Semana 3

Eu amanheci abraçado à Sarah e isso, sem dúvidas, foi a coisa mais estranha que me aconteceu nas Bahamas. Nós não dormimos durante a noite porque o medo da chuva não deixou, já que ambos assistimos àquele episódio em que um raio atingiu o abrigo dos participantes e esse foi o nosso receio a noite toda.

Quando amanheceu e os pássaros começaram a cantar senti a cabeça de Sarah pesar sobre meu braço e percebi que ela finalmente cochilou. Durante a última noite eu fui capaz de conhecê-la mais do que em duas semanas. Por mais forte que demonstre ser, ela tremia feito criança a cada raio e trovão. Quando eu a questionei se era medo, ela negou e afirmou ser apenas o frio. Ela também não dá o braço a torcer, mas isso não é nenhuma novidade.

Agora ela está lá, lutando para manter a fogueira acesa enquanto eu vim buscar mais lenha – o que é quase uma missão impossível, já que todos os galhos estão úmidos e não pegarão fogo com facilidade. Diariamente eu me pergunto o porquê fui me enfiar nesse lugar, mas hoje esse questionamento está ainda mais frequente. A chuva torrencial molhou nossa rede, fez o mar se agitar, a população de mosquitos-palha e outros insetos aumentar, colocou nossa fogueira em risco e ainda quase deixou a Sarah numa situação de hipotermia.

Volto para o acampamento carregando algumas lenhas e sorrio ao ver Sarah cochilando com a cabeça pendurada para o lado de fora da rede. Eu deveria ficar bravo por isso já que seu único papel nessa manhã é manter a fogueira, mas depois da noite que ela passou, não consigo reclamar. O importante é que o fogo continua aceso.

Assim como em todas as manhãs, vou até minha armadilha mesmo com a certeza de que estará vazia, ainda mais depois da tempestade. Retiro o cesto de dentro da água e como sempre não há nada ali. Não sei como tive esperanças, seria sorte demais conseguir nos alimentar por dois dias seguidos, então nem me surpreendo. Volto para a areia e me sento em frente ao mar.


– O que você tem? – Sarah se aproxima sem que eu perceba e se senta ao meu lado.

– Nada – dou de ombros.

– Eu posso não te conhecer, mas tá na sua cara que você não tá bem.

– Minha armadilha... – dou um suspiro exausto.

– Will, nós passamos oito dias sem comer... O que é só um?

– Você me chamou de Will? – eu sorrio e Sarah fica visivelmente envergonhada.

– Claro que não! De onde você tirou isso??


Como eu esperava, Sarah se levanta e começa a caminhar pela praia. Não sei o motivo pelo qual ela se afastou, já que Will é meu apelido desde que eu nasci e isso não mostra intimidade nenhuma entre nós. Percebo que ela está se afastando para se banhar, então decido ir para o abrigo para lhe dar privacidade.

Nós perdemos muita gordura e massa muscular nessas duas semanas, então o vento frio parece nos chicotear com muito mais força conforme a noite chega. Com a ameaça de uma nova tempestade, nos deitamos na rede e assistimos sua chegada através das nuvens carregadas.


Anteontem eu enfrentei todo o meu orgulho e pedi para William me abraçar. Sentia como se meu corpo fosse congelar a qualquer momento e por isso tomei essa decisão. Mas já se passou mais um dia e aqui estou eu, deitada com os olhos vidrados em uma formiga carregando um pedacinho de folha enquanto seu corpo me aquece e seu braço pesado me abraça.

Eu bem que tentei negar quando ele ofereceu seu calor ontem à noite, mas eu sabia que era questão de sobrevivência. Nós ainda não somos capazes de dormir uma noite inteira, mas ao menos conseguimos descansar um no outro. Agora mesmo ele está apagado aqui e eu evito até mesmo respirar um pouco mais fundo para não acordá-lo. O que raios aconteceu comigo??

Ele me deseja bom dia com a voz rouca e espreguiça o braço, o tirando de cima de mim e causando um frio repentino. A chuva deu uma trégua e agora só cai uma garoa fina, nos permitindo fazer algo relevante, como buscar mais um bambu. Sei que não temos necessidade de tantos bambus assim, mas nós os trazemos aos poucos para a jangada que faremos no último dia.

