Capítulo 5
— Você está maluca? — Kian parou abruptamente. — Não vamos entrar naquele cemitério.
Parei no mesmo instante que ele. Puxei a rédea do animal que eu conduzia, ficando de frente para ele, o rei estava pálido, sua respiração acelerada. Ousei um rápido olhar na direção de Bert e Howard, e pude perceber que ambos também concordavam que era loucura, mas por lealdade me seguiriam.
— Não se preocupe, aquele lugar não é tudo que dizem — menti.
Pois, pelo que já ouvi falarem, o lugar faz juiz ao nome — a todos eles.
— Não vou levar meus homens para a morte certa — ele disse com um tom de voz firme.
— Nós iremos pela Floresta Cinza, é o caminho mais curto até Morningh — disse convicta. — E eu preciso estar de volta em quinze dias. Se dermos a volta levarei vinte dias.
— O que são cinco dias de diferença?
— Para mim significa tudo.
Minha vida depende disso, a vida do meu povo. Seria muita irresponsabilidade minha deixa-los sobre os cuidados de meu primo ganancioso.
— Você sabe o que encontraremos lá — foi uma afirmação.
— Não entraremos no coração da floresta, apenas daremos a volta.
Não sou tola para entrar naquele lugar, sei muito bem o que nos espera naquele inferno. Todos que ousam por os pés naquele cemitério, jamais é visto novamente. E as histórias que contam, de como são suas mortes, não é nada agradável.
— Ainda sim, é um grande risco.
— Você está na companhia de duzentos guerreiros, alguns possuidores de magia, não precisa ficar com medo — disse tentando faze-lo parecer tolo pela preocupação.
— Mas ambos sabemos que não é o gelo que eles temem — notei a preocupação em sua voz.
— Que pena então — dei de ombros, voltando a cavalgar rumo a floresta.
— Atali, espere — ele gritou me seguindo. — É suicídio — continuou após me alcançar.
— Só fique perto, e deixe o resto comigo — disse por fim.
— Mas...
— Confia em mim, eu sei o que estou fazendo. Não sou idiota para deixar o rei de Morningh morrer — lhe assegurei.
Kian pareceu abrir a boca para dizer outro protesto, mas desistiu.
Seguimos rumo a trilha que nos levaria para o local sagrado das Colchis, para confrontar um clã tão antigo quanto às Yeborath, para a terra dos irmãos demônios.
★★★
O caminho começava a mostrar a face do Floresta Cinza, as arvores antes verdes e belas, agora apresentavam um aspecto velho e sem vida. Seus troncos eram retorcidos, as folhas estavam com uma cor acinzentada, lembrando folhas queimadas.
A neve do Desert fora deixada para trás, nesse momento passávamos por um pântano enlameado. Não é nada fácil passar quatrocentos soldados e cavalos por uma floresta, isso só torna tudo mais perigoso caso tenhamos algum impasse.
Coloquei os guerreiros Drak na retaguarda, já que eles são os mais qualificados para lidar com uma possível ameaça. A fronteira do Desert não está muito longe, no entanto o frio foi substituído por um tempo abafado e quente. O ar parece não circular neste local, as folhas das arvores permanecem inabaláveis, confirmando minhas suspeitas.
O cheiro pútrido preenche nossas narinas, e fazem meu estomago embrulhar. Kian e os outros já se livraram dos casacos pesados, assim como eu. Porém, o casaco de couro negro que uso sobre a blusa branca, não é muito agradável devido ao calor. As espadas gêmeas permanecem intocadas presa às minhas costas, apenas esperando para não serem usadas hoje.
Paramos há meia hora atrás em um riacho, para reabastecermos, iremos parar para comer quando sairmos da floresta, o que será no fim do dia. Entretanto, estou quase repensando essa ideia, já que meu estômago começou a reclamar.
