Capítulo 7
O caminho estava silencioso, até mesmo os pássaros que antes cantavam, agora pareciam ter fugido da floresta. Meus olhos se mantinham atentos, porém não havia nenhum sinal do Dain ou de Kian — temi que a criatura o tivesse matado, ou pior, que houvesse o levado para sua líder. Apressei os passos a fim de terminar minha busca rápido, a noite já estava se aproximando e isso só tornaria tudo mais complicado do que já estava. Ficar nessa floresta a noite é suicídio. E ainda havia nossos exércitos que a essa hora já deviam estar longe do limite da Floresta Cinza, no entanto, as superiores daquela bruxa viriam atrás dela em breve, e nos caçariam sedentas por vingança, isso me assombrava, porque diferente da Colchi que enfrentei, as outras seriam letais.
Um gemido baixo chamou minha atenção assim que saltei um tronco caído no chão. Saquei minhas espadas do boldrié às minhas costas e mantive o olhar atento, me aproximei do local de onde vinha os sons com as espadas em punho, contornei a árvore a espera de um possível inimigo, contudo me surpreendi com a cena à minha frente.
— Você?! — me espantei ao ver Kian escorado no tronco de um velho carvalho.
— Pensei que estivesse morta — ele disse contendo um gemido.
— Pensei o mesmo de você — disse guardando as espadas novamente.
Kian continuou no chão, a respiração pesada e com o rosto vermelho e suado. Sua mão estava na lateral de seu corpo, totalmente ensanguentada — sangue vermelho, sangue dele.
— Droga — praguejei. — Você está ferido.
— Onde está a bruxa? — ele perguntou.
— Consegui me livrar dela, mas não por muito tempo. Consegue ficar de pé? — perguntei. — Precisamos sair daqui.
Ele assentiu fazendo uma careta ao ficar de pé.
— Não foi tão fundo assim — Kian disse ao me encarar novamente.
— Onde está a criatura? — disse olhando em volta.
— Me livrei dela — ele deu de ombros.
— Como assim "se livrou dela"? — arqueei uma sobrancelha. — Ninguém se livra de um Dains. Você só o mata. E não é fácil mata-los.
— Tive sorte então. Como você disse, precisamos ir — ele mancou ao passar por mim.
Ele está mentindo... Ninguém sobrevive aos irmãos demônios. Ignorei meu alerta e o segui.
★★★
Nossos cavalos fugiram em meio a confusão, tivemos que caminhar até nossa comitiva, o que nos custou muito tempo, já que eles já haviam saído da floresta e nos aguardavam em campo aberto. Os passos lentos de Kian só dificultou tudo, me ofereci para ajuda-lo, porém ele recusou com uma careta de "eu sei me cuidar".
Howard foi o primeiro a nos ver, ele estava às margens da floresta e discutia com Bert e um soldado de Morningh. O guerreiro correu em nossa direção, assim como os outros dois, a expressão de alívio dos três era nítida. O soldado de Kian o amparou antes que ele desabasse no chão.
— Precisa parar o sangramento — disse para o homem que assentiu e saiu carregando seu rei.
Olhei para frente, para o amontoado de tendas improvisadas e a multidão de soldados. Algumas fogueiras estavam acesas, o que poderia atrair predadores ou denunciar nossa posição para as Colchis.
— A senhora está bem? — Bert perguntou apressadamente.
— Precisa de algo? — Howard me olhou temeroso. — Está ferida? O que aconteceu? Eu posso...
Levantei uma mão para silencia-lo.
— Quem está montando guarda? — perguntei caminhando em direção ao acampamento.
— Não se preocupe, cuidamos da segurança do acampamento — Howard respondeu. — Você está cheia de ferimentos...
— São superficiais — disse rapidamente. — Eu estou ótima — parei de caminhar. — Preciso daquele antídoto.
Tanto Bert quando Howard me olharam assustados.
— A criatura...
— Não é para mim — o cortei.
— Entendo — Bert respondeu.
— Você irá dá-lo ao rei — Howard me olhou tentando disfarçar o nojo em sua voz.
— Só me obedeça — disse impaciente.
— Sua mãe não irá gostar — ele continuou.
