Capítulo Oito


Para o jantar Chenle prepara uma sopa de cogumelos, enquanto eu acendo uma segunda fogueira para que fiquemos aquecidos. Pelo que parece, ele é meio silencioso. Ou ele não se sente confortável para bater papo comigo, ou realmente não é de falar muito.

— Ai! — exclama do nada.

Giro o corpo para saber o que está acontecendo e vejo que ele tropeçou no meu arco, que deixei ao chão.

— Foi mal ter colocado no meio do caminho — puxo o arco para perto de mim, mas decido deixá-lo perto encostado no tronco de uma árvore.

— Eu não gosto inteiramente disso.

— Do fogo? — olho para a fogueira recém acesa que fiz.

— Não — Chenle se senta entre eu e minha bolsa. — Daquilo — aponta para o arco. — Isso machuca corpos vivos.

— Eu sei. Eu... trouxe para me proteger. Desculpa se te intimida de alguma forma.

— Não me intimida — ele cruza os braços. — Só não gosto mesmo.

— Tudo bem. Só vou usar quando necessário. Eu não tenho superpoderes para acalmar ursos enraivecidos.

Chenle parece ficar tímido com isso, porque mesmo na bruxuleante luz da fogueira eu percebo seu rosto ficar um pouco rubro. Minha barriga ronca em meio ao crepitar da madeira e Chenle percebe, tanto que olha para minha barriga.

— Está com fome? Vai sair logo, não se preocupe — ele balança a mão no ar, gesticulando e apontando para a panela que está na fogueira que montei. Sim, eu trouxe uma panela pequena, caso precisasse cozinhar algo.

— Hum.

Ficamos em silêncio por um tempo. Eu olho para suas roupas outra vez e ele, por sua vez, olha para minha bolsa e as coisas que estão escapando dela, como o mapa enrolado. Então me lembro dele e decido consultar. Desenrolo e tento achar mais ou menos onde estamos. Quero ir ao norte, pois tem uma área do mapa que parece um borrão, aparentemente não foi tão explorado assim há sei lá quantas décadas atrás.

— Você é um pesquisador? — Chenle me pergunta.

— Eu não diria que... — olho para ele, que está com os olhos meio arregalados de curiosidade. Ele é bonito. Ele é bonito, aparenta delicadeza e é meio fresco. Mas não confio nele e ele também não deve confiar em mim. Interrompo a mim mesmo e solto um pigarro. — Isso mesmo. Eu vim... fazer uma pesquisa sobre os unicórnios. Sou um estudante.

— Wow! — ele sorri. Eu não sei explicar isso, mas o sorriso e a pele dele brilham. Não é algo antinatural ou esquisito, não. É como se fosse óbvio, um brilho que pertence a ele. Algo extraordinário e puro. — Então está à procura de unicórnios?

— Isso mesmo. Até agora não tive sorte — fecho o mapa com um suspiro. Não tenho a mínima ideia se um dia conseguirei. — E você?

— Estou voltando para casa.

— Você mora perto?

— Um pouco — dá de ombros.

— Em qual vila?

— Eu... não sei se posso responder isso, Jisung — ele abaixa a cabeça.

— Está tudo bem, você não precisa dizer tudo — recosto-me no tronco caído atrás de nós. — Só fiquei preocupado. Você está sozinho e não está carregando quase nada, então achei que morasse por perto. Pode ser meio perigoso.

— A floresta é minha casa. Não há como sentir medo da sua casa, há?

— Acredito que não — meu indicador cutuca meu lábio inferior. — Queria ser assim. Eu acabei vindo de uma maneira bem impulsiva, não pensei muito bem. Só queria me livrar de uma prisão e agora parece que tenho liberdade em demasia... Mas até a liberdade me parece uma prisão. É um ciclo.

— Por isso me quer por perto? Porque se sente preso?

— Uma prisão é menos triste quando se tem alguém para conversar, alguém para compartilhar uma refeição e sentar em frente a uma fogueira. Você concorda?

— Sim. Mas, Jisung, mesmo sem mim, você não está sozinho. A floresta carrega tanta vida... — encantado, ele olha ao redor como se pudesse enxergar todo o mundo sob o breu.

Chenle é definitivamente diferente de todas as pessoas que já conheci.

