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Ele me leva pra casa, me deixa na esquina e me acompanha até o portão com o carro, queria evitar problemas com meus pais. Assim que entro em casa eu já imaginava a chuva de perguntas, inventei que o ônibus quebrou, que uma amiga foi me socorrer e acabei me atrasando muito, como não sou de mentir meu pobre pai acreditou, fiquei com um pouco de remorso, mas a opção de falar a verdade não era nenhum pouco interessante nesse momento.

Eu não sentia mais fome, realmente estava satisfeita, fiz as refeições convencionais, estas eu ainda precisava embora não sentisse fome, mas ele havia me feito prometer que manteria a minha vida o mais normal possível, pelo menos por enquanto.

Na sexta feira ele não foi a faculdade, me mandou uma mensagem dizendo que tinha algumas coisas pra resolver, foi bem ruim, mas pude recuperar meu tempo perdido e copiar algumas matérias que por estar com ele acabei não fazendo durante a semana. Quando comentei isso com ele levei a maior bronca da minha vida, estou proibida de procura-lo em horário de aula, então combinamos que vou a tarde e fico um tempo com ele antes de começarem as aulas. Ele quase não entra mais em sala de aula, fica mais responsável pela reitoria, mas seus alunos dizem que suas aulas são únicas, um dia ainda irei assistir.

No sábado inventei qualquer desculpa que estaria ocupada com a faculdade e depois talvez iria em uma lanchonete, assim eu tenho certeza de que meu pai não me ligaria, inventei o nome de uma amiga, alguém que fosse recém chegada, já disse que sou péssima em mentir né? Então.. fui até o ponto de ônibus, fica em outra rua, então meu pai não conseguiria me ver entrando no carro dele, é um carro desses sedans, preto, com um insulfilm muito escuro, os bancos extremamente confortáveis que me fazem querer dormir. Não entendo nada de carros e nem ao menos sei dirigir pra dizer algo além disso, mas obviamente tem cara de ser caro pra caramba.

Fomos até a casa dele, fica praticamente dentro da faculdade, tem até um caminho que ele consegue ir diretamente pro campus sem passar pela rua. Por fora parece uma casa simples, um sobrado de dois andares, grande, mas não ostenta nada do palácio que parece por dentro, no primeiro andar, a sala de visitas parece um museu, vários artefatos antigos, livros do chão ao teto com alguns sofás, além da porta de entrada tem uma para um lavabo simples (creio que pra que assim evite qualquer visitante ficar instigado a passear pela casa), a outra leva a um corredor, a escadaria para o segundo andar, uma cozinha planejada e espaçosa e na última porta uma quase reprodução daquela sala dentro da universidade, móveis roxos, paredes em um vermelho tão escuro que me faz lembrar o preto, alguns móveis que não consegui entender, mas reconheci alguns instrumentos de tortura que já vi em livros sobre a inquisição.

Subimos a escadaria e ele me mostra uma sala de televisão com vários filmes em uma prateleira e um sofá maravilhoso, alguns quartos - todos obviamente sem utilização com exceção ao dele que era o último e maior, suas paredes num tom azul muito escuro, a cama branca com lençóis negros, um closet abarrotado de roupas de vários tamanhos (deve ser uma para cada forma que ele usa), e por fim um banheiro que é maior do que meu quarto com banheira, ducha, uma janela que dá vista para o quintal cheio de árvores e que se eu forçasse um pouco a visão conseguiria ver partes do lago.

Ele me deixa a vontade pra vasculhar tudo, volto a sala e coloco um filme pra nós, por coincidência preciso fazer um trabalho sobre ele, é um documentário na verdade, extremamente difícil de encontrar pela internet e ele está bem aqui na minha frente, aproveitei a oportunidade, deitei em seu peito e começamos a assistir, devo dizer que não estava entendendo muito, já estava quase aceitando a bomba por não conseguir entregar o trabalho, Antônio começou a me explicar de uma maneira diferente as imagens, me mostrando um lado da guerra que eu nunca havia se quer imaginado, as casas que pegavam fogo nas imagens era a reprodução de uma vila de camponeses incendiada após uma invasão onde todos com exceção de cinco foram mortos, estuprados, violentados, apenas por terem se adaptado a viver em uma comunidade onde o governo não se importava com a fome deles, logo ao terem um líder um pouco mais humano e justo que o governo se organizaram de maneira eficiente e passaram a prosperar – o que causou medo e ira nos poderosos da época – enfim, quando o documentário terminou, eu já sabia exatamente como montar meu trabalho, eu estava completamente relaxada deitada sobre seu corpo, minha mão fazendo carinho em seu peito e ele afagando meus cabelos. Comecei a sentir fome, eu não a sentia desde o dia em que ele havia me oferecido seu braço, sugeri que jantássemos, ou um lanche pelo menos, já deveria estar tarde, fomos até sua cozinha e ele me disse pra escolher no freezer, tinha muitos alimentos congelados, dessas marmitas congeladas que estão na moda hoje, peguei um risoto de palmito pra mim, ele escolheu creme de milho com carne de panela, jantamos em um silencio gostoso, eu o admirava, creio que seus anos de experiência trouxeram a ele uma maneira de ser fora do comum.

Ao finalizarmos sua campainha começou a tocar, vi ele se transformar na primeira forma que o conheci, a que ele impôs tanto respeito no Bin. Gentilmente me pede para ir para a sala ou o quarto dele e não descer em hipótese alguma. Subi as escadas, mas consegui ouvir sua ira sendo descarregada no Bin quando o mesmo adentrou sua sala. Como eu havia trazido minha bolsa com meu fichário (pra despistar meu pai) comecei a rascunhar o trabalho com tudo o que ele havia me dito, fiquei um bom tempo escrevendo até ele aparecer e querer ler o que eu já havia feito. Dei ênfase a questão mais humanitária daquele povo, sua tristeza, desamparo e fome, pouco me foquei nas questões que levaram o governo a dizimar aquela população, e de certa forma fiz uma analogia a nossa realidade, isso ainda existe, comunidades com suas leis próprias dentro de um governo que pouco se importa com elas – até que sua prosperidade comece a incomodar...

- Você escreveu tudo isso só pelo que lhe disse?

- Sim, eu já conhecia muita coisa sobre essa guerra, mas este olhar eu ainda não tinha percebido, achei que seria bom usar essa abordagem, o que você achou?

- Que logo você vai tomar meu lugar como reitora

- Eu nunca pensei ser professora sabia?

- O que você pretende?

- Gosto de museus, quem sabe um dia consigo trabalhar em um?

- Tenho certeza que vai conseguir... quem sabe no museu que vai abrir na cidade

- Que museu? Não estou sabendo de nenhum

- Pois é... criei ele agora, então vai demorar algum tempo...

- Você não pode criar um museu só pq eu quero trabalhar em um

- Na verdade eu posso, mas você me fez ver que não temos nada assim nessa cidade, esse povo tá precisando de um pouco mais de cultura, e um museu com um espaço pra teatro seria bem interessante, mas vou amadurecer mais essa ideia

- Está bem... eu acho, mas eu ainda estou com fome

- E porque não me disse antes?

- Achei que fosse de comida

- Você sabe que não, quando estão recém transformados vocês precisam se alimentar semanalmente, por isso o Bin veio aqui, a fome está quase matando ele, até completar um mês de transformação será assim, aí talvez eu me veja satisfeito com seu castigo, mas falando de você... 

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