Howard seria o guarda costas perfeito, se não fosse o fato de obedecer cegamente minha mãe. E é isso que me irrita, tudo que faço ele reporta a ela. Não sei exatamente qual é sua idade, mas sua aparência é jovem, no entanto, sua cara mau humorada e seu porte de guerreiro o torna assustador às vezes, parece que ele irá matar o primeiro que lhe dirigir a palavra. E o fato dele ser jovem demais, me faz questionar o por quê de ter sido escolhido por minha mãe para me vigiar — vigiar, não proteger.
— Ela não precisa saber — foi um aviso.
— Como quiser, senhora — ele saiu pisando duro.
— Precisa comer algo — Bert chamou minha atenção.
— Depois, agora preciso resolver isso, antes que ele morra — disse ainda olhando na direção que Howard seguiu.
— Com todo respeito, senhora — Bert voltou a falar. — Não seja tão dura com ele. Howard só está cumprindo seu dever.
— Que é ser o espião de minha mãe.
— Ele, assim como todos aqui, só quer mantê-la segura — Bert assegurou.
Bert só estava tentando ajudar Howard, já que os dois passam mais tempo juntos do que separados, imagino que se tornaram amigos ou algo do tipo. Entretanto, isso não iria funcionar, não confio em Howard, simplesmente não consigo. Sua presença lembra minha mãe, o que lembra que se eu errar ela estará pronta para me julgar.
— Howard faz tudo que minha mãe pede — disse depois de um breve silencio. — E sei que qualquer erro meu, ele irá reportar a ela. Ele parece gostar disso.
— Está muito enganada — Bert disse. — Howard gosta...
— Aqui está seu antídoto — a voz áspera de Howard nos interrompeu.
Peguei o vidro de sua mão sem olha-lo.
— Qualquer um, ou qualquer coisa que se mover fora dos limites do acampamento, mate imediatamente — olhei para os dois. — É uma ordem.
Sai a procura da tenda para qual levaram o rei de Morningh. Uma parte cruel e vingativa se divertiu com o fato dele está agonizando de dor neste momento.
★★★
Quando entrei em sua tenda, dois guardas estavam desesperados tentando fazer algo para salvar seu soberano. Ambos pararam abruptamente quando me viram, seus semblantes pálido e ofegante se tornaram temerosos.
A tenda era simples, e se eu fosse um pouco mais alta minha cabeça encostaria no teto. Havia espaço suficiente para cinco pessoas no interior, talvez mais se ficassem amontoados. Era algo improvisado e nada aconchegante.
Kian se encontrava sem camisa deitado em um amontoado de panos no chão. Suor escorria por sua face grudando os fios negros de seu cabelo em sua testa. Foi inevitável não reparar nos dois riscos na lateral de seu corpo — corte feito pela garra do Dain, por onde o veneno entrara. Contudo, outra coisa me prendeu. Uma cicatriz riscava seu peito descendo por seu abdômen, parecia antiga e até mesmo fora profunda.
— Saiam, eu cuido dele — disse aos dois homens.
Eles se entreolharam, e depois se viraram para Kian, ambos não querendo me deixar a sós com o rei. Talvez temessem que eu o matasse.
— Podem ir — a voz de Kian fora quase inaudível.
Relutantemente eles deixaram a tenda.
— Que merda é essa? — Kian ofegou. — Meu corpo está dormente, e sinto como se tivesse agulhas fincadas em toda a minha pele — cada palavra parecia fazer seu corpo doer ao ser pronunciada.
Contendo um sorriso caminhei até ele.
— É um veneno que as Colchis gostam de usar. Paralisa seu corpo te deixando imóvel, é mais fácil de ser capturado — disse me ajoelhando ao seu lado. — Confesso que estou impressionada que ainda consiga falar.
— Quando... Quando o efeito vai passar? — as palavras saíram entrecortadas e baixas.
— Não vai — dei de ombros. — Depois de capturarem a presa e as levarem para onde forem tortura-las, elas o dão um antídoto para os sentidos voltarem ao normal, e assim poderem mata-las lentamente.
O rosto de Kian petrificou-se.
— O que... O que vai... acontecer comigo?
— Vai paralisar até não conseguir respirar mais, e então vai morrer.