Caminhamos entre os galhos que caíram das árvores durante as tempestades e precisamos tomar cuidado, pois além das árvores venenosas, aqui também se escondem cobras com picadas doloridas e aranhas imensas que eu nem me importo se são venenosas ou não – são aranhas e isso basta para mim. Chegamos até o bambuzal e começo a desferir golpes contra o tronco.


– Porra!


Solto o xingamento ao acertar o dedo do meio da minha mão esquerda com o facão. Jogo a lâmina no chão e aperto o dedo com a mão direita na vã tentativa de estancar o sangue. A dor é imensa, assim como a vontade de chorar. Dou uma cambaleada para trás e para ajudar, piso em um espinho que penetra a sola do meu pé.


– Caralho! Só falta cair um raio na minha cabeça agora!


William estava um pouco distante, mas bastou ouvir meus gritos para vir correndo. Assim que chega ao meu lado, arregala os olhos por ver a quantidade de sangue que pinga no chão.


– Precisamos de um médico – fala e eu nego.

– De jeito nenhum! – grito com ele, mas a verdade é que quero gritar de dor – Eu não vou abandonar o desafio!

– Sarah, olha a quantidade de sangue na sua mão!

– Não importa!! E se eles quiserem me levar embora daqui? Eu não vou, William!

– Me deixa limpar isso, pelo menos?


Sem muita escolha, assinto e me sento no chão. Ele pega o facão e perfura um bambu, coletando água para limpar o ferimento. O vejo todo concentrado e penso em como ele é prestativo, deve ser um ótimo bombeiro. Continuo o encarando até que ele caminha até mim e despeja a água em meu dedo e PUTA QUE PARIU, EU QUERO MATÁ-LO!


– Você tá me fazendo sentir dor de propósito, não é possível! – solto um grunhido de dor.

– A gente precisa limpar o ferimento pra ter uma noção do estrago – ele mantém o tom de voz e não esboça nenhum sorriso, o que deixa mais do que claro que ele não está fazendo de propósito e nem mesmo se importando com minhas queixas.

– Não tem nenhuma planta sedativa aqui pra me apagar enquanto você mexe nisso aí?

– Se você encontrar, divide comigo – esboça um mínimo sorriso, mas não desvia os olhos do meu dedo.

– Você deve ser um profissional ótimo – o elogio pela primeira vez.

– A perda de sangue está afetando seu cérebro, já tá até me elogiando – sorri e me olha por uma fração de segundo antes de voltar a encarar o ferimento – Mas falando sério, essa é minha função, ajudar as pessoas. Seja no fogo, num gato preso numa árvore, numa tentativa de suicídio ou num acidente com um facão no meio da floresta enquanto está pelada.

– Seu batalhão vai se orgulhar de te ver dizer isso na TV...

– Eles vão me zoar dizendo que nossa relação aqui é igual a um casamento fracassado, quinze dias de brigas pra um de paz.

– Bela analogia... Ai!! – reclamo.

– É, sinto muito – estala a língua e revira sua bolsa até encontrar o rádio comunicador – Isso aí vai precisar de pontos, senão vai infeccionar.


Não importa o quanto eu relute, não vai funcionar. William enrola uma folha no ferimento e já está com o rádio em mãos solicitando a visita do médico. A ordem que recebemos é a de voltar para o abrigo, mas graças ao maldito espinho no meu pé, preciso da ajuda do meu parceiro mais uma vez.


– Pode subir nas minhas costas de cavalinho se quiser – ele dá de ombros e eu começo a rir.

– Você mal tem forças pra manter seu próprio corpo em pé.

– Ah é? Pois então agora eu faço questão. Abraça meu pescoço e segura com as pernas na minha cintura.

– William, você vai me derrubar e o médico vai ter que atender nós dois.

– Que bom que a gente já chamou ele né?