Imagino como está sendo desagradável para o rei, acostumado com as regalias de seu castelo, um dia em uma floresta assassina, na companhia de quase selvagens, e sem nada para comer... Aposto que já se arrependeu de ter vindo até mim
O sol que apareceu por breves instantes já sumira novamente, e dessa vez a culpa não são das nuvens negras que cobre o céu acima de nós, e sim, da noite que se aproxima. Por cima do barulho dos cascos dos cavalos e murmúrio de homens temerosos, que não ousam aumentar o tom de voz por medo de atrair algum ser sombrio, pude ouvir o chiar da cachoeira à frente, a qual teríamos de atravessar para sair da Floresta Cinza.
Aproximei-me de onde Kian cavalgava em silêncio, instantaneamente Bert e Howard me seguiram, fiz sinal para eles pararem, em troca recebi um olhar questionador de Howard, mas logo eles cederam me deixando sozinha.
— Posso perguntar algo? — disse assim que alcancei Kian. Ele olhou surpreso a aproximação e apenas assentiu com a cabeça. — Ele perguntou por mim? Quero dizer... meu pai... Quando ele acordou, perguntou por mim?
Passei a noite toda pensando nisso. Ninguém sabe, mas antes dele partir para Acrab tivemos uma discussão, que terminou comigo dizendo que odiava ser filha dele. Não era isso que eu queria ter dito. Eu não odiava e nem odeio ser filha dele, apenas odeio o que isso me trouxe, a responsabilidade que recai sobre mim.
Ele estava pegando suas armas para partir, e eu disse que iria também. Não queria ficar trancada em casa, resolvendo pequenos conflitos. Odeio o confinamento do Desert. Porém, ele disse que era perigoso, e como a herdeira do clã, eu deveria ficar protegida em casa. Isso foi o início de nossa discussão.
Despejei tudo de uma vez só; a raiva que sentia por todos ficarem me cobrando responsabilidade; Ettore querendo me desestabilizar e ficar com o título; as implicâncias de minha mãe; os anciões e suas insinuações. E acima de tudo, o fato de me sentir sufocada dentro dos muros de Neu. Meu pai, paciente como sempre, tentou me fazer ver os pontos positivos de tudo, mas estava com raiva o suficiente para não ouvi-lo. Apenas me lembro da ultima frase que disse antes de bater a porta da frente e sair sem rumo em meio a neve.
Isso me assombrou durante todo esse tempo que pensei que ele estivesse morto. Pensar que meu pai morreu, e a última coisa que disse a ele foi: eu odeio ser sua filha. Por isso não pensei muito quando aceitei ir à Morningh, por isso estou me apegando a ideia de meu pai estar vivo, mesmo todos os meus instintos gritando para não confiar no rei de Morningh.
— Como eu disse, ele não se lembrava de nada — Kian respondeu com os olhos ainda focados à sua frente.
— Mas você disse que ele recuperou a memória — questionei.
— Sim, pouco antes de minha partida.
— E, então? Ele perguntou por mim? — insisti.
— Não especificamente — ele me olhou por alguns segundos. — Apenas disse que fosse falar com você, pois seria a única que me escutaria.
— Entendo — disse por fim.
Ele ficou magoado... Não importa — tentei me animar. Ganhei uma segunda chance, irei pedir perdão, e tudo voltará a ser como antes, finalmente essa culpa irá me deixar em paz.
Quando voltei meu olhar para frente avistei o riacho que nos tiraria do Cemitério. A água corria com calma até a queda logo abaixo, provocando um barulho que me deixou irritada, embora, penso que não seja o barulho que realmente me irritou, e sim, o fato de estar com raiva de mim mesma.
Pude ver a expressão de alívio que tomou os homens que nos acompanhavam, devido ao fato de deixarmos o perigo para trás. Mesmo o semblante preocupado de Kian assumiu um quase sorriso, seus ombros relaxaram e quase pude ouvir o suspiro de alívio que lhe escapou.
Contudo, isso durou breves segundos, seu quase sorriso foi substituído por uma careta de pânico. Rapidamente olhei na mesma direção que ele, e vi o que lhe assombrava. Do outro lado do rio, duas figuras envoltas em sombras nos aguardavam.
★★★
— Vamos voltar — o comando de Kian não passou de um sussurro.
Os soldados começaram a entrar em pânico, o relinchar dos cavalos invadiram meus ouvidos, o que me deixou agitada e irritada. Pânico... A cena ao nosso redor era um completo inferno. Soldados gritando; homens tentando voltar para trás, como se isso fosse impedir de que eles nos seguissem.
