whisky na mão. O outro homem estava de pé também, mas agora parado e de cabeça baixa.

— Eu não quero perder minha filha também. Não vou assumir esse risco.

— Já ponderou que ela vai querer saber sobre a origem das habilidades?

Neste momento meus olhos se estreitaram com a confusão que se formava em minha mente. Habilidades? Do que eles estavam falando?

— Acho que ainda não se manifestaram e é melhor assim. Ninguém virá atrás dela e teremos paz.

— Eles rondam a casa, o que significa que uma pequena manifestação deve ter ocorrido. Eles sabem quem ela poderia se tornar, só esperavam uma confirmação. Continuarão vindo uma vez após a outra até conseguirem o que querem...

— Mas eu não deixarei que a levem. Já não  me provocaram dor o suficiente pela minha esposa? — Eu já havia me acostumado com a ideia dele sofrer pela morte da minha mãe, mesmo assim o que ele disse a seguir me destruiu. — Por culpa desses desgraçados eu não pude fazer nada enquanto a via queimar bem na minha frente.

Ele se deixou cair estirando o corpo no sofá. Meus olhos se enchiam de lágrimas.

— Você não pode mentir para sempre, Charlie.

— Eu sempre quis contar. Mas quando olho para aquela menina, só consigo enxergar a minha amada Bella. Todas as lembranças daquele incêndio, de todo o sofrimento que me consome até hoje... as imagens dela me implorando para proteger a nossa filha... — A conversa teve uma breve pausa nesse ponto. Meu pai se mostrava muito abalado.

— É pior chegar a um ponto da vida e ela descobrir que você passou todo esse tempo escondendo o que a torna diferente dos demais.

Talvez ele preferisse ignorar os conselhos do amigo a julgar pela forma como levou o bico da garrafa à boca e despejou a bebida.

— Pensando bem, devia ter deixado que levassem aquela criatura. Deveria chamar eles aqui essa noite para levá-la...

— Charlie, você está muito alterado. O risco para Lizlee é... você não tem condições de refletir sobre esse assunto.

O outro homem se aproximou dele e deu dois tapinhas em seu ombro como para dizer “já chega de beber".

— Só estou dizendo que se tivéssemos entregado ela, nada disso teria acontecido. Bella ainda estaria aqui.

Ele abriu outra garrafa e encheu outro copo de whisky, sentando-se novamente. Meus olhos explodiam em lágrimas. Meu coração me mandava ganhar as ruas de Leeland, sem olhar para trás. Como fugir do inevitável? Como fugir da minha consciência me dizendo que eu fui o motivo da morte da minha mãe? Não entendia como, mas me sentia a culpada. Acabei de descer as escadas e corri até a porta da entrada. O barulho dos meus passos na escada fez com que os dois voltassem o olhar na minha direção.

— Lizlee, onde você vai? Volte aqui.

Escutei meu pai gritando, mas àquela altura já me parecia estar distante demais. Minha dor e raiva me cegavam, me ensurdeciam. Corri pela grama seca e fria de orvalho em direção ao túmulo da minha mãe. Talvez minha intenção fosse pedir perdão ou talvez as minhas intenções não estivessem claras. Ao chegar lá, simplesmente me joguei de joelhos ao chão, debrucei-me sobre a lápide e comecei a chorar copiosamente. Repentinamente, me assustei ao ouvir um barulho e virei para olhar mas não era ninguém. Deduzi enfim que fosse apenas o vento. Retirei o colar do pescoço e fiquei olhando, imaginando estar no colo de minha mãe tentando agarrá-lo com os fortes dedos de um bebê determinado a ter seu objeto de desejo. Eram, claramente, coisas que não vivi ou talvez tenha vivido, mesmo que por breves meses, já que dezessete anos da minha vida foram construídos em cima de uma ideia mentirosa. Quando outro barulho de alguém se aproximando estalou no ar, me virei para olhar e avistei apenas um vulto escuro se deslocando rapidamente e, pelo lado oposto ao que eu olhava, meu pai chegou me puxando pelo braço e gritando comigo. O solavanco fez o colar cair no chão.