O sorriso travesso de William deixa claro que ele não vai mudar de ideia, então dou meu braço a torcer e agarro em seu pescoço. O percurso é mais divertido e menos cansativo do que se eu tivesse apenas pulado em um pé só até a praia. Chegamos no abrigo debaixo de risadas e percebo que até o cinegrafista se diverte com a gente. Sento na areia e estico meu pé dolorido enquanto encaro o mar à espera do médico.


– Me deixa ver que merda você fez aqui – ele segura meu pé e examina o enorme espinho ainda cravado nele.

– Esse negócio ia atravessar meu pé mesmo que eu estivesse calçada.

– Me passa o facão? – William me pede e eu arregalo os olhos. Tento puxar o pé, mas ele segura firme.

– Já tive emoções demais hoje com esse facão.

– Não vai doer, eu juro.


Não sei em qual momento passei a confiar na palavra desse idiota, mas estendo o facão para ele. Será que a idiota sou eu? Talvez seja, mas ele me passa segurança. William, tão concentrado quanto estava ao examinar meu dedo, aperta a ponta da lâmina contra meu pé. Não sei o que ele está fazendo lá em baixo, mas sinto uma pressão ruim e de repente um alívio tomou conta do lugar. Com um sorriso, ele estende o espinho em minha direção.


– Toma aí seu filho. É um baita espinho. Vou aproveitar a visita do médico e pedir para ele olhar esse rombo no seu pé.


Assinto e aguardo a chegada da equipe enquanto pressiono a folha ao redor do dedo pulsante. Eles não demoram a chegar e sinto um calafrio assim que os vejo. Deve ser o medo de ser desclassificada do desafio. O médico nos cumprimenta e analisa o ferimento após higienizá-lo.


– Bom Sarah, temos duas opções – ele começa a falar e meu coração acelera como nunca.

– Quais? – os calafrios se intensificam.

– A primeira e mais confortável pra você é ir até à base para tomar anestesia e pontos, mas aí você terá que abandonar o desafio.

– Essa não é uma opção, não a cinco dias do resgate – me altero e vejo que William também está agoniado.

– A outra opção é dolorosa, mas você vai poder continuar. A segunda opção é tomar pontos aqui mesmo, sem qualquer tipo de anestesia.

– Tá bom – dou de ombros – Mas eu não vou abandonar, isso está fora de questão.


William pergunta algumas vezes se eu sou louca, mas acredito que depois de dezesseis dias essa pergunta seja retórica. Com a ajuda dele e do médico, deito na rede e estendo meu braço. É agora ou nunca e quanto mais eu penso, mais ansiosa eu fico.


– Você é louca. Definitivamente, louca.

– Ah, vai ser rápido, não vou nem sentir.


O médico termina de preparar a agulha e segue até mim. Eu estou confiante, não vai ser nada demais. Não vai ser nada demais... MEU DEUS, COMO ISSO DÓI! Eu preferia estar morta nesse momento. Mais uma vez queria estar no conforto do meu lar, sem picadas de mosquitos, de espinhos, de agulhas. Por que as pessoas ainda me deixam tomar decisões???? Solto um grito e sinto William agarrar minha mão direita com força. Não sei quanto tempo durou, mas estou anestesiada pela dor. Nem vi o maldito médico sádico se despedir de tão entorpecida que estou.


– Você tá bem? – William se aproxima de mim mas não quero falar, só quero esquecer esse dia.

– Eu só preciso dormir até esse dia acabar. 


Eu estou preocupado com a Sarah. Ela está há dois dias sem me xingar ou provocar e para ela isso é quase uma vida inteira. Além disso, ela não sai do abrigo desde a visita do médico. Perguntei diversas vezes se ela está bem e ela insiste que sim, mas eu tenho impressão que a fome e a privação de um sono decente combinadas com dor ainda latejante em seu dedo estão mexendo com seu psicológico.

A chuva passou e aproveitando que o sol voltou a tomar conta do céu, decido tentar pescar para ver se comer alguma coisa vai melhorar o humor da minha parceira. Fico feito bobo com a lança em mãos esperando por um mísero peixe, mas duas horas se passam e nada. Alguns ataques foram feitos, mas todos em vão, já que eles são muito mais rápidos do que eu.

