Capítulo Três
— Eu já nem sei mais o que inventar com maçã — Jeno comenta ao meu lado, quando estamos caminhando na feira da vilinha perto da nossa. Ele gosta daqui, porque assim consegue arranjar briga e fugir para Little Tawo. — Tem sidra, torta, suco, geleia, salada, chá...
— Jeno, do que você está falando? — questiono. — Você ouviu sobre o que falei antes? Sobre o Sanguessuga?
— Ah, sim. Claro que ouvi — ele ri baixinho. — Já fiz coisa pior com esses caras. Um dia fiz um deles cair de cara no cocô do cavalo de Lucas — e então esfrega a mão na testa suada. — Você só teve azar de pegar um estressadinho. Quer dizer, a maioria são. Eu só não ligo. Quando estou num péssimo humor, eu sei que não vai prestar.
— Meu pai realmente ficou chateado. Mas não tive culpa, o cara falou mal não só de mim, mas do negócio que ele se dedicou a vida toda — resmungo com um bico nos lábios e pego o balde cheio de maçã que Jeno me entrega, porque está cansado de levar sozinho.
— Isso não é nada de mais — ele diz. — Às vezes nosso pais chegam numa idade e período que mal conseguem se defender ou se virar, então cabe a nós fazer algo a respeito, eles aprovando ou não — ele dá de ombros.
Paramos em frente a alfaiataria. De vez em quando gostamos de olhar para dentro da loja, ver algum filhinho de papai arranjando trajes novos ou até mesmo os manequins com novas calças mais confortáveis e gorros mais quentes para o inverno. Eu não sei o que vestirei para o inverno, porque minhas luvas estão rasgadas nos dedos indicadores e médios e não sei se poderemos comprar uma nova. E minha capa está cheia de buracos, o que já não me garante muita proteção. Talvez tudo que eu deva contar nesta vida é com a sorte.
Eu e meu amigo soltamos um suspiro e viramos ao mesmo tempo para a rua. Minha barriga ronca, ele percebe e faz um sinal para que eu pegue uma maçã. Tenho comido as maçãs de Jeno desde que meus primeiros dentes cresceram. Assim que pego uma, dou uma mordida.
— Isso é triste, não é? Eu queria tanto ter dinheiro para comprar uma roupa bacana — eu comento. — Acha que um dia isso vai acontecer?
— Só se você fizer algo extraordinário — ele pega uma maçã também. Estamos trazendo de volta tudo que não foi vendido. — Ou tiver mais clientela. E se voltarem a explorar o Além da Ponte?
Além da Ponte é como chamamos a floresta que está depois da torre vermelha, depois das primeiras árvores que não são tão medonhas assim. Mas após a ponte, sobre um riacho fino e barulhento, não costumamos ir por ser alto o risco de nos perdermos. A floresta é mais densa e quase ninguém atualmente ousa brincar por ali. Mas houve um tempo, há alguns anos atrás, que foram caçar unicórnios por aquelas bandas. Parece que há um tempo atrás uma pessoa morreu ou se perdeu e nunca foi encontrada. Desde então, quase ninguém atravessa a ponte.
— Acho improvável — digo baixinho, tentando enxergar seu rosto com a alta incidência solar. — Está mais fácil eu ir Além da Ponte e tentar achar um pote de ouro ou algo do tipo.
Jeno ri. Eu não rio.
— É cansativo. Eu sei que nunca me disseram que a vida é incrível e maravilhosa, mas me falaram para buscar minha felicidade, mas me sinto tão infeliz com esse peso sobre mim. Eu sinto como se... como se eu já estivesse super adulto e tudo dependesse de mim e pensar assim é estressante, porque não é real. Como mudar algo que não é real? Como se transforma algo que não existe?
— Acontece que as coisas não são lineares assim, Jisung — ele conta. — Talvez você devesse falar com seus pais e...
À medida que vamos caminhando, escutamos un burburinho na rua seguinte, onde tem a ferraria. Nossos pés são rápidos em avançar e deixamos a conversa de lado devido tamanha a curiosidade. E então, vemos um pequeno grupo aglomerado em frente a ferraria, onde o aprendiz de ferreiro está. O nome dele é Sungchan e nos conhecemos mais de vista que de papo. Precisei vir uma vez ou outra pelo serviço, mas não passamos dos verbos essenciais.
— O que está rolando? — Jeno pergunta ao rapaz que nos aproximamos.
— Sungchan, o filho do ferreiro. Pelo que tudo indica, ele saiu há uma onzena atrás de um unicórnio e conseguiu. Conseguiu vender ao Lágrima Púrpura. Disse que foi um bom negócio, embora quisesse vender diretamente a uma família rica que está querendo um. Pelo que eu soube, pagam mais — o rapaz respondeu.