— Diga aos seus homens que se mantenham quietos — gritei para o rei.
Kian me olhou com um ódio mortal, e pude ler as palavras não ditas: Eu disse que era suicídio.
Ignorei seu aviso, ignorei o barulho estridente de metais, gritos e passos de animais; ignorei o medo que cresceu dentro de mim, se alastrando com tanta facilidade que tomou todos os meus sentidos.
Foquei apenas nas duas imagens que era apenas borrões negros do outro lado do rio, no entanto, eu sabia exatamente o que eram. Os Drak permaneceram firmes em seus postos, mesmo seus rostos petrificados em uma careta de medo os denunciando.
— Eu disse para manda-los manterem as posições — gritei para Kian. — Ande logo.
— Homens — Kian gritou — mantenham as posições — ele ordenou com um semblante de raiva a medida que desviava os olhos de mim para seus soldados.
O exercito assustado não lhe deu ouvidos, entretanto, Kian voltou a berrar ordens e comandos de quietude. Enquanto o rei tentava controla-los me virei para Bert e Howard que estavam ao meu lado, ambos com suas armas em mãos.
— Instrua nossos guerreiros a se manterem nas posições — disse. — Quero todos do outro lado do rio, incluindo os soldados de Morningh. Vocês dois estão encarregados de mantê-los organizados e a salvo — ordenei.
— Temos ordens de não deixa-la — Howard começou.
— E agora tem ordens minhas de manter todos aqui seguros.
Howard passou as mãos sobre os cabelos longos na altura do queixo — uma ação que ele só faz quando está com raiva. Ele tem ordens de minha mãe, e aposto que agora está se questionando qual delas deve obedecer, e quais serão as consequências no final.
— Mas e a senhora? — Bert perguntou.
Não me irritei por ele novamente me chamar de senhora, já que os cabelos grisalhos de Bert denunciavam sua idade superiora a minha. Apenas, me lembrei do fato de que estávamos a centímetro da morte e que eu precisava de um plano melhor do eu havia pensado.
— Apenas tire-os daqui, eu irei distrair... o que quer que seja aquelas coisas — minha voz tremeu.
Não é o gelo que eles temem... — uma voz quase antiga e suave como o vento cantou em meus ouvidos. Um calafrio percorreu minhas costas.
— Mas... — Howard iniciou.
— Basta — gritei. — Lhes dei uma ordem, cumpra-a.
Os dois assentiram relutantes, rapidamente eles cavalgavam para a confusa companhia de soldados e guerreiros Drak. Seria uma tarefa difícil: acalma-los e leva-los para o outro lado.
Respirei fundo buscando cada lembrança, cada treinamento e instruções que já recebi. Distrai-los... Não seria uma tarefa fácil. Puxei as rédeas de meu cavalo, que pareceu relutar quando o instrui a ir de encontro as criaturas.
As duas figuras permaneciam paradas... Aguardando... Se deleitando com o pânico e o medo que se alastrou em nosso meio. Eles pareciam saber que teríamos de atravessar o rio, e apenas aguardavam enquanto nos consumíamos em nossos pesadelos.
Um... Dois... Três...
Quando cheguei a beira do rio, parei abruptamente os passos de meu cavalo. Kian estava ao meu lado.
— O que está fazendo?
— Não seria adequado deixa-la enfrenta-los sozinha — Kian tentou sorrir, mas não conseguiu.
A mão com a qual segurava as rédeas do animal, estava tremendo, na outra ele apertava o cabo de sua espada.
— Você só irá atrapalhar — sibilei.
— É o que veremos — ele me ignorou e continuou a avançar.
Bufei com raiva. Kian será apenas uma fardo para mim. Minha intenção era atrai-los para dentro da floresta, para que nossos exércitos pudessem atravessar o rio. Sou boa em montaria, além de ter magia, seria fácil criar obstáculos para eles, embora não posso mata-los.
Soltei as rédeas que eu segurava com força, quando elas tocaram o pelo negro do anima que eu montava, notei que eu as havia congelado sem perceber. Medo... Eu estava com medo, e isso deixou a magia que flui em mim agitada.