Cansado de ficar observando os peixes me darem um baile debaixo do sol, decido ir atrás de algumas castanhas ou frutas. Adentro a mata e ando por tanto tempo que nem sei dizer. Nada. Eu sabia que seria difícil conseguir uma fonte de alimentos nesse lugar inóspito, mas não imaginei que seria tanto.

Frustrado, caminho mais uma vez de mãos vazias encarando o chão. De repente me deparo com algo que faz meu sangue gelar. Tem uma cobra bem na minha direção e eu não sei dizer a espécie, mas se bem me lembro do manual, ela não é venenosa, posso ver pelo formato de sua cabeça.

Com a lança já preparada, a ataco e pressiono a ponta em seu corpo até ela se contorcer. Eu nunca quis matar uma cobra, ainda mais em seu habitat natural, mas eu preciso me alimentar. Pedindo perdão ao animal, corto sua cabeça fora com o auxílio do facão.


– Querida, cheguei!


Chamo a atenção de Sarah utilizando a clássica fala de A Família Dinossauro e ergo o corpo sem vida do réptil em minhas mãos. Ela se levanta animada e já me recebe com um graveto fino em mãos. Após limparmos a cobra, a colocamos no espeto e aguardamos ansiosos até que fique bem assada.


– Meu Deus, isso estava uma delícia – Sarah fala de boca cheia após a última mordida.

– É bom comer algo diferente de peixe só pra variar – me deito na areia, apoiando a cabeça na bolsa de sisal.

– Corrigindo, é bom comer, só pra variar.


Sarah sorri e eu vejo como seu humor já está melhor. Sem um aviso, ela deita a cabeça em minha barriga e eu sinto uma sensação estranha formigar por minhas pernas até subir em meu peito. Tento afastar essas sensações, mas a nossa proximidade não me deixa pensar em outra coisa.


– O que você vai fazer depois daqui? – pergunto só para tentar mudar o foco dos meus pensamentos.

– Tomar um banho de três horas e escovar meus dentes quarenta e sete vezes seguidas – ela ri, me fazendo sorrir em seguida – E você?

– O mesmo que você – sorri – Além de fazer a barba e raspar a cabeça. Vou ficar tanto tempo no banheiro tentando recuperar minha higiene que vão achar que eu morri lá dentro.

– E quanto ao trabalho? Ansioso pra voltar ou vai tirar uns dias de folga?

– Depois de tudo o que passei aqui, mereço pelo menos uma semana de férias. Tenho dias pra tirar, então vou aproveitar. E você, vai voltar pro bar?

– Ainda não sei – ela aninha ainda mais a cabeça em minha barriga – Ainda preciso pagar minhas contas.

– Eis a vida adulta – dou um suspiro e admiro os olhos brilhantes que me encaram. Tomo coragem e faço a pergunta que tem rondado minha mente nos últimos dias – Tem alguém te esperando no "mundo real"? – faço aspas com as mãos.

– Tem – ela suspira – O senhorio do apartamento. Vou voltar quando o aluguel estiver perto de vencer.

– Você me entendeu – eu ri, mas um alívio que não sei de onde veio tomou meu peito.

– É mais fácil fazer piada do que responder sério – Sarah esboça um sorriso – Mas não, ninguém me esperando. E você? Sua esposa deve estar aliviada por estar longe de um chato como você.

– Que esposa?! – solto em meio a uma risada alta – Eu realmente sou insuportável como você mesma diz, porque eu nunca namorei sério.

– Tá vendo, ninguém te aguenta muito tempo. Eu estou sendo seu maior relacionamento, vinte e um longos dias. Deveria ganhar uma medalha.


Deve ser coisa da minha cabeça, mas eu notei que suas bochechas coraram ao terminar sua frase. Talvez o que eu mais goste na Sarah é como ela fala sem pensar e a forma que se arrepende instantaneamente.


– Realmente você é meu maior relacionamento e meus amigos tem razão, parece um casamento. A gente briga o dia todo e não se suporta, mas quando chega a noite estamos abraçados pra dormir. Além das reclamações, é claro.

– Se isso é o que você espera de um casamento, não é à toa que está solteiro.