— Ela pulsa vida?

— Ela é vida — ele me olha nos olhos e percebo que está falando sério. — Em todos os detalhes.

— O que você mais gosta dela? — inclino a cabeça para estudá-lo. Se falar sobre a natureza é o que o faz ser tagarela, eu quero investir.

— Onde moro, há uma árvore grande. Eu consigo ver toda a floresta em cima dela, consigo dormir nos galhos e ela me dá um fruto doce e suculento. Acho que é o que mais gosto. O que você mais gosta?

— Eu acho que gosto do fato de ela ter me permitido te conhecer.

Ele sorri.

— Você não é daqui?

— Não. Meus pais tem uma hospedaria perto da floresta, mas eu nunca antes tinha entrado. Acho que sempre fui frouxo. Agora estou tentando fazer algo de útil — faço um pequeno beicinho e noto a intensidade do aroma insistente de flores desde que Chenle apareceu para me salvar do urso. — Estou tentando me manter vivo também. Outra vez, obrigado por ter resguardado minha vida. Fico te devendo um grande favor.

— Eu não deveria ser recompensado por fazer isso — ele se levanta para ir checar a sopa.

Chenle deve ser bem gentil. Ele serve a sopa nos pequenos potes que eu trouxe — um para mim e outro para colocar alguma bebida para Major, caso não encontrássemos um rio. Tomamos a sopa em silêncio e eu confesso que estou surpreso com os dotes culinários de Chenle. Isso está muito gostoso, visto a míngua de ingredientes que consegui na floresta e junto aos meus pertences.

— Você cozinha que é uma beleza! Isso está uma delícia — sorrio.

— Obrigado, Jisung. O almoço também foi bom, então você é bom em cortar e misturar as coisas.

— Isso não é motivo de orgulho — eu acabo rindo. Ninguém nunca me elogiou por cortar e misturar as coisas. — Mas obrigado mesmo assim.

— Por que não seria motivo de orgulho?

— Porque é... bobo. Não requer grande habilidade — recolho as tigelas e derramo um pouco de água para limpar ambas.

— Você deveria ficar feliz pelas suas coisas e sentir orgulho, mesmo que pareçam pequenas. Por conta disso, pudemos nos alimentar e comer é importante. Então você fez algo importante — o jeito como Chenle diz isso não faz parecer que ele está tentando me fazer sentir melhor, mas sim genuinamente acredita nisso.

Ele deve ter crescido realmente isolado, porque não vejo um traço de maldade nele, não vejo cobiça ou ganância, não é astuto nem egoísta. Ele insiste em fazer um pequeno ninho para dormimos e eu nego inicialmente, porém fica impossível quando ele já começa a separar folhas e galhos para nos proteger. Ele é ágil e hábil, monta uma tenda de galhos que me pede para catar. E por cima joga as folhas entrelaçadas com cipós que ele mesmo achou, porque tenho medo de confundir com uma cobra e nos matar. Chenle não liga para isso e eu acho legal. As pessoas sempre esperam que eu seja o mais corajoso, porque sou homem e sou filho único.

— E... Pronto! — ele mostra a invenção.

A pequena tenda cabe nós dois e nossos objetos. Agora que está tarde da noite, estou cansado e saber que pelo menos temos um teto me deixa mais relaxado.

— Se eu não estivesse tão cansado, teria feito uma porta — Chenle comenta. — E usaria nozes para ser a maçaneta. Seria divertido, não?

— Seria — um sorriso acaba escapando no canto do meu lábio. Quem é Chenle? Ele simplesmente é... único.

De onde eu venho, ninguém sorri assim como Chenle, tão despreocupado e suave, como se ele fosse a personificação de uma manhã primaveril. De onde venho, ninguém sentiria muito por não conseguir fazer uma porta de madeira com maçaneta de castanhas. As pessoas não ligam para isso, estão muito ocupadas tentando ficar vivas e não cair em desgraça. Acho que as únicas pessoas felizes são os bêbados, os apaixonados e os que se entregaram ao pó de chifre de unicórnio. Nada mais importa.

Entramos na tenda juntos. Não dá para ficarmos muito tempo sentados, porque precisamos ficar inclinados. Mas arrastamos nossas coisas para dentro e em segurança. Certamente irá chover outra vez.