— Me solta! — Gritei com muita raiva.

— Está quase na hora. Vamos embora. Não há tempo para as suas rebeldias de adolescente.

— Não! — Me exaltei e balancei o braço com força para me soltar. — Serei uma adolescente rebelde pelo menos enquanto o senhor não me explicar aquilo que acabei de escutar.

Ele parou e me encarou, sua expressão era de perplexidade talvez por sentir sua autoridade desafiada.

— Não tenho que explicar absolutamente nada.

Ele pegou novamente em meu braço e me arrastou. Finquei meus pés no chão e puxei o braço outra vez que já estavam ficando marcados pela força com que ele me puxava.

— Você mentiu pra mim. Por dezessete anos. Como achou que eu encararia?

— Eu precisei fazer isso. Você acha que foi fácil para mim?

— E para mim? Em nenhum momento você se importou comigo. Você não viu o quanto eu sofri e decidiu que não sou digna de saber a verdade sobre minha própria vida, sobre a minha mãe. — Esbravejei contra ele, começando a chorar de novo. A sensação naquele momento era estranha, nunca imaginei que poderia existir uma dor tão grande.

— Eu sugiro que o senhor comece a explicar...

— Filha, este jantar representa uma nova fase nos negócios da nossa família e você não vai estragar isso. — Ele me interrompeu.

— É tudo sobre isso. Negócios, negócios, negócios. O senhor ao menos se lembrou que dia é hoje?

Ele parou por um instante. Sua expressão era de puro cinismo.

— Então é disso que se trata? Você quer me punir por não lhe ter desejado “um feliz aniversário"?

Gargalhei com a pergunta, sendo tomada pelo tom de sarcasmo. Ele, por sua vez, tentou contornar a situação.

— Você tem que entender que isso é muito importante.

— Eu também deveria ser importante. E se o senhor não quiser perder sua única filha, tratará de me dizer tudo.

— Liz! Liz!

Dei-lhe as costas e me distanciei, indo em direção à casa.

— E não me chame de Liz. — Dei-lhe as costas e me distanciei, indo em direção à casa. Em pouco tempo estava subindo a escada de entrada. Mal coloquei os pés ali e Moggie veio até mim.

— Senhorita, onde se meteu?

Pelo menos alguém demonstrava preocupação comigo. Sequei as lágrimas e subi as escadas depressa.

— Perdão. Estava resolvendo algumas pendências.

— Daqui a pouco os convidados começam a chegar. — A tutora me seguiu até o quarto. — Que botas sujas são essas? Por onde andou?

Ela as retirou e olhou com desprezo. Eu não a respondi, resolvi guardar para mim. Após fazer sinal para que as pessoas entrassem, ela me deixou em suas mãos. Mal chegaram e logo já começaram a me despir do meu vestidinho sujo de lama e me colocaram no banho com um monte de coisas – segundo eles um novo ritual para purificar das más energias. Depois me perfumaram, pentearam, prenderam o espartilho, colocaram-me o vestido, calçaram-me os sapatos, me preencheram de pó e fui adereçada de joias. Foi quando me dei conta de que deixei o colar de minha mãe cair lá no jazigo. Quis voltar lá, mas Moggie apareceu na porta do quarto.

— Oh, eu quase acabei me esquecendo...

Ao se deparar comigo, ela ficou boquiaberta. Moggie era muito dramática, acho que fez curso de artes cênicas quando jovem ou algo relacionado à arte. Levou as mãos a boca com expressão de surpresa, embora acreditasse que não era encenação a julgar pelo tipo de roupa que eu usava normalmente.

— Você está uma verdadeira dama.

— Obrigada, eu acho.

Fiz uma reverência torta zombando um pouco da situação, em seguida rodei um pouco a pesada saia do lindo vestido azul bordado com aqueles detalhes dourados.

— Lembre de se portar como lhe ensinei nas aulas de etiqueta.

— Sim. — Balancei a cabeça. — Digo, sim senhora. Serei o oposto de mim mesma e não darei dor de cabeça aos convidados do meu pai como fiz na última vez.