Nós dois continuamos conversando e trocando alfinetadas bem-humoradas. No início do desafio a convivência com Sarah era horrível e as farpas trocadas eram maldosas, totalmente diferentes das de agora. Enquanto a observo me provocar com um sorriso ladino e olhos travessos, não consigo imaginar uma parceira melhor ao meu lado. Eu tinha razão, esse lugar intensifica todos os sentimentos e sensações.


Nosso desafio está chegando ao fim e eu mal posso acreditar que eu sobrevivi até aqui. Se não fosse o apoio da Mila no começo e a companhia do William nas duas semanas restantes, eu teria enlouquecido e me jogado aos tubarões no terceiro dia.

Sei que agradecer o Will é estranho vindo de mim, mas nós nos aproximamos muito e mesmo ele sendo um insuportável que ama me provocar, me auxilia em todos os momentos e sou muito grata por ele segurar minha mão quando o que eu mais queria era virar um tapa no médico que só estava tentando me ajudar. William é o melhor parceiro que eu poderia ter.

Por falar nesse fatídico dia, o bendito dedo está aqui, inchado, quente e com quatro pontos. Tento cuidar da melhor forma possível, mas meus recursos são escassos e eu faço o melhor que posso com o pouco que tenho. Também me divirto mostrando o dedo do meio costurado para o William a cada cinco minutos.

Ele já nem se importa mais, o que me dá um misto de frustração por não conseguir mais irritá-lo e felicidade por saber que no fim nos tornamos amigos. É sempre bom ter um amigo bonito e solteiro para os momentos de solidão... Meu Deus, Sarah! O que você está pensando?? William mora do outro lado do país e não demonstrou interesse em momento algum!

Preciso lembrar que estamos há vinte dias sem um banho decente para todo o interesse na beleza do meu amigo cair por terra. Sim, ele era bonito no primeiro dia, mas hoje ele está sujo, fedido e sem escovar os dentes. Eu sei que também estou, mas fingir que só ele está nessa situação deplorável faz com que eu me sinta melhor.


– Só quero te lembrar que sua mão direita está boa, viu? – ele me laça com a corda como quem laça uma vaca, o que não é uma boa comparação, eu sei.

– Finalmente essa corda está tendo um destino útil. E você ainda quis reclamar da minha rede... – balanço a cabeça – Dormiu confortavelmente na rede que tanto julgou.

– A jangada vai existir graças à minha corda! E eu também conheço outras utilidades muito melhores pra ela.


Ele me lança uma piscada e eu finjo não entender. Ainda laçada, me levanto e sigo até os bambus cortados para ajudá-lo a montar a jangada. É um serviço relativamente tranquilo, mas a nossa falta de energia faz com que se torne algo de um dia inteiro.

Magicamente – ou com um auxílio da produção que percebeu que nossa jangada não flutuaria por muito tempo – nós encontramos dois pedaços de isopor em uma área mais afastada da praia, onde as ondas deixam o lixo que vem pelo mar. É suspeito o cinegrafista nos indicar a área de descarte? Sim. Mas não podemos abrir mão de algo que vai facilitar nossas vidas.

Depois de amarrarmos o isopor na jangada e de William fazer dois remos com o tronco da árvore que cortamos, vou atrás de pescar ao menos um peixe para nos dar a energia necessária para o resgate. Will fez o mesmo, mas foi caçar caranguejos.

Estamos exaustos, mas conseguimos ao menos jantar pequenos siris encontrados por ele na areia. Não foi um banquete dos deuses como desejávamos, mas com três siris para cada, conseguimos ingerir pelo menos trinta calorias cada um.


– Última noite – falo ao me aninhar em seu corpo, à essa altura já sem vergonha alguma.

– Última noite – ele repete e me abraça – Sabe que eu vou sentir falta desse lugar?

– Você só pode estar zoando!

– Com certeza estou! Não quero voltar aqui nem se for de férias.


Nós rimos e ele aperta seu braço ao meu redor. Sei que não dormiremos, não só pelos malditos mosquitos-palha que não deu um dia de paz para nós, mas pela ansiedade de ir embora. Ainda temos um longo caminho até o resgate, mas só de saber que está chegando ao fim nos dá força para continuar. 