— O que é isso, Chenle? — aponto para o estojo nas suas costas. Ele praticamente nunca tira, então acredito que seja de demasiado valor e estima. — Um instrumento musical?

— Sim.

— Poderia me mostrar?

— É pipa — ele abre o estojo.

— Parece um alaúde.

— Não é alaúde. É pipa.

— O que é uma pipa?

— Uma pipa — ele sorri de maneira adorável e pega o instrumento.

Pipa não é bem um alaúde, porém é o instrumento mais próximo que consegui pensar. Ela possui um formato chato, como uma pera cortada ao meio. O braço é comprido e tem quatro cordas, além de filetes que dividem os tons. A madeira é clara, mas no centro da caixa de ressonância há um desenho de uma árvore que parece ser centenária. Meu palpite é que Chenle tenha desenhado, acho que seria bem a cara dele personalizar um instrumento musical. Na verdade, se ele tem instrumento musical — ele tem dois, se é que vi direito uma espécie de flauta também dentro do estojo—, ele deve ser de uma nobre família.

— Bonita a pipa — é o que digo. — Você aprendeu sozinho?

— Não se aprende muito coisa sozinho — ele pega a pipa como se fosse um bebê e posiciona verticalmente de frente para mim. — Tive ajuda, mas não é muito difícil. Nada supera a harpa. Linda, absolutamente, porém ligeiramente complicada.

— Quantos instrumentos você toca, Chenle? — minha cabeça tomba para o lado, estou genuinamente curioso.

— Eu não sei. Talvez o suficiente para não me preocupar em contar — ele dedilha o instrumento a esmo e só o pouco tempo escutado percebo quão delicado é o tom, além de um som refinado.

— Toca pra mim?

Seus dedos são delicados e o toque é suave. Ele começa a tocar uma canção que inicialmente parece triste, mas a medida que se desenvolve, percebo que não é tristeza, é libertação e autoconhecimento. A pipa é um instrumento curioso, a música derrama pelos dedos de Chenle como uma conversa ou um poema, e é calma, branda, fina e sensível. Eu não sou muito de escutar canções. Não contratamos muitos artistas na hospedaria porque isso é custo extra e cada artista tem seu preço. E eu não tenho dinheiro para visitar locais que recebem apresentações de artistas, são bem além da minha condição. Mas escutando agora, sinto como se eu sempre tivesse o costume de escutar.

Os pelos do meu corpo se eriçam, como se as notas músicas tivessem algum efeito sobre mim. Eu deito na grama sobre nós, virado de lado para enxergá-lo tocar. Ele olha para mim em alguns momentos, mas aqui dentro da tenda não consigo saber que tipo de olhar. Eu só sei que estou encantado.

— Lua de outono sobre o Palácio Han — ele diz, assim que termina. — É o nome da canção.

— Uau — apoio a cabeça no meu braço. — É realmente muito incrível.

— Eu também sei contar histórias — ele segue dedilhando as cordas de seda do instrumento. — Você quer ouvir?

Balanço a cabeça positivamente. E então Chenle começa a tocar e contar uma história rimada sobre dois sapos que se apaixonam sob o consentimento da lua. A sua voz aveludada junto ao tom da pipa me deixam sonolento. Ele entoa:

“Sob a lua cintilante, dois sapos a saltitar,
Num amor proibido, na noite a brilhar.
Um humano encantado, à meia-noite a mudar,
Na pele de sapo, seu amor vai buscar.

No pântano secreto, o romance floresce,
Entre coaxares suaves, a paixão se aquece.
O humano transforma-se, magia no ar,
Para junto da amada, sob a lua bailar.

No crocitar suave, sapos se entendem,
O amor transcende, nas noites que prendem.
A lua, ao amor seu consentimento dá,
Aos sapos que anseiam a paixão revelar.

Assim, sob a lua, a história se entrelaça,
Entre dois mundos distintos, a verdade ameaça.
Ele é um sapo à noite, um humano ao amanhecer,
No pântano do amor, juntos a renascer.

Fadas sorridentes, guardiãs do destino,
Concedem ao humano seu desejo mais divino.
Numa metamorfose permanente, humano não mais será,
E o amor como dois sapinhos, também se eternizará”

Mas eu caio no sono antes da história chegar ao fim...

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