Moggie torceu o rosto, mas sabia que eu estava sendo apenas implicante.

— Então me refresque a memória. O que deve fazer?

— Tocar com muita delicadeza, não comer com a boca aberta ou fazer comentários rudes ou muito inteligentes, sagazes e controversos. Devo tratar a todos os convidados e amigos do meu pai com muita cortesia e simpatia. Esqueci de algo? Sempre parece ter mais um protocolo sem graça. Regras costumam inibir minha criatividade.

Era isso o que ela havia me ensinado para o evento e para a vida, mas eu fazia questão de expressar o meu desprazer. Afinal de contas era apenas um baile com o tema de "Realeza" ou alguma coisa assim, mas a mulher estava tão obcecada que esperava que eu encarnasse um verdadeiro membro da realeza do século XVIII ou sei lá qual. Era um tema muito importante para ela e tudo que envolvesse tradição e etiqueta antiquada.

— Senhorita Deskran, às vezes são essas regras e protocolos que nos mantêm seguros. Nem sempre ser e pensar diferente é visto como algo bom, entende?

— Moggie, sabe que não precisamos ir tão longe com essa encenação. É uma festa e não uma reunião de negócios.

Sorri de canto, mas minha tutora tinha a expressão carregada e diferente. Ela não me diria o motivo daquilo assim como não me dizia muito sobre si mesma, apenas, é claro, se me fizesse aprender alguma lição com sua experiência própria. De repente, drasticamente ela mudou de expressão e soltou uma risada estridente voltando a ser a mesma Moggie que entrara no quarto.

— Moggie, está tudo bem?

— Não é você, sou eu. Pode ficar tranquila. Eu só esqueci de dar uma última olhada nos arranjos de flores. Você sabe que tudo depende de mim para funcionar nessa casa.

Respirei aliviada. Ela saiu pela porta bastante apressada. A equipe foi atrás, como um esquadrão segue seu general. Mais uma vez fui à janela, mas meu sossego não durou muito. Ouvi o som de batidas na porta, mas não fiz tanta questão de me virar para ver quem era.

— Entre.

Bem, era o meu pai, reconheci pelas passadas hesitantes. Ele entrou cabisbaixo e pigarreou numa tentativa de se fazer notado no local.

— Você está maravilhosa.

— Moggie me disse isso. Mesmo assim, obrigada por notar. — Virei o rosto e fechei a expressão.

— Eu só vim dizer que...

Interrompo antes que ele pudesse se explicar.

— Não ouvirei nada que não seja a verdade.

Ele suspirou como que para expulsar um peso de dentro de si. Parecia estar muito cansado.

— É exatamente sobre isso que eu vim falar.

Ele não gostava de dar o braço a torcer e voltar atrás em suas decisões, – somos bastante parecidos nesse aspecto – por isso admirei a sua atitude. Sentando-se na beirada da cama, ele começou.

— Ela amava você e não tinha como ser diferente.

— Quantos anos eu tinha quando tudo aconteceu? — Cruzei os braços e fui direto ao assunto.

— Pouco mais de um ano de vida.
Me sentei na cama ao lado dele. As oscilações em sua voz denunciavam o que ele estava sentindo naquele momento.

— Quando você nasceu, foi um motivo de festa nesta casa. Mesmo com todo o resto indo tão mal. Sua mãe passou a se dividir entre seus cuidados e a empresa para ainda contribuir de alguma forma. Nós dois começamos a nos dedicar muito para reerguer tudo, deixar um legado para você. Um dia ficamos até muito tarde no escritório, e por uma infeliz ironia do destino, desta vez havíamos levado você. Apesar do cansaço, nós estávamos felizes. Tínhamos um ao outro e era só o que importava. Repentina e inexplicavelmente, teve início um incêndio dentro da empresa. E depois eu só me recordo que tentava acalmar sua mãe, mas ela estava desorientada pedindo para que eu protegesse você. Ela parecia sentir que não saíria dali viva.

Ele parou nesse ponto porque as lágrimas já o impediam de continuar. Nunca vi meu pai chorar e naquele momento só queria que ele soubesse o quanto eu lamentava tudo pelo que ele passou.