Afundei os calcanhares na lateral do animal para que ele continuasse, Kian estava a poucos metros de distancia. Saquei as duas espadas das minhas costas, segurei uma em cada mão.
Um... Dois... Iniciei novamente a contagem em minha mente.
A medida que nos aproximávamos as figuras ganhavam formas e cores.
Então paramos... Minha boca seca; a língua dormente e gelada contra o céu da boca; minhas pernas bambas; e meu coração quase saltando do peito.
De pé, a menos de três metros, estava uma mulher jovem de olhos castanhos — quase vermelho —. Seus cabelos eram longos e prata. Prata como a lua cheia — a marca das bruxas Colchis. Um vestido negro lhe cobria o corpo esguio marcado por curvas, um decote profundo revelava mais de seu corpo do que eu gostaria de ver, no entanto, aposto que para um homem seria o contrário. Em seus lábios pintados de azul escuro ela trazia um sorriso cruel. A pele morena não mostrava uma cicatriz ou arranhão, apenas uma tatuagem de uma meia lua negra cercada por quatro estrelas — também negras — estava no meio de sua testa — uma marca, um sinal de quem ela era.
Não vi qual era a reação de Kian, se estava admirado ou apavorado, porque minha atenção estava na criatura ao lado da garota. Nada... E tudo... Era penas uma sombra negra que flutuava ao lado dela. Sua forma era a silhueta de um homem, os braços longos e finos, os dedos esqueléticos com longas garras de pura escuridão. No lugar dos olhos era apenas um vão, que parecia me puxar cada vez que eu o olhava. Ele cheirava a morte, sofrimentos e medo. Parecia a própria noite, mas nada de encanto. Apenas escuro, vazio.
— Ora, ora. Veja quem veio brincar conosco hoje irmão — a voz da mulher era quase um cântico.
A criatura emitiu um chiado, o que fez a garota rir.
— Concordo — ela respondeu para ele.
Outro chiado.
— Tem razão — ela inspirou fundo. Sentindo nossos cheiros. — Não são viajantes comuns — inspirou novamente. — Gelo... — ela disse puxando a ar mais fundo. — Pinho, magia — ela parou e arregalou os olhos. — Dragão — um sorriso malicioso surgiu em seus lábios. — Uma Drak, uma herdeira do Desert.
Isso não me parecia bom. A situação estava saindo do meu controle.
— Verdade — ela respondeu a algo que a criatura lhe disse. — Bonito — ela olhou para Kian. — Talvez o poupe, e podemos nos divertir juntos, até eu me cansar de você — um sorriso sensual lhe tomou a face. — Ora, pelo que vejo você pertence a nobreza — ela analisou suas roupas. — Morningh — ela disse por fim, sua voz era de nojo. — Porcos amantes da escoria bruxa.
As Colchis odiavam às Yeborath, mas tinha certeza de que um inimigo em comum não as faria poupar nossas vidas. Tempo... Era tudo que eu precisava. Os gritos dos soldados haviam cessado, o que significava que Bert e Howard conseguiram acalma-los.
— Terra molhada — o mesmo processo. — Jasmim — ela inspirou fundo. — Chuva... — ela parou. Parou... Abriu os olhos, e eles pareciam duas chamas vivas. — Fogo — ela quase gritou. — Maldito Rein, maldito seja — ela vociferou.
Veias negras tomaram sua face, quase se era possível notar o sangue pulsando nelas, seu cabelo flutuava ao redor de sua cabeça. Ela sacou dois punhais, a criatura feita de escuridão rugiu ao seu lado, o som fez com que meu interior se agitasse.
— Seus desgraçados — ela continuou a gritar. — Como ousam pisar em nossas terras. Malditos, malditos...
Puro instinto... Só vi quando ela desviou da estaca de gelo que disparei em sua direção. Um sorriso viperino moldou-lhes a feição.
— Eu vou matar vocês — ela cantarolou. — Mas antes, vou faze-los se arrependerem de terem posto os pés em solo proibido.
— Corre — quase sussurrei para Kian.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top