— Quanto ele fez de dinheiro? — questiono.
— Aposto que muito mais que cinco mil hwanes — e só agora percebo que o rapaz está com um palito na boca, porque a frase sai meio abafada. — Será que foi sorte?
— Sorte ou não, eu queria isso — Jeno resmunga ao meu lado e dá uma mordida da maçã.
Então eu me lembro de que também estou comendo uma maçã e dou uma mordida na minha também. Ficamos encarando a movimentação ao redor de Sungchan, que ainda parece humilde e de bom coração, abraçando os pais alegremente e saudando as parabenizações das pessoas. Eu queria ser assim, queria ter isso.
— Vem, vamos — meu amigo chama minha atenção.
Cortamos caminho da multidão e descemos uma pequena escadaria para chegar na praça principal. Só mais alguns becos e chegaremos à descida da colina onde desceremos para Little Tawo. Não é tão íngreme, por isso aguentamos ir por aqui quase todos os dias, tampouco muito alta. A relva suaviza nossa pisada dura e até me sinto melhor com o vento na cara e um frescor.
Por mais que tudo esteja complicado para nós, pelo menos podemos respirar um pouco e comer frutas debaixo de uma árvore, se nos convém. Podemos não ter nome importante nem algum dinheiro, mas se quisermos uma pequena felicidade, podemos deitar no chão e olhar as estrelas. Quer dizer, isso até Jeno se entendiar e querer fazer outra coisa, mas dá para aguentar um par de minutos tranquilamente.
— Sabe o que eu acho? — meu amigo joga a maçã ao chão assim que termina de roer os últimos pedaços. — Você poderia arranjar uma noiva. Poderia se casar. Uma família rica, ou relativamente rica. É só você passar a tomar banho com mais frequência, usar um corte de cabelo mais bonito e lavar essas roupas... Melhor: comprar novas roupas. Qualquer garota rica ficará impressionada e vai querer ficar com você.
— Mas eu não quero uma garota — fecho a cara e jogo minha maçã no chão.
— E daí? É pra você casar por amor ou por interesse financeiro? — uma das suas sobrancelhas sobe e ele sorri sem mostrar os dentes. — As chances de uma garota se interessar por você são maiores. Se eu fosse rica, empurraria minha querida irmã, Chaeryeong, mas é capaz de ela te dar um golpe do que o contrário. Eu ainda estou tentando protegê-la dos tarados, porque ela sai e é legal com todo mundo, fica fazendo amizade e conversando com várias pessoas. Se ela se deparar com outro maluco que inventar de seguir ela ou tocá-la, como daquela outra vez, eu vou meter um murro na cara.
— Isso é bonito, mas também muito estúpido. Você pode acabar se ferrando com isso — suspiro.
— Enquanto ainda não me ferrei, continuarei fazendo.
Abano a cabeça, incrédulo com o fato de que alguém tão doido como Jeno existe. Então eu lembro que bati no cara só porque falou mal da minha família. Acho que eu certamente bateria em qualquer pessoa que mexesse na minha irmã ou irmão, se eu tivesse algum. Mas não. Só sou eu sozinho.
Encontrar uma filha tola de uma família rica, disposta a casar com um pobre como eu é um passo difícil. Não irei desistir. Minha busca ainda não começou de fato, já se passaram dois dias e nada. Andei procurando alguma família, querendo saber por onde andam, mas a maioria só costuma ficar em Ilmol South. Por estas bandas, no máximo encontramos seus chalés pomposos ou casebres de veraneio que mais parecem miniaturas de castelos do que de fato um local de aconchego.
Por enquanto, estou voltando de Loft Chang, pois precisei comprar pregos novos para consertar uma lasca de madeira do corredor do primeiro andar, antes que alguém se machuque. Estou com raiva, porque no meio do caminho lembrei que deveria comprar flechas novas para caçar coelhos. Tenho poucas agora, então não poderei errar muito o alvo. Mas, de toda forma, terei de recuperar minhas flechas toda as vezes que usar, senão acabarei sem nenhuma. Está ficando cara demais.
Passo pela casa de Jeno, cumprimento-o e sigo para casa. Do lado de fora, vejo um alazão no estábulo e isso significa que temos nova clientela. Apresso os passos para os pequenos degraus da hospedaria, que tem cheiro de mel e azeite abafado, embora uma leve madeira molhada como se estivéssemos eternamente no período de chuva.
— Oi — cumprimento meio sem jeito ao dar de cara com um homem muito bem vestido, mas ainda não me parece inteiramente nobre. Usa o brasão de alguma família no longo casaco vermelho.
Meus pais estão sérios olhando para mim, então eu também fico sério.
— Então esse é o jovem? — o homem aponta para mim. Ele tem um papel em mãos e um chapéu marrom na cabeça.