— Ela não conseguiu suportar e morreu. Os bombeiros me retiraram de lá desacordado pela inalação de fumaça. Não vi quando salvaram você. Só sei o que Otto me contou.

— Otto?

— Aquele com quem eu estava conversando quando você ouviu tudo. Ele foi quem retirou você de lá. — Peguei uma de suas mãos e acariciei.

— Eles disseram que foi um milagre você sair viva e não souberam explicar como. Mas eu sempre soube.

Os olhos dele estavam parados e olhando para o nada. Eu poderia jurar que estava reconstituindo os piores fatos de nossas vidas bem ali no meu quarto. A partir daí, ele não conseguiu seguir.

— Pai, como eu sobrevivi? Pai?

— Eu não sei se já é seguro lhe contar essa parte. Quanto menos souber sobre isso, melhor.

Ele se levantou rapidamente como o diabo foge da cruz. Fiquei observando como aquilo o deixava desestruturado.

— Pai...

Salvo pela Moggie, que entrou pela porta neste instante, ele endireitou a postura.

— Não queria atrapalhar, mas os convidados estão enchendo o salão.
Ela anunciou e deu um passo para trás, se retirando.

— Lizlee, vamos?

Respirei fundo e me levantei. Ele se recompôs como pôde e eu também. Dei o braço a ele e fomos em direção ao topo da escada. Sob os olhares de todos começamos a descer os degraus. Como já era de se esperar, haviam modelitos muito espalhafatosos e outros que eram somente bregas mesmo. Uma atmosfera de fofoca também, é claro. Houve uma salva de palmas em nossa recepção — não via a hora da encenação acabar. Ao fim, ele anunciou.

— Estou felicíssimo em compartilhar com todos vocês o marco do início de uma nova fase das Indústrias Deskran.

E mais uma salva de palmas. Formalidades. Desnecessárias formalidades.

— E estou mais feliz ainda em comemorar o décimo sétimo aniversário da minha amada filha e herdeira deste império, Lizlee Deskran.

E novamente, palmas. Meu pai – que se encontrava alguns degraus abaixo de mim – me estendeu a mão à qual peguei e acabamos de descer as escadas, juntos. A música e cochichos, assim como os comprimentos, começaram a preencher o espaço. Logo tive que começar a por em prática aquilo que fui ensinada. "Sorria". "Encante". "Aja como uma dama da sociedade". "Se porte bem na frente dos convidados". Era tanta coisa para lembrar e aquela história da minha mãe que não saía da minha cabeça. Não era o momento mais apropriado para demonstrações e "showzinhos" como papai dizia, mas a minha única vontade era chorar. Quando olhei para ele, nem parecia que menos de dez minutos atrás estivera em prantos. Se sua família tem um grande papel na sociedade, é melhor nem pensar em sair da linha. Neste caso, até os nossos menores deslizes poderiam ser motivos de desgraça total. A elite de Leeland poderia ser cruel e conservadora demais. Para não manchar a imagem de nossa família, fiz como fui orientada. Sorri tanto que meus lábios doíam e me portei como a mais elegante dama da realeza para não ter que suportar os olhares tortos de umas moças hipócritas que estavam presentes. Toquei com uma calma que eu nem tinha, mas que tive que buscar no fundo da minha alma e todos ficaram encantados com a boneca superficial e altamente controlável que me tornei para aquele evento. Por fim, faltava um último item: "dançar". Nunca fui uma dançarina muito boa, mas também só iria dançar com meu pai. O que poderia dar errado? Me apresentei como era esperado, fazendo uma reverência. Dei a mão a ele, que me guiou pelo salão. Uma vez próximos insisti na continuação da história.

— É uma ótima oportunidade para continuar nosso assunto, não acha?

— Eu já disse que não podemos falar sobre isso. Se nunca contei é porque você corria perigo.

— Corria? E agora não estou correndo?

Ele sabia que eu estava certa em querer saber, era um direito do qual eu não abria mão.

— Talvez.