Nunca acordamos tão bem-dispostos quanto hoje. Sarah acordou dando bom dia para o sol, cantarolando alguma música que não consegui decifrar e apagando a fogueira que tanto nos deu trabalho, tanto para acender quanto para manter acesa. Desmontamos a rede e tentamos fazer uma vela para a jangada, mas sem sucesso.

O cinegrafista nos dá o aviso que está chegando a hora de partir e eu abraço Sarah durante uma despedida rápida do abrigo que nos acompanhou nos últimos 21 dias. Aposto que ele fez uma imagem dramática para a edição. Retiro o mapa da bolsa e o analisamos juntos.


– São uns bons quilômetros até o X e não gosto desses tubarões desenhados.

– Will, é só um desenho, deixa de ser dramático.


Sarah puxa o mapa da minha mão e começa a empurrar a jangada sozinha, me fazendo correr até ela para ajudá-la. Já estamos com a água na cintura quando decidimos subir. Estamos contra a corrente e precisaremos fazer uma grande curva até o local do resgate, o que exige muita força física – o que já não temos mais.


– Meus braços vão cair – Sarah reclama, mas não deixa de remar em nenhum momento.

– Calma, falta pouco – falo mesmo sem ter muita certeza.

– Não olha agora, mas tem um tubarão rondando a gente – sua voz calma não faz jus a seu rosto apavorado.

– Mais um motivo pra gente continuar remando. Confia em mim, tá bom? Estamos perto.


Eu não sei por quanto tempo remamos, mas não sinto mais meus braços e sei que ela também não. Os olhos de Sarah já estão úmidos e eu sei que ela está contendo as lágrimas de dor. Um grito sai de sua garganta ao ver o barco vindo em nossa direção. Largamos nossos remos sobre a jangada e acenamos freneticamente para a equipe, esquecendo totalmente da dor que nos toma.

Subo primeiro no barco do resgate e estendo a mão para ajudá-la, e assim que ela apoia os pés no chão, me abraça e começa a chorar. Não consigo segurar e também deixo as lágrimas saírem. Lágrimas de felicidade, de alívio, de dor e de dever cumprido. Queríamos continuar abraçados, mas nos foi solicitado a entrevista final. Cada um de um lado do barco contando o que achou da experiência.

Ao chegarmos em terra firme, recebemos um roupão, um par de chinelos e uma garrafa de água cada. Ficamos tanto tempo um na companhia do outro que é estranho precisar dar atenção para qualquer outra pessoa que não seja a gente.

Chegamos ao hotel em carros diferentes e os mesmos produtores que nos levaram para a Ilha de Andros nos esperam no saguão para nos acompanhar até o quarto, onde um médico nos aguarda. A mulher conversa comigo e eu tento assimilar tudo o que ela diz quando vejo Sarah pedir licença e vir em minha direção.


– Então, acho que aqui acaba a nossa aventura – ela abre um sorriso – Foi um prazer te irritar por 21 dias, seu idiota.

– O prazer foi meu, sua insuportável.


Nos abraçamos por um tempo longo o suficiente para irritar o produtor que a aguarda. Ele pigarreia e a chama pelo nome. Sarah se desfaz do meu abraço e segue até ele em passos lentos. Decido chamá-la só para poder ver seu sorriso mais uma vez, já que não sei se a verei novamente.


– Ei Sarah!

– Sim? – ela se vira para mim, irritando seu produtor.

– Se um dia eu participar do programa de novo, vou levar uma rede – dou um piscada e abro um sorriso.

– Melhor levar uma pederneira, porque você pode ser ótimo apagando o fogo, mas pra acender é péssimo! – retribui meu sorriso – Até qualquer dia, Will.


Ela segue para o elevador, já a produtora que me acompanha observa a cena pacientemente com um sorriso no rosto enquanto eu espero a porta se fechar. Eis aqui o fim da nossa aventura, e de tudo o que vivi nas Bahamas, Sarah é a única coisa que eu sentirei falta.

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