— Ele não faz parte do trato — meu pai diz e acho que nunca antes o vi falar tão firme e duro quanto agora.
O homem suspira e desce o olhar para o papel amarelado em mãos. Seus dedos percorrem as letras, como quem procurando algo, um trecho, alguma arma pronta para atirar e agarrar em nós. Eu queria dizer que não estou entendendo nada, mas isso seria mentira. Eu tenho entendido muita coisa ultimamente, tenho sido obrigado a crescer. Eu tenho que pelo menos dar um jeito nisso.
— Aqui — o homem aponta para o trecho que só ele vê. — Diz que se não for pago em dinheiro, será pago por trabalho de algum de vocês ou membro da família. Então temos o direito de levar este jovem conosco.
— O acordo era ajudarem a gente e que iríamos ficar calados — minha mãe tenta convencer o homem.
— Isso já faz muito tempo. Ninguém acreditará que o filho da família Kim esteve bêbado num lugar como este — ele olha ao redor como se detestasse estar aqui. — Tampouco que esteve acompanhado de uma meretriz. Vocês sabem que o acordo de silêncio foi para o ar há três anos atrás. Vocês assinaram um novo acordo: suporte financeiro que deverá ser estornado em até três anos. Vocês não cumpriram.
— Nós sugerimos que colocassem o brasão da família Kim aqui, que todos vinculados à família pudessem ficar aqui gratuitamente e também pudessem promover seus negócios na nossa hospedaria.
O homem reviro os olhos, impaciente.
— Está esquecido que o Sr. Kim não tem interesse de ter a imagem da família vinculada a isso? — ele inclina a cabeça para frente e abaixa o papel. — Além do mais, as pessoas iriam perguntar por que a família Kim estaria patrocinando uma hospedaria no fim do mundo ao invés de uma comércio grande.
Engulo em seco.
— Mas não é justo levarem nosso filho — minha mãe, chorosa, vem até mim como se me segurar adiantará de algo, como se ele não fosse capaz de me levar aos chutes.
— Está tudo bem, eu vou — é o que digo. — Quanto tempo?
— Um ano inteiro de serviços prestados à família Kim. Em tempo integral — sua resposta me faz querer fugir pela porta da frente.
— Tudo bem — respondo.
— Não! — meu pai se vira para mim. — Você não vai, porque não foi isso que acordamos.
— Está escrito e vocês assinaram — o homem finalmente vira a folha para os meus pais, que dão uma olhada rápida até perceberem que sim, está escrito.
Meus pais se entreolham, inseguros, e eu tenho que ser o filho forte mais uma vez. Isso iria acontecer. Se eu não fosse entrar no Lágrima Púrpura, iria me casar com a primeira que tivesse um pai que fosse no mínimo um grande comerciante. Provavelmente iria para Ilmol South tentar a sorte como Lucas. Alguma coisa eu teria que fazer. E agora é pior: não só estamos devendo os impostos da coroa, mas também a uma família grande e importante da região.
— Vocês podem vender algumas coisas minhas para quitar o imposto. Só vou pagar a dívida e voltar para casa — tento assegurar isso a eles. — Vai ficar tudo bem.
Minha mãe me abraça forte, já meu pai se senta e não para de me olhar seriamente. Não consigo identificar esse olhar, por vezes o homem é um mistério. E o representante da família Kim bate o pé impacientemente no chão como se fosse um relógio, como se estivesse dizendo que o tempo está acabando e tudo vai mudar, minha vida vai mudar e que é melhor ser logo senão pode ficar tarde demais e tarde demais a dor é pior.
Eu quero chorar, claro, mas não quero me desmanchar na frente dos meus pais. Tenho medo de que uma lágrima caia e eu desista. Mas não posso desistir. Porque se perdermos tudo, será ainda pior. Eu não sei quão longe as coisas podem chegar, então o melhor por enquanto é a despedida.
— Aqui — tiro os pregos do bolso da capa e entrego na mão do meu pai. — Para consertar o piso...
Não sei quando estarei de volta para vê-lo perfeito outra vez, é o que quero completar. Mas apenas encaro o brasão da família Kim: um elmo aberto onde se sai flores, que está dentro de um quadrado, mas com os dois cantos inferiores arredondados e com uma pequena ponta na base; ao redor, ainda tem um círculo formado por naipe de paus. As cores vão desde verde e azul escuro a dourado.
— Vamos dar o um jeito, filho — minha mãe olha-me atentamente.
— Não precisa — respondo, mas minha voz sai falha. — Eu consigo me virar.
Eu só quero que eles confiem em mim, embora nem eu tenha certeza disso. Eu nunca antes tinha me virado sozinho. Acho que está na hora de descobrir como se faz isso.
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