— Morrer?! — ele teria gritado se conseguisse fôlego para tal. Contive um sorriso.
— Eu disse que era estupidez me seguir, mas você disse que sabia o que estava fazendo.
Confesso que me divertir ao vê-lo apavorado e zangado ao mesmo tempo.
— Sorte sua que hoje eu estou de bom humor — disse. — Eu tenho o antídoto — levantei o frasco de vidro com um liquido amarelo e espesso.
Alivio moldou suas feições.
— Eu poderia lhe torturar para descobrir como você se livrou daquela criatura, mas daqui alguns segundos nem falar mais você conseguirá — destampei o vidro.
Segurei sua cabeça sentindo os fios húmidos em minha mão.
— Espero que ainda consiga engolir — disse levando o frasco a sua boca.
Com muito esforço ele conseguiu engolir o líquido. Me levantei procurando por qualquer pano limpo que eu pudesse encontrar, por sorte os dois soldados haviam deixado uma tigela de água e alguns panos dentro da tenda. Peguei o pano, que deveria ser branco, mas agora era uma confusa cor, me voltei novamente para onde o rei se encontrava deitado.
O antídoto tem efeito imediato. Kian já respirava quase normalmente, me abaixei ao seu lado, ele virou a cabeça para me olhar com profundo alívio.
— Obrigado — ele parecia não querer dizer as palavras.
— Não me agradeça ainda — disse impaciente. — Consegue se mexer?
— Não muito. Ainda está doendo...
— Eu te ajudo — o cortei.
Passei os braços em volta de sua cintura, seu corpo estava quente — Kian parecia estar com febre —, ignorei a proximidade quando o ajudei a se sentar.
— Isso vai doer muito, tente não gritar — disse.
— O que vai...
Despejei o resto do antídoto sobre o ferimento na lateral de seu corpo. Kian gritou, xingou e se debateu.
— Fica quieto — o repreendi. Mas foi em vão.
Em menos de segundos um batalhão de soldados invadiu a tenda com as espadas em punhos.
— Droga — Kian praguejou.
— Majestade — um dos guardas o chamou.
— Está tudo bem — Kian disse ofegante, sua respiração estava quente contra meu rosto. — Ela só está me ajudando.
— Mas majestade — o guarda insistiu.
— Eu já disse que está tudo bem — ele vociferou. A mão que estava em minha cintura se apertou, só então percebi que ele havia segurado em mim quando gritou de dor.
Como se percebesse o que havia feito, Kian retirou a mão apressadamente, no entanto, não ousou me encarar, seus olhos continuavam sobre o grupo de homens querendo me matar por ferir seu monarca.
— Tudo bem — disse me levantando. — Já que estão tão preocupados, façam o curativo vocês mesmo — disse entregando o pano para um dos soldados.
Kian não disse nada, provavelmente estava constrangido o suficiente para se manter calado, e achei melhor assim. Não olhei para trás quando deixei a tenda, muito menos para o rei.
★★★
Quando finalmente consegui comer, pensei que não seria capaz de engolir o pedaço de carne que Bert me trouxera. Minhas mãos tremiam, sentia como se fosse desmaiar a qualquer momento. Apesar do dia turbulento, eu apaguei em um sono profundo sobre um pano estendido na grama. Nossas tendas não passavam de trapos de panos velhos e gravetos para sustenta-los. Nenhuma proteção oferecida contra invasores, chuva ou até mesmo uma ventania. Contudo, o tempo se mostrava firme, e as estrelas que emolduravam o céu era a prova de que não enfrentaríamos uma tempestade.
Acordei no dia seguinte antes do alvorecer. O acampamento já estava sendo desmontado, e o fato de eu estar viva, e não haver nada fora do lugar, significa que as Colchis não quiseram uma retaliação — porém, isso só me deixou mais receosa.
Howard apareceu com um copo e um pedaço de pão na mão, sem dizer uma palavra ele os entregou a mim e saiu em direção aos nossos guerreiros. Ao que parece ele está com raiva, todavia, havia coisas maiores para eu me preocupar do que um soldado.
Terminei minha refeição as pressas enquanto Bert trazia minha nova montaria, já que a outra se perdera na floresta. O processo para nos reagrupar novamente terminou ao nascer do sol, e então partimos.