— E como posso me proteger se nem sei do quê ou de quem? Não entendo como não ter dimensão dos riscos me deixa mais segura.

Ele me girou duas vezes e voltei para ele que cochichou ao meu ouvido.

— Tentaram assassinar você, por isso incendiaram a empresa.

— Por que alguém faria isso?

— Agora não, depois do evento...

— Pai, eu preciso disso.

— Estou de pés e mãos atados, você não entenderia.

Ele estava sussurrando, como se tivesse medo de que os outros pudessem ouvir.

— E vou fazer qualquer coisa para que não te tirem de mim, até aceitaria entregar o que habita dentro de você...

— Tudo bem! — Me espantei. — Acho que o senhor bebeu um pouco além da conta antes da festa.

— Não é isso. Eu só... eu sei que, sozinho, sou incapaz de salvar você. Como fui incapaz de salvar a sua mãe.

— É sério, do que o senhor está falando? Eu não entendo.

Ele estava muito abalado e eu, completamente perdida. Neste momento um homem encapuzado, vestido de preto e com uma arma em mãos, invadiu a festa, gritou algo incompreensível e abriu fogo diretamente em nossa direção atingindo em cheio o meu pai. Foi tudo tão rápido que não houve tempo de esboçar qualquer reação.

— Pai! Pai, por favor... não pode me deixar.

Também não houve tempo de ver quem era o assassino. Meu pai estava sangrando bastante e tudo se tornou um grande borrão vermelho diante dos meus olhos. Segurei-o em meus braços, desesperada e inútil perante a situação que se desenrolava. Meu coração e minha cabeça estavam à mil.

— Filha, não se preocupe comigo. Você tem que partir antes que te peguem. Há muito cuidei de tudo para que estivesse segura quando esse momento chegasse. É só o que me importa... você pode ter uma vida melhor do que essa.

— Os médicos vão chegar e vai ficar tudo bem. Confie em mim.

— Não, minha Flor de Liz.

— Não insista nisso. Fique quieto, não gaste energias. Eles vão chegar logo... o senhor vai ficar bem.

Ele apertou minha mão segurando junto ao seu peito.

— Eu não posso partir sem te dizer...

— O quê? Não. — Eu mal conseguia raciocinar, tudo estava confuso demais.

— Isso não vai acontecer. O senhor não vai morrer.

Olhei em volta e nada dos médicos chegarem. Os tiros pegaram em locais que não matavam imediatamente, apenas deixavam a morte lenta e mais dolorosa. Comecei a gritar por socorro e gesticular para a multidão que corria em ritmo desordenado desesperada por suas próprias vidas.

— Eu não vou sobreviver a isto. Mas você vai e irá para onde eles não poderão te fazer mal.

Ele parecia engasgado e suas palavras pareciam delírios. Seus olhos estavam perdendo o brilho da vida. Ele estava partindo.

— Eles quem? Por favor pai, não me deixe aqui sozinha. Eu não vou conseguir assim...

— Você não estará sozinha e nunca duvide de si mesma. Eu faria qualquer coisa por você, sei que é difícil acreditar depois de tudo que fiz... que deixei de fazer.

— Eu acredito nisso. Eu acredito em você, mas não me abandone.

Em meio aos prantos e soluços, ele se despedia de mim. Seu pulso foi ficando cada vez mais fraco e seus olhos, frios olhando fixamente para mim.

— Você é capaz de viver com ou sem mim, mas não será capaz de viver sem acreditar em si mesma. Eu te amo, minha filha.

Ele pegou minhas mãos dentro das suas, depois que as beijou suas lágrimas escorreram por seu rosto e ele se foi. Bem ali em meus braços. Enquanto isso, o mundo ficou lento e mudo. Moggie me encontrou no meio da multidão mas quando finalmente conseguiu chegar era tarde demais. Só restou a visão do meu desespero e dor, rodeada de uma poça de sangue e com o corpo de meu pai em meus braços. Cuidadosamente, ela me afastou dali mesmo com minha relutância em nos separarmos. Os médicos vieram em seguida. Os policiais também. Minha visão se escureceu e o mundo se apagou.

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