Horas depois cavalgando, fui surpreendida por Kian que surgiu ao meu lado sorrateiramente. Seu semblante estava indecifrável, no entanto, não apresentava sentir dor, provavelmente, e graças ao antídoto, seu ferimento deve estar cicatrizando.
Fiquei horas acordada tentando decidir o que fazer em relação a ele e o Dain, no fim decidi que se ele não irá me contar como se livrou de um dos irmãos demônio, também não irei contar que Meliha está juntando os Pylares dos deuses, e que depois de ir ao Desert ela ira a Morningh.
Depois que eu estiver frente a frente com meu pai, depois que ouvir de sua boca o que ele descobriu sobre as Yeborath, então eu decidirei se conto ao rei sobre os planos da bruxa.
Já passava do meio dia, e o sol brilhava no céu sem nuvens acima de nós. Retirei o casaco com o boldrié que sustentava as espadas às minhas costas, ficando apenas com uma blusa cinza de mangas até os pulsos. Kian, assim como muitos, ainda usava os casacos com suas armas presas ao corpo.
Sempre sonhei cruzar o limite do Desert de Neu, sair de trás daqueles muros, ver o céu limpo, e não sempre cinza. Senti a brisa fresca em meu rosto, ao invés do frio gélido. Não que eu não goste do gelo de meu lar, seria errado não gostar de gelo, uma vez que ele corre em minhas veias. Mas, só queria poder conhecer o que havia depois das planícies gélidas do sul, só não queria que fosse nessas circunstâncias.
A comitiva de soldados antes temerosos, agora se mostrava animados, já que não ha mais perigo pela frente, só uma jornada longa, quieta e calma até Morningh. Confesso que gostei da adrenalina ao enfrentar aquela bruxa na floresta, poder testar minhas habilidades de verdade, e não como nos treinamentos ou conflitos internos em nossas aldeias.
A única batalha emocionante que tive em toda a minha vida, foi defender a ponte da fronteira contra um bando de selvagens das montanhas que tentou tomar nossas terras, fora isso, minha vida tem sido um tédio. Entretanto, isso tudo pra mim é uma descoberta.
Uma descoberta sobre mim mesma, ver se sou digna do titulo que me foi dado, se estou apta para guiar um povo tão antigo quanto o mundo, um clã de lendas entoadas em rodas ao redor de fogueiras a noite. Um povo cujo no sangue corre a magia concedida pelos deuses, que outrora montara feras gigantes e desbravara os céus. Um povo que carrega um nome mais forte que qualquer magia, e que nem mesmo uma maldição foi capaz de nos apagar dessa terra.
Olhei para frente, onde soldados de Morningh e guerreiros Drak cavalgavam rumo ao horizonte, tentei me lembrar o motivo de estarmos fazendo isso. Que em breve abraçaria meu pai, que pediria perdão. Lembrei também que tinha apenas quinze dias pare retornar ou Ettore assumiria o Desert de Neu. Como se por instinto, minhas mãos se apertaram na rédea do animal que eu montava.
Eu conseguiria. Venceríamos Meliha.
— Você está muito calada hoje — Kian disse ao meu lado.
Ignorei seu comentário, e principalmente afastei a lembrança dele se segurando em mim quando quase desmaiou de dor, e de como estava tão imersa na tentativa de ajuda-lo que não percebi tal ato. Apenas foquei no sol que começava a perder seu brilho, pois a noite chegaria em breve.
— Espero que você não prossiga tentando mentir para mim — disse sem olha-lo. — Não acredito que seja a sorte que lhe livrou do Dain, no entanto, não irei insistir nessa historia, não até chegarmos ao objetivo disso tudo.
Kian não disse nada, e um silencio preencheu o ar, até eu me virar para olha-lo.
— Não me trate como idiota — ele arregalou os olhos finalmente me encarando. — Posso parecer imatura e muito jovem, mas não sou tola. Se você me enganar, eu vou mata-lo, mesmo que eu morra no processo.
— Não pretendo engana-la — sua voz saiu baixa.
— Ótimo — disse voltando o olhar para o horizonte.
Em breve estaria com meu pai novamente. E em breve enfrentaríamos a fúria de Meliha.
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